Informativo Eletrônico - Edição 161 - Julho / 2020

A EXPLORAÇÃO DE RECEITAS MARGINAIS NO NOVO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO

A atualização do marco legal do saneamento básico pela Lei  14.026/2020 suscita diversos temas relevantes para estudo e debate,  especialmente no que se refere às alterações (i) na competência regulatória; (ii)  na disciplina da prestação regionalizada; (iii) no acesso a recursos federais; e  (iv) no incentivo ao regime concorrencial e à participação privada. 

O incentivo à participação privada no setor vem claramente expresso  na alteração do art. 10, § 3º, da Lei 11.445/2007, que determina que a  prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não  integre a administração do titular depende da celebração de contrato de  concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição  Federal. A previsão mira diretamente nos contratos de programa e outros  arranjos celebrados com estatais, que devem agora ser submetidos a regime  concorrencial após o término de seu prazo de vigência.

Inicialmente, o texto da lei previu a possibilidade de que os contratos  de programa atualmente vigentes (e as “situações de fato” de prestação do  serviço por estatais) pudessem ser prorrogados por mais 30 anos, mediante  acordo entre as partes. Todavia, a previsão foi vetada pela Presidência da  República, sob a justificativa de que isso prolongaria demasiadamente a  situação atual, postergando soluções para os impactos ambientais e de saúde  pública decorrentes da falta de saneamento básico e gestão inadequada da  limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. Considerou-se, ainda, que a  proposta limitava a livre iniciativa e a livre concorrência, estando em  descompasso com os objetivos do novo marco legal, que preconiza a  celebração de contratos de concessão mediante prévia licitação, estimulando a competitividade na prestação dos serviços com eficiência e eficácia.

O debate em torno da questão ainda não foi finalizado: existe a  possibilidade de o Poder Legislativo derrubar o veto imposto pela Presidência – a imprensa tem noticiado largamente a insatisfação gerada pelo veto, que,  segundo a visão de alguns parlamentares, reduz o valor das estatais no  mercado.1 

Todavia, o incentivo à participação privada na prestação de serviços de saneamento não se encerra no reforço ao regime concorrencial. Também vem  expresso no estímulo à exploração de receitas marginais. 

A Lei 14.026/2020 inseriu o artigo 10-A no marco legal do saneamento,  determinando, no inciso II, que os contratos de concessão devem prever as  “possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias, bem  como as provenientes de projetos associados, incluindo, entre outras, a  alienação e o uso de efluentes sanitários para a produção de água de reuso,  com possibilidade de as receitas serem compartilhadas entre o contratante e o  contratado, caso aplicável”. A previsão consiste no regramento da exploração  de receitas marginais pela concessionária, a fim de incrementar a remuneração  extraída do contrato de concessão.

A remuneração consiste no conjunto de todas as receitas da  concessão a que faz jus a concessionária, sejam elas provenientes do Estado,  dos usuários ou da exploração de atividades paralelas ao objeto concedido.2

Na disciplina da Lei 8.987/1995 a remuneração da concessionária  decorre das receitas tarifárias, subsídios e receitas marginais, também  denominadas “ancilares” pela doutrina (arts. 9º, 11, 17 e 18, VI). Já na  disciplina da Lei 11.079/2004 existe também a figura da contraprestação do  parceiro público (art. 2º, § 1º e 2º), preservada a possibilidade de o parceiro privado auferir receitas marginais, tanto em razão da aplicação subsidiária da  Lei 8.987/1995 quanto em razão da previsão do art. 6º, incs. III e IV. 

O art. 11 da Lei 8.987/1995 determina que o poder concedente pode  prever em favor da concessionária no edital da licitação a possibilidade de  auferir “receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos  associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade  das tarifas”. São estas as receitas marginais: aquelas “obtidas por meio da  exploração de outras atividades que não propriamente o serviço delegado, mas que guardam relação ainda que somente econômica (e não necessariamente  material) com ele”.3

As receitas marginais podem ser classificadas entre alternativas,  complementares, acessórias ou de projetos associados. 

As receitas alternativas são aquelas obtidas com a exploração do  objeto da concessão de um modo alternativo à cobrança de tarifas, e não  consistem no desenvolvimento de outras utilidades ao público que não o próprio serviço, tampouco ampliam o objeto da concessão. 

De modo semelhante, as receitas complementares derivam do  aproveitamento de oportunidades relacionadas ou não materialmente ao serviço concedido, mas seu objetivo é de complementar o custeio de sua  prestação. 

Receitas acessórias são obtidas mediante a exploração de atividades  ligadas materialmente ao serviço concedido e que, por serem apenas  acessórias, não desnaturam a prestação do serviço caso sejam suprimidas.

Por fim, a ideia de projetos associados importa a “inserção do objeto da  concessão no âmbito de uma pluralidade de empreendimentos, de molde que  os resultados econômicos globais sejam multiplicados”.4 Essa hipótese é mais  comum nos casos de contratos em que há a implantação de estruturas mais  custosas e complexas, casos em que pode haver a conjugação de uma série de empreendimentos distintos, cujos resultados econômicos são englobados  nos todos – caracterizando um empreendimento “associado”.

Nota-se que já existia amparo legal para a exploração de receitas  marginais pelas concessionárias nos contratos de concessão de saneamento.  A previsão trazida pela Lei 14.026/2020 vem para incentivar essa exploração,  determinando a obrigatoriedade de que o contrato preveja as fontes de receita  marginal, sob pena de nulidade, inclusive. Ainda, a previsão também detalha a  disciplina da exploração dessas receitas.

Antes da Lei 14.026/2020 não existia qualquer previsão expressa  acerca da titularidade dos efluentes sanitários ou da possibilidade de sua  exploração pelas concessionárias. Apesar de serem responsáveis pela  “destinação final” dos efluentes, a lei e os contratos eram omissos quanto à  possibilidade de auferir receita com sua exploração econômica. Agora, existe  segurança jurídica para a implementação de projetos associados, como a  produção de água de reuso. 

As previsões incentivam fortemente a participação privada no setor,  especialmente considerando que as possibilidades de obtenção de receitas  marginais são extremamente variadas, uma vez que os empreendimentos que  apresentem viabilidade jurídica e econômica para a geração dessas receitas  não precisam apresentar um vínculo material com a prestação do serviço e  nem gerar funcionalidades adicionais aos usuários ou ao serviço concedido. A  aposta é no sentido de que os investimentos privados devem impulsionar o  atingimento das metas de universalização estabelecidas para 2033. 

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1 Senadores criticam vetos do governo ao Marco Legal do Saneamento. Senado Notícias,  15.07.2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/15/senadores-criticam-vetos-do-governo-ao-marco-legal-do-saneamento. Acesso em: 17.07.2020.

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2 VALIM, Rafael. Notas sobre o financiamento e a remuneração de concessões comuns e de  parcerias público-privadas. Revista Brasileira de Infraestrutura. Belo Horizonte, ano 1, n. 1,  jan/jun. 2012.

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3 SCHWIND, Rafael Wallbach. A remuneração do concessionário. Belo Horizonte: Fórum,  2010. p. 264.

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4 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo:  Dialética, 2003. p. 373.

Isabella Karollina Rossito

Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FDRP-USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.

Isabella Karollina Rossito

Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FDRP-USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.