O anúncio acerca da alteração na Presidência da Petrobras impõe a retomada da discussão acerca da influência (interferência) política nas empresas estatais brasileiras – que desde muito tempo enfrentam problemas de eficiência, transparência, influência política e corrupção.
A Lei das Estatais, de 2016, refletiu justamente o interesse da sociedade civil e da Administração Pública na diminuição do risco de corrupção, obtenção de objetivos empresariais, alcance de uma gestão mais responsável e eficiente economicamente. Nesse contexto, acrescentou alguns deveres ao acionista controlador público, dentre eles o de “preservar a independência do Conselho de Administração no exercício de suas funções” (art. 14, II, da Lei 13.303).
Esse dever é uma inovação legislativa que merece destaque. Ainda que os conselheiros já tivessem o dever de atuar no “interesse da companhia” e não no seu próprio ou de outrem, a preservação da independência do Conselho de Administração passou a ser dever do Estado na função de controlador.
A intenção do legislador, inspirado no Guia de Governança Corporativa para Empresas Estatais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (que fornece referências para os governos avaliarem e melhorarem o exercício do seu poder de controle em estatais), foi a de que o controlador público respeite as instâncias decisórias das estatais e não pretenda impor suas decisões de forma unilateral e autoritária; que observe os órgãos competentes, a transparência e o debate, seja com os minoritários, empregados, membros independentes.
O dever de preservar a independência do Conselho exige do controlador público uma postura ativa. Não basta o cumprimento dos requisitos legais de indicação dos conselheiros e o respeito às vedações (art. 17 da Lei 13.303). O controlador deve ir além, deve garantir a boa governança, a proteção dos acionistas, a eficiência da companhia, a valorização da empresa e a confiança do mercado e dos credores.
Mas, considerando o contexto sociopolítico das empresas estatais no Brasil, exemplificado recentemente pelos fatos envolvendo a Petrobras, é inevitável questionar se é mesmo possível a existência de um Conselho de Administração independente. E mais: é viável que essa independência seja garantida pelo próprio acionista controlador, que além de exercer o poder de controle, indica a maioria dos membros do Conselho?
A grande dificuldade das empresas estatais sempre foi a separação entre as funções do Estado como acionista controlador e do Estado como governo, como regulador, como implementador de políticas públicas. Tanto é que a Lei das Estatais, no contexto pós Operação Lava Jato, ampliou os requisitos de qualificação das pessoas a serem indicadas e eleitas como administradores. As novas regras se dirigem justamente à diminuição da influência política na composição do Conselho de Administração e na Diretoria das estatais.
O Conselho de Administração encarrega-se do processo decisório e do direcionamento estratégico dos negócios da empresa. Trata-se do órgão chave. É eleito e pode ser destituído pela Assembleia Geral (art. 140 da Lei 6.404), mas é a instância competente para eleger e destituir os Diretores da companhia (art. 142 da Lei 6.404). Não é diferente nas empresas estatais (ao menos não formalmente).
No caso da Petrobras, o Conselho de Administração é composto por onze membros, sendo sete indicados pela União Federal. Os outros são indicados pelos demais acionistas e empregados. O Estatuto Social da Petrobras ratifica a previsão legal acerca da competência do Conselho para escolher o Presidente e os demais Diretores (art. 20). Prevê que o Conselho deverá observar a capacidade profissional, o notório conhecimento e a especialização nas respectivas áreas de atuação desses administradores (art. 20, parágrafo 1º). Em relação aos membros da Diretoria, além dos requisitos exigíveis para os membros do Conselho, o Estatuto prevê que deverão possuir 10 anos de experiência em liderança, preferencialmente no negócio da empresa ou área relacionada (art. 20, parágrafo terceiro).
Quando a Lei 13.303 estabelece que a independência do Conselho de Administração deve ser preservada, pressupõe a sua existência. Mas também pressupõe que ela pode não existir em algum momento, o que demandará medidas ativas para a sua preservação. E reconhece ainda a estrutura legal do poder de controle do acionista controlador, que é muito forte e definida.
A Lei das S/A permite a intervenção do controlador em assuntos relativos à gestão ordinária da empresa, por meio da possibilidade de convocação de assembleia geral (faculdade utilizada pelo Ministério de Minas e Energia no caso da Petrobras). Além disso, apesar de não poder praticar atos de competência de outros órgãos, o controlador pode orientar as atividades dos administradores (art. 116, “b”, Lei 6.404) e destitui-los a qualquer tempo (art. 122, II, da Lei 6.404).
Nas empresas estatais, existe ainda a supervisão ministerial (art. 19, Decreto-Lei 200), que significa a orientação, coordenação e controle das atividades dos órgãos subordinados a determinado Ministério. Essa supervisão permite que o controlador público verifique se os caminhos empresariais estão alinhados com as finalidades da política de Estado, por meio de relatórios, boletins, informações que permitam o acompanhamento das atividades, a execução do orçamento, a programação financeira do governo.
De todo modo, o fato de o Governo alterar com certa frequência os administradores das estatais demonstra o reconhecimento de que eles, os diretores e conselheiros, influenciam de fato os rumos dessas empresas. A substituição dos gestores pressupõe que a atuação deles pode refletir efetivamente no direcionamento e desempenho das empresas estatais. Reconhece-se, com isso, a existência de independência no Conselho de Administração.
A independência do Conselho, pressuposta pela Lei, não significa, naturalmente, uma atuação totalmente livre. Pelo contrário, ela possibilita o atendimento estrito aos interesses e ao objeto social das empresas estatais. A garantia da independência pressupõe a “dependência” à empresa, ao seu objeto social e à a finalidade pública que justificou a constituição da companhia estatal. O exercício desse dever pelo controlador contribui para que a gestão da empresa estatal possa ser (mais) livre de influências políticas e, com isso, mais eficiente.
Tal como os outros deveres, o descumprimento do dever de preservação da independência do Conselho pelo controlador pode implicar a sua responsabilização. A Lei das S/A prevê a responsabilização do controlador que ultrapassa os limites legais e abusa do poder de controle (art. 117 da Lei 6.404). Da mesma forma ocorre com a Lei das Estatais (art. 15). Mas não é só isso: a Lei 13.303 amplia o rol de legitimados para propor ação de reparação de danos contra o acionista controlador, incluindo o terceiro prejudicado e os demais acionistas, independentemente de autorização da assembleia geral (art. 15, parágrafo único). Ou seja, inova em relação à possibilidade de maior efetividade das medidas a serem tomadas em caso de descumprimento da Lei.
Não há dúvidas de que o dever do controlador público de preservar a independência do Conselho de Administração é um grande desafio. Na verdade, a própria aplicação da Lei das Estatais e o consequente tratamento das estatais como empresas, observando a lógica empresarial inerente à sua natureza, é um grande desafio no contexto sociopolítico brasileiro.
De qualquer forma, é uma evolução na governança das empresas estatais e segue a linha das orientações e recomendações internacionais. A orientação dos negócios das empresas estatais por meio de um Conselho de Administração (mais) independente representa descentralização, na medida em que o órgão se aproxima mais da direção e da gestão e se distancia do controlador público e dos interesses políticos.
A realidade brasileira sempre desafia a aplicação da legislação. Não seria diferente no caso específico da Petrobras. Mas existem mecanismos legais a serem explorados para que a atuação do Conselho de Administração da estatal se dê em prol do interesse da companhia e da finalidade pública para a qual foi criada.