Informativo Eletrônico - Edição 166 - Dezembro / 2020

A NOVA LEI DE LICITAÇÕES – AS REGRAS RELACIONADAS ÀS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS DE INOVAÇÃO

Rodrigo Goulart de Freitas Pombo

1. Introdução

A Nova Lei de Licitações (PL 4.253/2020) contém uma série de regras relacionadas às contratações públicas de inovação. Essas regras produzem a conexão da disciplina geral de licitações e contratos com a disciplina especial da Lei de Inovação (Lei 10.973/2004, com suas alterações posteriores).¹

Algumas das regras constantes da Nova Lei são mera repetição da Lei 8.666. Mas há regras que contêm alterações pontuais, além de regras até o momento inexistentes, que configuram novidades importantes. O presente artigo analisa de modo objetivo essa disciplina.

2. A dispensa de licitação para contratação de encomenda tecnológica (ETEC) e outros ajustes da Lei de Inovação

O art. 74 da Nova Lei prevê as hipóteses de dispensa de licitação, em linha semelhante à disciplina da Lei 8.666.

O inc. V do referido art. 74 prevê a dispensa de licitação se reportando a a ajustes específicos da Lei de Inovação (Lei 10.973):  “V – para contratação com vistas ao cumprimento do disposto nos arts. 3º, 3º-A, 4º, 5º e 20 da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, observados os princípios gerais de contratação constantes da referida Lei;”.

Essa regra tem equivalência com o inc. XXXI do art. 24 da Lei 8.666. Ambos preveem a dispensa de licitação para realizar contratações de modelos específicos da Lei de Inovação.

O art. 3º da Lei de Inovação versa sobre a constituição de alianças estratégicas entre a Administração Pública, agências de fomento, Instituições Científicas e Tecnológicas – ICTs, empresas e entidades privadas sem fins lucrativos, para atividades de pesquisa e desenvolvimento, destinadas à geração de produtos, processos e serviços inovadores e à transferência e difusão de tecnologia.

O art. 4º da Lei de Inovação prevê que a ICT pública poderá celebrar contrato ou convênio, por prazo determinado e mediante contrapartida financeira ou não financeira, para o compartilhamento ou cessão de instalações ou materiais, nos termos dos incs. I e II, respectivamente. Além disso, o inc. III alude à permissão para uso do capital intelectual, por terceiro, em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação.

O art. 5º trata da participação estatal minoritária no capital de empresa privada de propósito específico que vise ao desenvolvimento de projetos científicos ou tecnológicos para obtenção de produto ou processo inovadores. Trata-se aqui da constituição de uma pessoa jurídica específica, o que confere o caráter societário à figura.

O art. 20 da Lei de Inovação disciplina a encomenda tecnológica (ETEC). Para uma análise completa dessa figura, incluindo a disciplina de contratação prevista na Lei 10.973 e no Decreto 9.283, confira-se a obra do autor: Rodrigo Goulart de Freitas Pombo, Contratos Públicos na Lei de Inovação: transferência de tecnologia, acordo de parceria e encomenda tecnológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 125-200.

A novidade da Nova Lei de Licitações é a inclusão do art. 3º-A da Lei de Inovação entre as hipóteses de dispensa. O referido art. 3º-A tem a seguinte redação:

“Art. 3º-A. A Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP, como secretaria executiva do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e as Agências Financeiras Oficiais de Fomento poderão celebrar convênios e contratos, nos termos do inciso XIII do art. 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, por prazo determinado, com as fundações de apoio, com a finalidade de dar apoio às IFES e demais ICTs, inclusive na gestão administrativa e financeira dos projetos mencionados no caput do art. 1º da Lei nº 8.958, de 20 de dezembro de 1994, com a anuência expressa das instituições apoiadas”.

Reputa-se ser relevante a previsão de dispensa para determinados ajustes relacionados às atividades de inovação. Porém, a técnica legislativa adotada, consistente em aludir aos dispositivos da Lei de Inovação, não é a mais adequada. Especialmente no tocante às figuras do art. 3º e 3º-A da Lei de Inovação, dado o seu caráter genérico, pode haver controvérsias sobre os pressupostos para a dispensa de licitação, gerando impasses.

Um ponto essencial consiste na necessidade de se estabelecer, ainda que no plano regulamentar, os procedimentos específicos de dispensa a serem observados em cada caso. É o que ocorre, por exemplo, em relação à encomenda tecnológica, como se vê do Decreto 9.283 (art. 27 e ss.).

3. A dispensa de licitação para as contratações de transferência de tecnologia e licenciamento por ICT e agência de fomento

O art. 74, inc. IV, al. “d” da Nova Lei alude à dispensa de licitação para “d) transferência de tecnologia ou licenciamento de direito de uso ou de exploração de criação protegida, nas contratações realizadas por Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação (ICT) pública ou por agência de fomento, desde que demonstrada vantagem para a Administração;”.

Essa regra tem semelhança com o inc. XXV do art. 24 da Lei 8.666.

Conforme demonstrado pelo autor em obra específica sobre as contratações públicas de inovação, essa hipótese se relaciona de modo mais evidente com o art. 6º da Lei de Inovação, que prevê os contratos de transferência de tecnologia (em sentido estrito ou contrato de know how) e de licenciamento de direito de criação protegida por monopólio temporário. Nesses casos, a ICT pública ou a agência de fomento são as detentoras da tecnologia ou dos direitos, que em decorrência do ajuste são transferidos a terceiro. Mas essa hipótese de dispensa abrange também a contratação do art. 7º da Lei de Inovação, em que as ICTs públicas figuram como receptoras da tecnologia ou licenciadas.

Os pressupostos da contratação direta nesses casos estão disciplinados na Lei de Inovação e no Decreto 9.283, cabendo às ICTs disciplinarem internamente aspectos do procedimento de contratação e escolha dos contratados. Para uma análise completa desse tema, veja-se: POMBO, Rodrigo Goulart de Freitas. Contratos Públicos na Lei de Inovação: transferência de tecnologia, acordo de parceria e encomenda tecnológica. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020, p. 65-95.

A novidade da Nova Lei nesse ponto é a previsão, na parte final da al. “d” do inc. IV do art. 74, de que a dispensa é admitida “desde que demonstrada vantagem para a Administração”. Essa ressalva deve ser entendida com cautela, de modo a preservar a essência dos contratos de transferência de tecnologia. Em muitos casos, essas contratações envolvem acentuado caráter de fomento ao setor produtivo, com vantagens apenas mediatas ou indiretas à Administração. Nesses casos, ainda que não exista um benefício direito e imediato à Administração (remuneração determinada, por exemplo), não haverá impedimento à contratação, desde que observados os pressupostos previstos nas normas aplicáveis.

4. Contratações envolvendo transferência de tecnologia na área de saúde

Outra hipótese de dispensa de licitação existente na Lei 8.666 (art. 24, inc. XXXII) e que consta da Nova Lei de Licitações é a de contratações envolvendo transferência de tecnologia de produtos estrategicos para o Sistema Único de Saúde (SUS). Essa hipótese está prevista no art. 74, inc. XII, da Nova Lei:

“XII – para contratação em que houver transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme elencados em ato da direção nacional do SUS, inclusive por ocasião da aquisição desses produtos durante as etapas de absorção tecnológica, e em valores compatíveis com aqueles definidos no instrumento firmado para a transferência de tecnologia;”

Essa hipótese tem vínculo com a Parceria para o Desenvolvimento Produtivo de medicamentos (PDP), que envolve a transferência de tecnologia de uma empresa privada para um laboratório público, tendo como contraprestação (ou parte dela) a obrigação de adquirir o medicamento da fornecedora de tecnologia por um período inicial.

5. A autorização expressa para compartilhamento de direitos patrimoniais

A Nova Lei contém uma novidade importante, consistente na autorização expressa para a Administração Pública compartilhe direitos patrimoniais no âmbito de ajustes subordinados à Lei de Inovação. O art. 92, § 2º do PL prevê o seguinte:

“Art. 92. Nas contratações de projetos ou de serviços técnicos especializados, inclusive daqueles que contemplem o desenvolvimento de programas e aplicações de internet para computadores, máquinas, equipamentos e dispositivos de tratamento e de comunicação da informação (software) e a respectiva documentação técnica associada, o autor deverá ceder todos os direitos patrimoniais a eles relativos para a Administração Pública, hipótese em que poderão ser livremente utilizados e alterados por ela em outras ocasiões, sem necessidade de nova autorização de seu autor”.
“§ 2º É facultado à Administração Pública deixar de exigir a cessão de direitos a que se refere o caput deste artigo quando o objeto da contratação envolver atividade de pesquisa e desenvolvimento de caráter científico, tecnológico ou de inovação, considerados os princípios e mecanismos instituídos pela Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004”.

O art. 111 da Lei 8.666, que atualmente trata do tema, não contém previsão similar à contida no § 2º acima transcrito. Mas a disciplina específica da Lei de Inovação já contempla modelos em que a cessão ou o compartilhamento desses direitos é possível e mesmo desejável – como se passa com a encomenda tecnológica, por exemplo. Sobre o tema, confira-se a obra do autor: Contratos Públicos na Lei de Inovação: transferência de tecnologia, acordo de parceria e encomenda tecnológica. Rio de Janeiro, Lumen Juris: 2020, p. 153-156.

Tendo em vista essa disciplina específica da Lei de Inovação, já se defendia o cabimento da cessão ou compartilhamento desses direitos no âmbito de ajustes submetidos a esse regime especial. Porém, a previsão expressa da lei geral de licitação será importante por esclarecer de modo definitivo essa possibilidade.

6. O procedimento de manifestação de interesse – PMI sobre soluções inovadoras

Outra novidade importante consiste na previsão de procedimento de manifestação de interesse – PMI para a “propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública, na forma de regulamento” (art. 80).

O § 4º prevê anda a possibilidade de o PMI para a propositura de soluções inovadoras ser restrito a startups, nos seguintes termos:

“O procedimento previsto no caput deste artigo poderá ser restrito a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto, exigida, na seleção definitiva da inovação, validação prévia fundamentada em métricas objetivas, de modo a demonstrar o atendimento das necessidades da Administração”.

Trata-se de um modelo que permite proporcionar o atendimento de necessidades públicos ao fomento de empresas emergentes, mediante a utilização de soluções inovadoras por elas desenvolvidas. É salutar a sua previsão específica no âmbito da nova Lei de Licitações.

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¹ Para uma análise da disciplina de licitações e contratos contida na Lei de Inovação, confira a obra do autor: Rodrigo Goulart de Freitas Pombo. Contratos Públicos na Lei de Inovação: transferência de tecnolologia, acordo de parceria e encomenda tecnológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

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Rodrigo Goulart de Freitas Pombo
Rodrigo Goulart de Freitas Pombo
Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Especialista em Direito Econômico Regulatório pela FGVLaw. Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Rodrigo Goulart de Freitas Pombo
Rodrigo Goulart de Freitas Pombo
Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Especialista em Direito Econômico Regulatório pela FGVLaw. Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.