Informativo Eletrônico - Edição 202 - Dezembro / 2023

A APLICAÇÃO DA NOVA LEI DE DEFESA AGROPECUÁRIA (LEI 14.515/2022) DIANTE DA AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO

Jefferson Lemes dos Santos

1. Introdução

A Lei 14.515/2022 introduziu um novo marco regulatório para o setor agropecuário, superando o modelo fiscalizatório autoritário anterior e adotando um modelo de controle cooperativo e sensível às liberdades privadas. Parte dos dispositivos permanece inaplicável porque sua eficácia foi condicionada à edição de regulamento. Entretanto, algumas inovações têm aplicabilidade imediata e devem ser observadas pelo MAPA em suas fiscalizações.

2. A legislação anterior sobre o tema

A regulação sobre a defesa agropecuária brasileira foi editada, predominantemente, antes da Constituição de 1988. É o que se passa com o Decreto-Lei 467/1969, que dispôs sobre a fiscalização de produtos de uso veterinário, e a Lei 6.446/1977, que versou sobre a inspeção e fiscalização obrigatória do sêmen destinado à inseminação artificial em animais domésticos.

Já na vigência da Constituição de 1988, foi editada a Lei 7.889/1989, que disciplina a inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal (parcialmente revogada). 

Uma característica dessa legislação anterior é a existência de um regime sancionatório pouco democrático, com sanções aplicadas independentemente de dolo ou culpa e sem referência à garantida do devido processo legal.

3. Os propósitos da Lei 14.515/2022

A Lei 14.515/2022 objetivou dinamizar a regulação sobre o setor agropecuário, fornecendo soluções mais adequadas à realidade de mercado. O modelo anterior mostrou-se incompatível com a nova realidade jurídica e social. A dinamicidade do mercado agropecuário atual, que representou 25% do PIB nacional em 2023, em nada se assemelha com aquela experimentada nos anos 70.¹

A modernização ficou a cargo do controle exercido sobre os agentes privados regulados. Se o modelo anterior privilegiava o autoritarismo sancionatório, a fiscalização e o controle das atividades agropecuárias a cargo do MAPA passaram a ser conformadas pelo dever de cooperação com os agentes regulados, adotando-se estratégias de estímulo ao autocontrole e à autocorreção de irregularidades em detrimento da sanção como prima ratio.

Assim, a Lei 14.515/2022 criou o Programa de Incentivo à Conformidade (art. 12), possibilitou a elaboração de programas internos de autocontrole pelos agentes regulados (art. 8º), e instruiu uma principiologia vocacionada à gestão eficiente dos riscos agropecuários, à prevalência da atuação preventiva e à excepcionalidade da intervenção estatal na atividade econômica (art. 7º).

4. A nova tendência

O novo modelo de regulação teve sua constitucionalidade questionada perante o STF. Parte dos argumentos aduz ao descabimento da transferência de competências estatais para agentes privados.

O STF ainda não se manifestou conclusivamente sobre o tema. Contudo, há que se reconhecer a “tendência crescente à delegação de competências de poder de política para o setor privado“, pois, “em muitas hipóteses, um sujeito privado se encontra em condições de controlar a conduta de particulares“.²

5. As principais inovações da Lei 14.515/2022

As inovações trazidas pela Lei 14.515/2022 podem ser divididas em três categorias: (i) inovações instrumentais; (ii) inovações procedimentais e (iii) inovações principiológicas.

5.1. As inovações instrumentais

A Lei 14.515/2022 criou programas de autocontrole e de incentivo à conformidade no âmbito da defesa agropecuária, que serão desenvolvidos pelos agentes privados, partindo do pressuposto de que eles reúnem melhores condições para “implantar, executar, monitorar, verificar, corrigir procedimentos e processos de produção e destituição de insumos, alimentos” (art. 3º, inc. VII). Esses programas privados, a exemplo dos programas de integridade, instituirão procedimentos internos visando garantir a “inocuidade, identidade, qualidade e segurança dos produtos agropecuários colocados à disposição do mercado” (art. 8º).

A intervenção da Administração será subsidiária, desde que constatado o desempenho inadequado dos instrumentos de autocontrole e a ineficiência da autocorreção.

A Lei também criou o Programa de Incentivo à Conformidade, que tem por objetivo “estimular o aperfeiçoamento de sistemas de garantia da qualidade robustos e auditáveis, com vistas à consolidação de um ambiente de confiança recíproca entre o Poder Executivo federal e os agentes regulados, pela via do aumento da transparência” (art. 12).

Os agentes serão estimulados a compartilhar periodicamente dados operacionais e de qualidade, recebendo como contrapartida incentivos por parte do órgão regulador. Alguns desses incentivos são a agilidade nas operações de importação e exportação, prioridade de tramitação de processos administrativos, dispensa de aprovação prévia de atos relacionados a reforma e ampliação de estabelecimento etc. (art. 13).

Outra contrapartida em favor dos agentes privados consiste na possibilidade de “correção por notificação”, prevista no art. 15 da Lei 14.515/2022. Essa modalidade de correção permite que o agente privado promova o autossaneamento da irregularidade após a notificação expedida pela fiscalização agropecuária, evitando assim o sancionamento.

5.2. As inovações procedimentais

A Lei 14.515/2022 também inovou ao dispor sobre o processo sancionatório. O art. 35 ampliou para 20 dias os prazos de apresentação de defesa e interposição de recurso, anteriormente fixados em apenas 10 dias (artigos 101 e 104 do Decreto 5.053/2004).

Foi criada uma terceira instância recursal, a Comissão Especial de Recursos, responsável por julgar os recursos interpostos em face das decisões proferidas pela Secretaria de Defesa Agropecuária do MAPA (art. 37), bem como editar enunciados uniformizando o entendimento sobre decisões reiteradas âmbito da defesa agropecuária (art. 37, §4º).

5.3. As inovações principiológicas

O art. 7º elenca cinco princípios elementares à atividade fiscalizatória. Em certa medida, trata-se de princípios que já estavam insculpidos no ordenamento jurídico, não havendo grandes inovações.

O princípio da atuação baseada no gerenciamento de riscos (art. 7º, inc. I) impõe que a atividade fiscalizatória considere a dimensão dos riscos criados à defesa agropecuária pela atividade econômica. Há uma nítida relação com o art. 3º, inc. I, da Lei de Liberdade Econômica, que assegura ampla liberdade ao desenvolvimento de atividades de baixo risco. O gerenciamento inadequado de riscos produz distorções indesejáveis no mercado, aumentando custos de transação e tornando o ambiente regulado antieconômico e desproporcional.

O princípio da atuação preventiva impõe aos agentes públicos o dever de oportunizar aos particulares prévio saneamento de irregularidades de natureza leve, antes da promoção e sanção. Embora não esteja explícita na redação do art. 7º, inc. III, da Lei 14.515/2022, o autossaneamento é mandatório e deve ser oportunizado ao particular sempre que a irregularidade for considerada de menor potencial ofensivo.

O princípio da intervenção subsidiária exige que a intervenção estatal na atividade econômica ocorra de forma excepcional. Trata-se de mandamento previsto no art. 2º, inc. III, da Lei de Liberdade Econômica, em consonância ao disposto no art. 170, parágrafo único, da Constituição. A excepcionalidade estará configurada “apenas nas situações de prevalência do interesse público sobre o privado” (art. 7º, inc. III).

É oportuna a ressalva de Marçal Justen Filho, segundo a qual o interesse público não se confunde com o interesse (i) do Estado, (ii) do aparato estatal, (iii) dos agentes públicos, (iv) da sociedade, (v) da totalidade dos cidadãos ou (vi) da maioria dos cidadãos. A mera alusão a qualquer uma dessas expressões não satisfará o ônus argumentativo exigido pelo dispositivo, cabendo ao agente público identificar, concretamente, o direito fundamental prevalente que fundamenta a intervenção (inclusive em atenção ao art. 20 da LINDB).

Também é exigido que a atividade fiscalizatória esteja pautada na isonomia, uniformidade e publicidade (art. 7º, inc. IV). Tais postulados prezam pela segurança jurídica na relação entre agente público e agentes regulados (privados). A isonomia é fundamental para a implementação do novo modelo regulatório proposto, pois a assimetria jurídica entre o particular e a Administração é incompatível com a confiabilidade creditada ao sistema de autocontrole e autossaneamento de irregularidades. Essa isonomia se reflete em todos os níveis da relação, exigindo amplo acesso aos processos administrativos e o compartilhamento satisfatório de informações entre agentes públicos e privados.

6. A dependência de regulamentação

A maior parte das inovações contidas na Lei 14.515/2022 depende de regulamentação.

A Portaria 826, de 26 de junho de 2023, editada pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário, submeteu à consulta pública o possível texto do decreto regulamentador. O prazo da consulta pública foi de 45 dias e encerrou em agosto de 2023. Contudo, até o presente momento não há notícias sobre a regulamentação.

A ausência de regulamento impede a efetivação das inovações instrumentais (Programa de Incentivo à Conformidade e Programa de Autocontrole). Diversos dispositivos fazem referência expressa ao regulamento. O art. 14, ao tratar do Programa de Incentivo à Conformidade, atribui ao regulamento a criação de regras quanto ao procedimento de adesão, condições de permanência e hipóteses de sancionamentos. Em relação aos Programas de Autocontrole, o art. 10 impõe ao MAPA a incumbência de estabelecer os requisitos necessários à formulação dos programas pelos agentes privados, mediante regulamento.

7. As disposições aplicáveis de imediato

A ausência de regulamentação não impede a aplicação imediata das inovações processuais e principiológicas.

Dada a sua natureza processual, as regras referentes a prazos para apresentação de defesa, interposição de recurso (art. 35) ou referentes à atribuição de efeito suspensivo a recurso (art. 38) aplicam-se desde logo. Isso significa que os processos instaurados antes da entrada em vigor da Lei 14.515/2022 devem considerar as novas disposições processuais (art. 46, §1º).

Também independem de regulamentação a aplicação dos princípios norteadores da atividade fiscalizatória. Enquanto mandamentos de otimização para aplicação de regras jurídicas, os princípios são normas de conteúdo aberto e que comportam aplicação independentemente da regulamentação via decreto.

Aliás, a própria elaboração do decreto (ato administrativo normativo) deverá refletir a dimensão principiológica prevista no art. 7º da Lei 14.515/2022, confirmando, assim, a aplicabilidade imediata dos princípios.

Por outro lado, todos os princípios elencados no art. 7º da Lei 14.515/2022 já estão presentes do ordenamento jurídico. A nova lei apenas sintetiza princípios basilares previstos na Constituição (art. 170) e na Lei de Liberdade Econômica ao contexto da defesa agropecuária. Essa característica reforça a aplicabilidade plena dos princípios previstos no art. 7º da Lei 14.515/2022, independentemente da superveniência de decreto regulamentador.

8. Conclusão

A Lei 14.515/2022 introduziu um modelo de defesa agropecuária mais condizente com a realidade jurídica e social. Afastou-se o antigo perfil autoritário, majoritariamente sancionatório, da legislação anterior, para adotar um modelo regulatório mais cooperativo e sensível às liberdades privadas.

Em que pese a demora na edição do decreto regulamentador, parte de seus dispositivos podem ser aplicados de forma imediata, sobretudo aqueles que dizem respeito à normas procedimentais e de cunho principiológico.

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¹ Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx

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² JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. Forense, 2023, p. 366.

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Jefferson Lemes dos Santos
Jefferson Lemes dos Santos
Especialista em Direito Ambiental pela UFPR. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Jefferson Lemes dos Santos
Jefferson Lemes dos Santos
Especialista em Direito Ambiental pela UFPR. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.