Informativo Eletrônico - Edição 193 - Março / 2023

CONDIÇÕES DE ENDOSSO INSTITUCIONAL: LIMITES E POSSIBILIDADES DE NEGOCIAÇÃO E FORMALIZAÇÃO

Lucas de Moura Rodrigues

1. As condições de endosso institucional

Para empreendimentos de médio a alto nível de complexidade, é necessário fazer um levantamento arqueológico do local das obras. Tal levantamento depende da emissão de licença do MINC/IPHAN autorizando a sua realização, mediante processo administrativo em que, entre outros documentos, é apresentado o “endosso institucional”. Trata-se de documento por meio do qual uma instituição de ensino e pesquisa se compromete a salvaguardar o material que será coletado durante o levantamento arqueológico (art. 5º, VII, da Portaria MINC/IPHAN 7/1998).

Não existe previsão legal ou regulamentar que obrigue as instituições de endosso a fazerem exigências específicas em relação ao empreendedor do projeto. Há apenas uma obrigação ampla, na Portaria MINC/IPHAN 230/2002, de o empreendedor garantir a conservação, acondicionamento, divulgação e pagamento de contrapartida financeira pelo endosso, além de uma previsão geral, na Instrução Normativa MINC/IPHAN 1/2015, dos procedimentos que devem ser observados pelo MINC/IPHAN nos licenciamentos ambientais de que ele participe:

Portaria MINC/IPHAN 230/2002
Art. 6º 
(…)
§ 7º – O desenvolvimento dos estudos arqueológicos acima descritos, em todas as suas fases, implica trabalhos de laboratório e gabinete (limpeza, triagem, registro, análise, interpretação, acondicionamento adequado do material coletado em campo, bem como programa de Educação Patrimonial), os quais deverão estar previstos nos contratos entre os empreendedores e os arqueólogos responsáveis pelos estudos, tanto em termos de orçamento quanto de cronograma.
(…)
§ 8º – No caso da destinação da guarda do material arqueológico retirado nas áreas, regiões ou municípios onde foram realizadas pesquisas arqueológicas, a guarda destes vestígios arqueológicos deverá ser garantida pelo empreendedor, seja na modernização, na ampliação, no fortalecimento de unidades existentes, ou mesmo na construção de unidades museológicas específicas para o caso.
IN MINC/IPHAN 1/2015
Art. 51. A responsabilidade pela conservação dos bens arqueológicos é do Arqueólogo Coordenador durante a etapa de campo e da Instituição de Guarda e Pesquisa, após seu recebimento.
Parágrafo único. Caberá ao Empreendedor executar as ações relacionadas à conservação dos bens arqueológicos decorrentes do empreendimento, incluindo, quando couber, a conservação de bens arqueológicos in situ, a viabilização de espaço apropriado para guarda ou a melhoria de Instituição de Guarda e Pesquisa para bens móveis.

Em todo caso, tais previsões genéricas são tomadas como fundamento para a realização de exigências diversas quanto à recepção do material que vier a ser coletado¹.

Com base na relação exemplificativa abaixo, as exigências envolvem a conservação, o acondicionamento dos bens em embalagens a serem colocadas em caixas marfinite, a separação desses bens de acordo com as necessidades e tipologia dos vestígios, a viabilização de espaço para a sua guarda, a disponibilização de documentos, a divulgação dos trabalhos e o pagamento de contrapartida financeira pelo endosso.

#InstituiçãoCondiçõesValor do endosso
1UFPelConservação, acondicionamento dos bens em embalagens a serem colocadas em caixas marfinite, separação desses bens por tipo de material e sítio, disponibilização de documentos e pagamento de contrapartida financeira pelo endossoNão definido normativamente
2NuPHAConservação, acondicionamento dos bens em embalagens a serem colocadas em caixas marfinite, separação desses bens de acordo com as necessidades e tipologia dos vestígios, disponibilização de documentos, divulgação dos trabalhos e pagamento de contrapartida financeira pelo endossoNão definido normativamente
3Museu de Arqueologia e Paleontologia da UFPIConservação, acondicionamento dos bens em caixas padronizadas, disponibilização de documentos, divulgação dos trabalhos e pagamento de contrapartida financeira pelo endossoNão definido normativamente
4Museu Histórico de JataíConservação, acondicionamento dos bens em embalagens a serem colocadas em caixas marfinite, separação desses bens por tipo de material e sítio, disponibilização de documentos, divulgação dos trabalhos e pagamento de contrapartida financeira pelo endosso10% do valor do projeto arqueológico
5Museu Antropológico da UFGConservação, acondicionamento dos bens em embalagens, viabilização de espaço para sua guarda, disponibilização de documentos, divulgação dos trabalhos e pagamento de contrapartida financeira pelo endosso1% do valor do projeto para pesquisadores da própria UFG e 10% do valor do projeto para pesquisadores externos à UFG, mais R$ 10.000,00 por metro cúbico de acervo, investimentos no Museu e taxas administrativas da UFG e sua fundação de apoio
6UEGConservação, acondicionamento dos bens em embalagens, separação desses bens por tipo de material e sítio, viabilização de espaço para sua guarda, disponibilização de documentos, divulgação dos trabalhos e pagamento de contrapartida financeira pelo endosso5% do valor do projeto arqueológico, mais R$ 8.000,00 por metro cúbico de acervo gerado pela pesquisa
7UFPRConservação, acondicionamento dos bens em embalagens a serem colocadas em caixas marfinite, separação desses bens por tipo de material e sítio, viabilização de espaço para sua guarda, disponibilização de documentos e pagamento de contrapartida financeira pelo endosso10% do valor do projeto arqueológico, mais R$ 300,00 para cada caixa de material entregue

2. Margem para negociação da contrapartida pelo endosso

Há margem para o empreendedor negociar o valor da contrapartida fixado pela instituição de endosso. A relação acima confirma isso: a depender da base de cálculo, o valor fixado pode ser desproporcional e divergir daquele praticado por outras instituições de endosso.

De modo geral, o valor da contrapartida é fixado em função do nível de “complexidade” do empreendimento, indicado na Ficha de Caracterização da Atividade (conforme Anexos I e II da IN MINC/IPHAN 1/2015). Há, ainda, empreendimentos para os quais a classificação por nível de complexidade não se aplica².

A razoabilidade da contrapartida deve ser analisada considerando os valores de endosso concretamente fixados para empreendimentos com nível semelhante de complexidade e, em qualquer caso, pelos valores máximos e mínimos de endosso definidos em normas das instituições de endosso, em geral.

Cabe notar que diversas das instituições relacionadas acima editaram normativas prevendo contrapartidas variando entre 1% e 10% do valor estimado para o levantamento arqueológico (independentemente do tipo e da complexidade do empreendimento). Os projetos do Museu Antropológico da UFG, do Museu Histórico de Jataí, da UFPR e do NUPEAH preveem contrapartida de 10%. Projetos da UEG contam com percentual ainda menor (5%). Ainda na UFG, caso os pesquisadores sejam da própria Universidade, a contrapartida é de apenas 1%.

Assim, e ressalvada a necessidade de examinar aspectos específicos do material encontrado, é possível entender que contrapartidas superiores a 10% destoam da prática das instituições de endosso e dão à empresa margem de negociação junto à instituição que pretende cobrar tal valor – com possibilidade de troca de instituição, caso seja demonstrada a inviabilidade do valor cobrado³.

3. Margem para definição da posição do empreendedor e da empresa de arqueologia relativamente ao endosso

A responsabilidade pelo custeio da contrapartida é do empreendedor, mas a execução dessa e de outras obrigações relacionadas ao endosso geralmente é atribuída a uma empresa de arqueologia e ao arqueólogo coordenador.

O papel de cada ator envolvido na tramitação do endosso é detalhado, com precisão, em artigo de Carlos Alberto Santos Costa, professor da UFRB.⁴ Segundo o autor, em geral, estão envolvidos na tramitação do endosso: (i) instituição de ensino (como “endossante”); (ii) empresa encarregada do empreendimento de impacto ambiental (financiadora indireta da instituição de endosso); (iii) empresa de arqueologia; e (iv) arqueólogo (como “endossatário” e intermediador na relação entre o MINC/IPHAN, a instituição de endosso e as empresas).

Exemplos de contratos celebrados para regular as condições do endosso confirmam que é comum a presença da empresa de arqueologia em um dos polos contratuais.

A presença da empresa de arqueologia como contratante e do empreendedor apenas como interveniente em um eventual contrato desse tipo também é coerente com a previsão da Portaria MINC/IPHAN 230/2002, segundo a qual “a guarda destes vestígios arqueológicos deverá ser garantida pelo empreendedor” (art. 6º). Embora a IN MINC/IPHAN 1/2015 estabeleça que “caberá ao Empreendedor executar as ações relacionadas à conservação dos bens arqueológicos decorrentes do empreendimento” (art. 51), tal obrigação não é qualificada como personalíssima, de modo que há margem para uma empresa subcontratada pelo empreendedor (empresa de arqueologia) executar diretamente essas ações.

Assim, eventual contrato dispondo sobre as condições do endosso pode ser celebrado entre a empresa de arqueologia e a instituição de endosso, sendo o empreendedor interveniente. De todo modo, se não for do interesse do empreendedor ser interveniente, ele pode ser contratante – também há casos concretos em que a própria empresa “financiadora” do empreendimento (e não a empresa de arqueologia) figurou como contratante.

A vantagem de figurar como parte contratante consiste basicamente em ter maior protagonismo no contrato. Sendo contratante, o empreendedor poderia deixar mais clara e facilmente demonstrável a observância das suas obrigações de garantir a conservação, acondicionamento, divulgação e pagamento de contrapartida financeira pelo endosso (Portaria MINC/IPHAN 230/2002), além das obrigações relacionadas a licenciamentos ambientais.
Também deteria maior força na relação (por exemplo, exigindo a sua anuência/consenso para distrato, fazendo objeção a alterações estipuladas entre os contratantes e tendo a possibilidade de denunciar o contrato por conta própria).

Por outro lado, como contratante, o empreendedor ficaria diretamente à mercê de eventuais obstáculos ou novas exigências, ou de responsabilização por inadimplemento seu ou da empresa de arqueologia. Esse risco pode ser alterado conforme as condições contratuais definitivas.

4. Conclusão

Em geral, as exigências feitas pelas instituições de endosso se justificam com base nas previsões do art. 6º da Portaria MINC/IPHAN 230/2002, do art. 51 da IN MINC/IPHAN 1/2015 e em normas específicas dessas instituições.

Por outro lado, com base nessas mesmas normas e das práticas de mercado, é possível afirmar que há margem para que o empreendedor negocie o valor da contrapartida fixado pela instituição de endosso – na hipótese em que ele destoa dos valores praticados pelas diversas instituições de endosso, por exemplo.

Conforme o art. 6º da Portaria MINC/IPHAN 230/2002 e o art. 51 da IN MINC/IPHAN 1/2015, a responsabilidade pelo custeio do endosso é do empreendedor, mas a execução dessa e de outras obrigações relacionadas ao endosso pode ser atribuída a uma empresa de arqueologia e ao arqueólogo coordenador.

Tal solução pode ser viabilizada por meio da formalização de vínculo contratual entre a empresa de arqueologia e a instituição de endosso, sendo o empreendedor interveniente (com as vantagens e desvantagens indicadas anteriormente).

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¹“A Portaria SPHAN 07/88 determina que o arqueólogo deve apresentar uma carta de apoio de uma instituição cientifica. Nesse sentido a Portaria IPHAN 230/02 acrescentava a obrigatoriedade da contrapartida financeira para a emissão do apoio institucional, ou seja, o empreendedor passa a ser o responsável por arcar financeiramente, não só com a pesquisa, confirmada pela declaração de endosso financeiro, como também com os custos relativos ao tratamento do acervo: ‘Art. 8º – No caso da destinação da guarda do material arqueológico retirado das áreas, regiões ou municípios onde foram realizadas pesquisas arqueológicas, a guarda desses vestígios arqueológicos deverá ser garantida pelo empreendedor, seja na modernização, na ampliação, no fortalecimento de unidades existentes, ou mesmo na construção de unidades museológicas específicas para o caso. (PORTARIA IPHAN 230/2002)’. (…). Vale ressaltar que a norma para emissão de endosso institucional, elaborada pelo NARQ, estabelece exigências e recomendações para o recebimento do acervo, a serem atendidas por pesquisadores externos. Exige a observância de procedimentos mínimos de tratamento do acervo, tal como a higienização, análise, conservação, organização, assim como a cópia da produção cientifica que acompanha o acervo. Essa norma também prevê que a documentação do material atenda os critérios de documentação da instituição, visando a inclusão no banco de dados da instituição. A política de aquisição do NARQ também estabelece condições para os casos em que a quantidade de acervos ultrapassar a capacidade de armazenamento da instituição, conforme previsto na Instrução Normativa 001/15: ‘Nos casos em que o acervo for superior à capacidade de armazenamento do NARQ, a instituição encarregada pela entrega dos materiais se responsabilizará pela construção ou ampliação de edificação, bem como pelo mobiliário necessário, visando à viabilização de espaço apropriado para a guarda e adequada conservação do acervo, conforme previsto no parágrafo único, do art. 51 da Instrução Normativa IPHAN 01/2015, caso em que será firmado entre as partes um instrumento legal específico. (RESOLUÇÃO CSU/UEG N. 797/2016)’.” (CERQUEIRA, Ádila Borges Figueira. Do passado para o futuro? Políticas de gestão de acervos arqueológicos nas instituições de guarda e pesquisa do estado de Goiás. Dissertação (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, pp. 32 e 51, 2018)

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²Conforme o Anexo da IN MINC/IPHAN 1/2015, para esses empreendimentos, “o IPHAN, a priori, não exigirá a aplicação desta Instrução Normativa”. Eventual enquadramento do projeto como empreendimento para o qual a IN “não se aplica”, em princípio, não afasta as conclusões do tópico precedente, vez que tais conclusões baseiam-se também (e principalmente) na Portaria MINC/IPHAN 230/2002. Há o dever (em tese) de arcar com a contrapartida pelo endosso – e com as demais responsabilidades relacionadas à concessão do endosso.

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³Há caso em que a empresa apontou que o valor cobrado por uma instituição do Tocantins (Núcleo Tocantinense de Arqueologia da Universidade Estadual do Tocantins) era exorbitante e, por isso, optou por uma em São Paulo (Museu Municipal Elisabeth Aytai) – e o MINC/IPHAN autorizou a opção. A justificativa foi que “o material arqueológico coletado nesse tipo de Estudo de Impacto Cultural é quantitativamente irrisório, restringindo-se, geralmente, ao material oriundo da abertura de poços-teste, o qual, pelo comprometimento do contexto, não pode ser devolvido ao subsolo”. Assim, entendeu-se que “o valor cobrado pelo NUTA/UNITINS é exorbitante, tendo em vista o pouco espaço a ser ocupado pelo material arqueológico porventura coletado, o que, além disso, não exigiria grandes investimentos para sua curadoria e guarda definitiva”. A íntegra do processo (de nº 01422.000062/2022-37) está disponível no SEI do IPHAN (https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0).

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⁴COSTA, Carlos Alberto Santos; COMERLATO, Fabiana. Você me daria um “cheque em branco”? Um olhar sobre o endosso institucional em projetos de arqueologia. Revista de Arqueologia, vol. 26, pp. 115-131, 2014.

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⁵Em projeto da empresa MM Construções, para implantação de loteamento residencial no Município de Barra dos Coqueiros/SE, um contrato objetivando “a emissão de endosso institucional” foi celebrado entre a empresa de arqueologia subcontratada pela MM Construções (a empresa Legado Arqueologia e Preservação Patrimonial) e a instituição de endosso (o Museu de Arqueologia de Xingó). O mesmo ocorreu em projeto para a implantação de complexo solar fotovoltaico nos Municípios de Limoeiro do Norte/CE e Tabuleiro do Norte/CE. O contrato que tinha por objeto o endosso institucional foi celebrado entre a empresa Preserv Consultoria Ambiental (empresa de arqueologia) e a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri (instituição de endosso). A empresa Steelcons Empreiteira Construção Civil Ltda. era a empreendedora. A íntegra dos processos (de nos 01504.000047/2019-83 e 01496.000028/2019-01) está disponível no SEI do IPHAN (https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0).

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⁶Um exemplo disso é o termo de convênio celebrado entre a Concessionária Rota do Oeste S.A. e o Instituto Homem Brasileiro – IMB tendo por objetivo “o estabelecimento de cooperação mútua para a realização de ações conjuntas, visando o apoio institucional através do fornecimento de Carta de Endosso Institucional ao Projeto de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico – Obras de Implantação do Contorno de Rondonópolis – Concernente à Duplicação da Rodovia Federal BR-163/MT”. A íntegra do processo (de nº 01425.000199/2020-08) está disponível no SEI do IPHAN (https://sei.iphan.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?acao_externa=protocolo_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo=0).

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