1. A vedação à aquisição de artigos de luxo pela Administração Pública
A Lei 14.133/2021 apresentou inovações relevantes em relação à atividade da Administração Pública. Uma delas diz respeito à vedação da aquisição de artigos de luxo pelos entes da Administração, prevista no art. 20.
Além de vedar qualquer aquisição de artigos de luxo pela Administração, o dispositivo estabelece que “Os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam”.
2. A subjetividade do dispositivo
O art. 20 não traz uma definição de “artigo de luxo”, tampouco elenca os bens que deveriam ser qualificados como tal. Aliás, o dispositivo é extremamente simplório. Limita-se a vedar quaisquer contratações que envolvam artigos de luxo, sem estabelecer nenhuma exceção à regra, determinando apenas que as próprias autoridades competentes deverão regulamentar a questão.
Além de a ausência de exceções ser equivocada, considerando que podem existir situações específicas em que a contratação de objetos ou serviços de luxo seja necessária (e.g. recepção da comunidade internacional, que pode exigir regras de etiqueta diplomáticas mais sofisticadas), o conceito jurídico indeterminado de “objeto de luxo” é problemático.
Há objetos que claramente devem ser enquadrados em tal categoria, enquanto há outros que evidentemente não se enquadram nela. A despeito de a lei não trazer um conceito determinado, ela traz o pressuposto de que todo o objeto ou serviço que ultrapassar a necessidade e a adequabilidade das necessidades da Administração deverá ser qualificado como de luxo. No entanto, há uma área razoável de incerteza que deverá ser minimizada com a regulamentação exigida pela Lei 14.133/2021.
3. A necessidade de uma vedação explícita: a limitação da discricionariedade administrativa
Para Marçal Justen Filho, a incidência da proporcionalidade na vigência da Lei 8.666/1993 já conduzia “à vedação à aquisição de produtos dotados de atributos de qualquer natureza – inclusive a qualidade – que super[asse] o mínimo necessário à satisfação nas necessidades a serem atendidas” (Comentários à lei de licitações e contratações administrativas, p. 368).
Contudo, diante de exageros cometidos pela Administração Pública e visando à manutenção de um discurso político específico, a Lei 14.133/2021 previu de forma explícita a vedação em comento.
A vedação constante do art. 20 foi incluída no diploma legal após a incorporação da emenda apresentada pelo deputado Gilson Marques, do Partido Novo.
A emenda foi editada após notícias de diversas compras de bens de consumo de qualidade considerada desnecessariamente opulenta pela Administração Pública, especialmente após a realização de processo licitatório pelo STF para aquisição, dentre outros itens, de vinhos premiados internacionalmente e lagostas (https://veja.abril.com.br/politica/stf-faz-licitacao-de-r-11-milhao-para-comprar-lagostas-e-vinhos/. Acesso em: 29/7/2021).
A licitação realizada pelo STF causou tamanha repercussão negativa que foi questionada no âmbito do Judiciário e Tribunal de Contas da União.
O Relator do caso no TCU, Min. Benjamin Zymler, destacou que o nível de “sofisticação” exigido dos pratos e bebidas contratados pelo STF estaria “sujeito a algum grau de discricionariedade” e que por isso o TCU não poderia “fazer um juízo de certeza positiva ou negativa sobre a escolha” (TC 009.423/2019-2, Acórdão 2924/2019, Min. Benjamin Zymler, j. 4/12/2019).
No Judiciário, a contratação foi inicialmente suspensa. A decisão reconheceu que a contratação ofenderia o princípio da moralidade (JFDF, Ação Popular 101116-39.2019.4.01.3400, decisão monocrática proferida em 6/5/2019). Posteriormente, a decisão foi reformada pelo então Des. Kassio Marques no TRF1, após a interposição de recurso pela Advocacia-Geral da União.
Diante do cenário de diversas contratações consideradas desnecessariamente opulentas pela Administração, bem como da manutenção de algumas delas pelo Judiciário e TCU, a limitação explícita da discricionariedade da Administração para esta espécie de contratação (aquisição de artigos de luxo) se mostrou necessária para evitar excessos e exageros esdrúxulos – tanto é que a Lei 14.133/2021 sugere a definição em regulamento dos limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo (art. 20, §1º).
Além disso, a Lei define que a partir de 180 dias contados da promulgação da Lei, novas compras de bens de consumo só poderão ser efetivadas com a edição do regulamento pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 20, §2º).
4. A consequência da ausência de regulamentação do art. 20, §1º, da Lei 14.133/2021
A regulamentação exigida no art. 20, §1º, da Lei 14.133/2021 ainda não foi levada a efeito pela Administração Pública. Trata-se de um dos quarenta artigos da Lei que aludem à exigência de regulamentação.
Considera-se que a única interpretação possível do artigo é a de que, após o período indicado no dispositivo (180 dias contados da promulgação da Lei) e na ausência da regulamentação tempestiva, o fiel cumprimento dos §§1º e 2º do art. 20 implica a impossibilidade de aquisição de quaisquer bens pela Administração, uma vez que, sem a regulamentação específica, qualquer objeto/serviço poderá posteriormente vir a ser qualificado como de luxo e inviabilizar contratações em andamento ou tornar irregulares eventuais contratações efetivadas pela Administração quando da ausência de regulamentação.
No entanto, é importante destacar que, de acordo com Marçal Justen Filho, “a ausência de regulamentação tempestiva poderá acarretar sanções diferenciadas, mas é problemático estabelecer uma proibição generalizada a novas contratações” (Comentários à lei de licitações e contratações administrativas, p. 370 – sem grifos no original).
5. A aplicação extensiva do dispositivo para a contratação de serviços
Além disso, apesar de o art. 20 nada ter dito a respeito de sua aplicabilidade também à contratação de eventuais serviços de luxo pela Administração Pública, acredita-se que a interpretação deste dispositivo deva ser ampla, abrangendo também os serviços contratados pela Administração.
A título exemplificativo, menciona-se a contratação de serviço à francesa para um almoço cotidiano de autoridades públicas brasileiras. Em situações como esta, é evidente a desnecessidade de alocação de uma quantidade superior de funcionários ao estritamente necessário, visando a assegurar serviço à francesa.
Com isso, pode-se observar que também os serviços podem ser enquadrados na categoria de luxo e não luxo. Ademais, também os serviços devem observar a proporcionalidade almejada pela Lei 14.133. Portanto, a aplicação do dispositivo à contratação de serviços é indiscutível.
6. Conclusão
A vedação constante do art. 20 da Lei 14.133/2021 decorreu da necessidade de uma proibição explícita à prática de contratações exageradas e desnecessárias pela Administração Pública, evitando que recursos sejam utilizados para garantir benefícios fruíveis de modo individual pelos agentes públicos.
Por isso, o dispositivo também deve ser aplicado para a contratação de serviços, que também podem ser qualificados como luxuosos e desnecessários.
A regulamentação exigida em lei será essencial para a aplicação do dispositivo, considerando que as expressões “objeto de luxo” e “serviço de luxo” indicam conceitos jurídicos indeterminados.