Informativo Eletrônico - Edição 173 - Julho / 2021

A VEDAÇÃO À AQUISIÇÃO DE ARTIGOS DE LUXO E SUA APLICAÇÃO EXTENSIVA PARA A CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS

Stella Farfus Santos

1. A vedação à aquisição de artigos de luxo pela Administração Pública  

A Lei 14.133/2021 apresentou inovações relevantes em relação à  atividade da Administração Pública. Uma delas diz respeito à vedação da  aquisição de artigos de luxo pelos entes da Administração, prevista no art. 20. 

Além de vedar qualquer aquisição de artigos de luxo pela Administração,  o dispositivo estabelece que “Os itens de consumo adquiridos para suprir as  demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade  comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se  destinam”.

2. A subjetividade do dispositivo 

O art. 20 não traz uma definição de “artigo de luxo”, tampouco elenca os  bens que deveriam ser qualificados como tal. Aliás, o dispositivo é  extremamente simplório. Limita-se a vedar quaisquer contratações que  envolvam artigos de luxo, sem estabelecer nenhuma exceção à regra,  determinando apenas que as próprias autoridades competentes deverão  regulamentar a questão.

Além de a ausência de exceções ser equivocada, considerando que  podem existir situações específicas em que a contratação de objetos ou  serviços de luxo seja necessária (e.g. recepção da comunidade internacional,  que pode exigir regras de etiqueta diplomáticas mais sofisticadas), o conceito  jurídico indeterminado de “objeto de luxo” é problemático.

Há objetos que claramente devem ser enquadrados em tal categoria,  enquanto há outros que evidentemente não se enquadram nela. A despeito de  a lei não trazer um conceito determinado, ela traz o pressuposto de que todo o  objeto ou serviço que ultrapassar a necessidade e a adequabilidade das  necessidades da Administração deverá ser qualificado como de luxo. No  entanto, há uma área razoável de incerteza que deverá ser minimizada com a  regulamentação exigida pela Lei 14.133/2021. 

3. A necessidade de uma vedação explícita: a limitação da  discricionariedade administrativa 

Para Marçal Justen Filho, a incidência da proporcionalidade na vigência  da Lei 8.666/1993 já conduzia “à vedação à aquisição de produtos dotados de  atributos de qualquer natureza – inclusive a qualidade – que super[asse] o  mínimo necessário à satisfação nas necessidades a serem atendidas” (Comentários à lei de licitações e contratações administrativas, p. 368).

Contudo, diante de exageros cometidos pela Administração Pública e  visando à manutenção de um discurso político específico, a Lei 14.133/2021  previu de forma explícita a vedação em comento.

A vedação constante do art. 20 foi incluída no diploma legal após a  incorporação da emenda apresentada pelo deputado Gilson Marques, do  Partido Novo.

A emenda foi editada após notícias de diversas compras de bens de  consumo de qualidade considerada desnecessariamente opulenta pela  Administração Pública, especialmente após a realização de processo licitatório  pelo STF para aquisição, dentre outros itens, de vinhos premiados  internacionalmente e lagostas (https://veja.abril.com.br/politica/stf-faz-licitacao-de-r-11-milhao-para-comprar-lagostas-e-vinhos/. Acesso em: 29/7/2021).

 A licitação realizada pelo STF causou tamanha repercussão negativa  que foi questionada no âmbito do Judiciário e Tribunal de Contas da União.

O Relator do caso no TCU, Min. Benjamin Zymler, destacou que o nível  de “sofisticação” exigido dos pratos e bebidas contratados pelo STF estaria  “sujeito a algum grau de discricionariedade” e que por isso o TCU não poderia  “fazer um juízo de certeza positiva ou negativa sobre a escolha” (TC  009.423/2019-2, Acórdão 2924/2019, Min. Benjamin Zymler, j. 4/12/2019). 

No Judiciário, a contratação foi inicialmente suspensa. A decisão  reconheceu que a contratação ofenderia o princípio da moralidade (JFDF, Ação  Popular 101116-39.2019.4.01.3400, decisão monocrática proferida em  6/5/2019). Posteriormente, a decisão foi reformada pelo então Des. Kassio  Marques no TRF1, após a interposição de recurso pela Advocacia-Geral da  União. 

Diante do cenário de diversas contratações consideradas  desnecessariamente opulentas pela Administração, bem como da manutenção  de algumas delas pelo Judiciário e TCU, a limitação explícita da  discricionariedade da Administração para esta espécie de contratação  (aquisição de artigos de luxo) se mostrou necessária para evitar excessos e  exageros esdrúxulos – tanto é que a Lei 14.133/2021 sugere a definição em  regulamento dos limites para o enquadramento dos bens de consumo nas  categorias comum e luxo (art. 20, §1º).

Além disso, a Lei define que a partir de 180 dias contados da  promulgação da Lei, novas compras de bens de consumo só poderão ser efetivadas com a edição do regulamento pelos Poderes Executivo, Legislativo e  Judiciário (art. 20, §2º). 

4. A consequência da ausência de regulamentação do art. 20, §1º, da Lei  14.133/2021 

A regulamentação exigida no art. 20, §1º, da Lei 14.133/2021 ainda não  foi levada a efeito pela Administração Pública. Trata-se de um dos quarenta  artigos da Lei que aludem à exigência de regulamentação. 

Considera-se que a única interpretação possível do artigo é a de que,  após o período indicado no dispositivo (180 dias contados da promulgação da  Lei) e na ausência da regulamentação tempestiva, o fiel cumprimento dos §§1º  e 2º do art. 20 implica a impossibilidade de aquisição de quaisquer bens pela  Administração, uma vez que, sem a regulamentação específica, qualquer  objeto/serviço poderá posteriormente vir a ser qualificado como de luxo e  inviabilizar contratações em andamento ou tornar irregulares eventuais contratações efetivadas pela Administração quando da ausência de  regulamentação.

No entanto, é importante destacar que, de acordo com Marçal Justen  Filho, “a ausência de regulamentação tempestiva poderá acarretar sanções  diferenciadas, mas é problemático estabelecer uma proibição generalizada a  novas contratações” (Comentários à lei de licitações e contratações  administrativas, p. 370 – sem grifos no original). 

5. A aplicação extensiva do dispositivo para a contratação de serviços  

Além disso, apesar de o art. 20 nada ter dito a respeito de sua  aplicabilidade também à contratação de eventuais serviços de luxo pela  Administração Pública, acredita-se que a interpretação deste dispositivo deva  ser ampla, abrangendo também os serviços contratados pela Administração. 

A título exemplificativo, menciona-se a contratação de serviço à francesa  para um almoço cotidiano de autoridades públicas brasileiras. Em situações  como esta, é evidente a desnecessidade de alocação de uma quantidade  superior de funcionários ao estritamente necessário, visando a assegurar  serviço à francesa. 

Com isso, pode-se observar que também os serviços podem ser  enquadrados na categoria de luxo e não luxo. Ademais, também os serviços  devem observar a proporcionalidade almejada pela Lei 14.133. Portanto, a  aplicação do dispositivo à contratação de serviços é indiscutível.

6. Conclusão 

A vedação constante do art. 20 da Lei 14.133/2021 decorreu da  necessidade de uma proibição explícita à prática de contratações exageradas e  desnecessárias pela Administração Pública, evitando que recursos sejam  utilizados para garantir benefícios fruíveis de modo individual pelos agentes  públicos.

Por isso, o dispositivo também deve ser aplicado para a contratação de  serviços, que também podem ser qualificados como luxuosos e  desnecessários. 

A regulamentação exigida em lei será essencial para a aplicação do  dispositivo, considerando que as expressões “objeto de luxo” e “serviço de  luxo” indicam conceitos jurídicos indeterminados. 

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Stella Farfus
Stella Farfus Santos
Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Stella Farfus
Stella Farfus Santos
Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.