1. Introdução
A discussão a respeito da constitucionalidade da transferência das concessões e do controle acionário de concessionárias de serviços públicos ganhou atenção nas últimas semanas por conta dos votos já proferidos no julgamento da ADI 2.946 pelo STF.
Alega-se na ADI que que (1) a modificação da identidade ou do controle acionário do contratado seria contrária ao princípio do personalismo dos contratos administrativos, e que (2) a alteração do contratado ou do seu controle acionário seria uma burla ao princípio da licitação.
Entretanto, tais alegações não se sustentam.
2. O equívoco do contrato administrativo como negócio jurídico personalíssimo
Uma parcela da doutrina afirma que os contratos administrativos seriam negócios jurídicos personalíssimos uma vez que as qualidades pessoais e subjetivas do contratado seriam decisivas para a celebração do pacto negocial. Partindo-se desse pressuposto, afirma-se que qualquer modificação da identidade do contratado, seja pela sua substituição por outra pessoa, seja por meio da modificação de sua composição acionária, seria incompatível com a natureza personalíssima do contrato administrativo.
Entretanto, essa concepção parte de uma transposição incompleta e defasada do direito administrativo francês, o que resulta numa concepção que definitivamente não é acolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro1.
Aqui, é necessária uma digressão.
No início do século XX, as contratações administrativas na França poderiam ser submetidas a prévia licitação, mas não havia propriamente uma obrigação normativa nesse sentido. Cabia à autoridade administrativa a opção por realizar um procedimento licitatório ou contratar diretamente um particular por meio de seleção discricionária.
Essa realidade foi alterada por meio do Código de Contratos Administrativos de 1964, que instituiu um regime mais restritivo. Além disso, as normas comunitárias que surgiram posteriormente tornaram obrigatória a realização de licitações para os contratos administrativos comuns, ou seja, os contratos nos quais o particular é remunerado por meio de um preço pago pela Administração – usualmente denominados na França de marchés publics2. Contudo, essa normativa não alcançou os contratos de delegação de serviço público, para os quais foi mantida a sistemática de contratação embasada em critérios discricionários.
Portanto, no direito francês, o reconhecimento da natureza personalíssima do contrato administrativo derivava do pressuposto de que a Administração Pública exercitava um juízo discricionário ao avaliar as características subjetivas do particular para desempenhar satisfatoriamente o serviço público a ser delegado. Assim, na medida em que se tomavam em conta qualidades pessoais do contratado, tornava-se questionável a possibilidade de se ceder a posição contratual a um terceiro. Eventual cessão nesse sentido frustraria os critérios de escolha discricionária empregados pela Administração.
GEORGES DUPUIS, MARIE-JOSÉ GUÉDON e PATRICE CHRÉTIEN demonstram com muita clareza a relação entre o emprego de critérios discricionários de seleção e a característica personalíssima dos contratos administrativos. Para eles, em relação a numerosos contratos, “a Administração é livre para escolher seu co-contratante como ela assim o entender. A despeito de uma certa publicidade prévia produtora de um efeito de competição, a Administração contrata discricionariamente… São contratos concluídos intuitu personae: o co contratante é escolhido em seguida à apreciação de suas qualidades pessoais”3.
De todo modo, mesmo na França, os critérios de seleção passaram a depender cada vez menos de critérios subjetivos, daí a expressa admissão da transferência da posição contratual a terceiros, sem grandes questionamentos. LAURENT RICHER, por exemplo, ensina o seguinte: “Fala-se de cessão de contrato no caso em que um contratante é substituído por outro sem que seja estabelecido um novo liame contratual. As regras aplicáveis foram postas pela jurisprudência a propósito da concessão de serviço público. A cessão é possível, mas ela deve ser autorizada pela pessoa pública”4. No mesmo sentido, STÉPHANE BRACONNIER reconhece que “a cessão não tem por consequência a conclusão de um novo contrato, mas a continuação, sob as mesmas condições, mesmo se com um novo titular, do contrato inicialmente pactuado”5.
No Brasil, afirma-se que os contratos administrativos são intuitu personae para indicar que são celebrados mediante a verificação de certas exigências que foram fundamentais na decisão da Administração por contratar ou não determinado particular. Entretanto, esses requisitos são definidos objetivamente, e em tese podem ser preenchidos por qualquer particular. Assim, não é possível afirmar que exista em nosso ordenamento alguma norma geral que vede a cessão da posição contratual nos contratos administrativos. A rigor, a identidade do contratado é irrelevante. O que importa é que ele atenda aos requisitos definidos objetivamente na licitação e dê cumprimento integral à avença que foi firmada. Logo, o entendimento de que os contratos administrativos no Brasil seriam personalíssimos advém de uma importação equivocada de certas concepções do direito francês, que não são condizentes com o ordenamento jurídico brasileiro. A rigor, pouco importa a identidade do contratado. Se o contratado “A” é substituído por “B”, e “B” tem tantas condições para executar o contrato do que “A”, não há nenhuma vedação a que a posição contratual seja cedida. Importa, isso sim, que o contrato seja cumprido adequadamente, independentemente da identidade do contratado
A rigor, sustentar uma natureza personalíssima generalizada dos contratos administrativos seria contrariar a própria Constituição Federal, que estabeleceu no artigo 37 os princípios da objetividade e da impessoalidade como vetores da atuação da Administração Pública. Portanto, se existe um princípio geral dos contratos administrativos no Brasil, é o de que a identidade do contratado não importa. Relevante é verificar se ele atende aos requisitos necessários, que devem ser estabelecidos objetivamente, com base em razões de ordem racional.
Além disso, a legislação infraconstitucional busca estabelecer um processo objetivo de seleção dos contratados pela Administração Pública, de modo que qualquer licitante que atenda as condições de habilitação e apresentar uma proposta compatível com as exigências do edital poderá ser contratado.
Embora não se aplique integralmente às concessões e parcerias público-privadas, a Lei nº 8.666, na qualidade de lei geral de licitações e contratações públicas, contém uma série de dispositivos que rejeitam o personalismo como um princípio geral das contratações públicas. O artigo 30, § 10, por exemplo, admite a substituição de profissionais vinculados ao contratado por outros “de experiência equivalente ou superior, desde que aprovada pela administração”6. O artigo 64, § 2º, estabelece que, se o licitante vencedor não assinar o contrato, a Administração poderá convocar os licitantes remanescentes, na ordem de classificação, para fazê-lo em igual prazo e nas mesmas condições propostas pelo primeiro colocado7.
Esses dispositivos demonstram que o relevante para a Administração Pública é o cumprimento das condições objetivas que constam da oferta vencedora. Em termos de cumprimento dos contratos administrativos, pouco importa se o licitante vencedor tiver seus profissionais substituídos (desde que por outros de qualificação equivalente ou superior), ou se o contrato vier a ser assinado por outro licitante que não aquele que venceu o certame e posteriormente não celebrou a avença8. A rigor, o sujeito que assinar o contrato é irrelevante.
Portanto, a legislação brasileira não consagrou uma concepção personalíssima do contrato administrativo. Ainda que se admita a existência de contratos administrativos intuitu personae9, nos quais a identidade do contratado seja relevante, essa concepção não pode ser generalizada. A afirmação de que os contratos administrativos em geral são personalíssimos, além de constituir uma importação equivocada e desatualizada do direito francês, não se coaduna com o ordenamento jurídico brasileiro.
Como bem ensina FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO, “há quase um consenso de que concessão — como contrato administrativo em geral e como espécie particular deste gênero ainda mais — é um contrato intuitu personae. Como já referi acima, todo ajuste antecedido de procedimento de escolha que considera aspectos subjetivos do contratante, guarda o contrato administrativo um vínculo pessoal com este. Porém, tal afirmação virou entre nós quase um mantra que, repetido exaustivamente, oblitera o raciocínio jurídico. (…). O caráter pessoal não pode significar um traço personalíssimo, tal como se fosse condição do contrato sua execução exclusivamente pelo originalmente contratado”10.
No mesmo sentido, MARÇAL JUSTEN FILHO sustenta que “as tradicionais lições expostas pela doutrina em sentido contrário refletem entendimento vigente no estrangeiro e que poderiam ser aplicados no Brasil antes da adoção do princípio geral da obrigatoriedade da licitação para produção de contratos”11.
Essas lições são integralmente aplicáveis ao objeto deste ensaio. Se os contratos de concessão fossem personalíssimos, teria de se admitir que apenas o concessionário que foi contratado, e nenhum outro, reúne condições de desempenhar a prestação do serviço. Entretanto, é evidente que essa afirmação é um equívoco. Em tese, há diversas outras pessoas igualmente capacitadas, tanto em termos técnicos quanto econômico-financeiros, para desempenhar o mesmo empreendimento concedido.
Nesse sentido, perfeita a síntese de VITOR RHEIN SCHIRATO. Segundo ele, o reconhecimento de que certos contratos são intuitu personae:
(…) não implica, de forma alguma, afirmar que o contrato de concessão de serviços públicos é um contrato personalíssimo, com a mesma acepção que este termo tem no Direito Privado, onde tal espécie de contrato não pode ser cedida por representar obrigação intransferível. Caso tal assertiva fosse aplicável também ao contrato de concessão de serviços públicos, afirmar-se-ia que apenas o contratado (concessionário) reúne as condições subjetivas necessárias para prestar os serviços concedidos e tal afirmação generalizada a todos os casos representa, evidentemente, verdadeiro absurdo. Assim, pode-se concluir que os contratos de concessão de serviços públicos são intuitu personae, mas não são contratos personalíssimos. Em primeiro lugar, é mais do que óbvio que na imensa maior parte dos casos haverá mais de um sujeito habilitado a prestar um dado serviço concedido, uma vez que se não houver, recair-se-á em uma situação de inexigibilidade de licitação, nos termos do artigo 25 da Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993. Em segundo lugar, o processo de escolha do contratado é realizado exclusivamente com base em critérios objetivos, estabelecidos no respectivo processo licitatório. Não há vinculação do Poder Concedente às condições subjetivas do concessionário, mas sim à proposta por ele formulada no curso do processo licitatório. Destarte, qualquer outro particular que puder realizar as atividades do concessionário nas mesmas condições deste poderá ser cessionário de um contrato de concessão12.
3. Ausência de burla ao princípio da licitação
Afirma-se também que a cessão da posição contratual nos contratos administrativos seria uma burla ao princípio da licitação13. Assim, como as condições, inclusive subjetivas, do contrato administrativo se vinculam a uma licitação, a alteração da pessoa do contratado frustraria os objetivos do procedimento licitatório.
Segundo esse raciocínio, a própria previsão legal que contempla a transferência da concessão ou do controle acionário da licitação seria inconstitucional, uma vez que seria incompatível com a exigência constitucional de licitação prevista no artigo 175.
Contudo, esses argumentos são incorretos e conduziriam a outros efeitos igualmente não acolhidos pelo ordenamento brasileiro.
Os contratos administrativos são caracterizados pela sua mutabilidade. Além disso, reconhece-se à Administração a competência para alterar unilateralmente determinadas condições da avença. Ora, se houvesse uma vinculação absoluta e irrestrita ao resultado da licitação, o postulado da mutabilidade dos contratos administrativos teria de ser abandonado. Qualquer alteração contratual superveniente seria uma burla ao princípio da licitação. Portanto, o princípio da vinculação à licitação deve ser interpretado com razoabilidade, sob pena de se contrariarem outros princípios igualmente aplicáveis.
Note-se que o mesmo raciocínio que se põe por ocasião das alterações objetivas do contrato administrativo se aplica também às modificações subjetivas. O entendimento de que a identidade subjetiva do contratado não pode ser alterada teria de ser acompanhado, por uma questão de coerência, pela afirmação de que também as alterações nas condições objetivas originais do contrato não poderiam ser admitidas. Afinal, se existisse uma vinculação absoluta e irrestrita às condições fixadas na licitação, ela se aplicaria não só à identidade pessoal do contratado, mas a todas as outras condições contratuais com a mesma intensidade.
Contudo, é evidente a desrazão dessa afirmação. A realização de prévio certame licitatório apresenta uma série de decorrências, mas não consiste num óbice intransponível à alteração da pessoa do contratado. A rigor, a vinculação ao resultado da licitação apresenta uma natureza relativa. Não afasta a possibilidade de que haja alterações contratuais, tanto de natureza subjetiva quanto de cunho objetivo.
Na realidade, a licitação é um meio para a obtenção da proposta mais vantajosa. Assim, se essa proposta é a que está sendo executada, o interesse público está sendo observado, ainda que haja uma alteração da pessoa do contratado. Somente há uma ofensa ao interesse público se aquele que assumir a posição jurídica do contratado não tiver condições de executar as obrigações assumidas.
Nem se diga que não seriam admissíveis alterações realizadas no interesse do particular. Se o particular deseja uma alteração subjetiva no contrato administrativo e essa modificação por ele pretendida for indiferente ao interesse público, a mera circunstância de atender ao interesse privado não constitui óbice à sua implementação.
Assim, discordamos do entendimento de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO quando o doutrinador afirma que, no caso de transferência de uma concessão, “está-se admitindo a comercialização do direito de prestar o serviço e ensejando que seja repassado a um sujeito que não venceu ou sequer disputou o certame licitatório. Isto é, está-se permitindo que, por vias transversas, alguém adquira a condição de concessionário sem licitação, o que é expressamente vedado – repita-se – pelo art. 175 da Lei Magna”14.
É evidente que a simples previsão normativa de alteração da pessoa do concessionário pode resultar em desvios. Entretanto, a mera possibilidade do mau uso de uma previsão normativa não pode levar à sua desconsideração. Além disso (e indo adiante), não se pode afirmar que a alteração da pessoa do concessionário seria algo em tese ofensivo ao princípio da moralidade. Se a alteração não decorre de uma conduta reprovável do contratado, ela não infringe nenhum padrão ético nem de moralidade. A rigor, a alteração da pessoa do contratado é neutra para a Administração se o cessionário da posição contratual apresentar os requisitos necessários à execução da avença.
4. Conclusões
A transferência das concessões e do controle acionário das concessionárias de serviços públicos são compatíveis com a Constituição. Além disso, trata-se de medidas naturais a contratos de longo prazo, em que muitas vezes se tornam necessários novos arranjos societários, alterações de controle e situações similares.
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1 É evidente que a teoria do contrato administrativo brasileiro foi baseada no direito francês. Entretanto, isso não resultou numa identidade absoluta de regimes jurídicos, inclusive porque determinadas concepções foram “importadas” de modo diverso ou incompleto. Além disso, a “teoria francesa” não é algo estanque. Modificações normativas internas, inclusive sob os influxos do direito comunitário, demonstram que o direito francês dos contratos administrativos não é uma realidade engessada nem perene no tempo. Sobre o assunto, confira-se a brilhante obra do Professor FERNANDO DIAS MENEZES DE ALMEIDA: Contratos administrativos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, passim.
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2 CHAPUS, RENÉ. Droit Administratif Général. 15.ed. Paris: Montcherstien, 2001, t. 1, p. 1186.
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3 Droit Administratif. 9.ed. Paris: Armand Colin, 2004, p. 405.
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4 Droit des contrats administratifs. 3.ed. Paris: L.G.D.J., 2002, p. 211.
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5 Droit des marchés publics. Paris: Imprimerie Nationale, 2002, p. 277.
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6 O artigo 30, § 10, tem a seguinte redação: “Os profissionais indicados pelo licitante para fins de comprovação da capacitação técnico-profissional de que trata o inciso I do § 1o deste artigo deverão participar da obra ou serviço objeto da licitação, admitindo-se a substituição por profissionais de experiência equivalente ou superior, desde que aprovada pela administração”.
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7 O artigo 64, § 2º, tem a seguinte redação: “É facultado à Administração, quando o convocado não assinar o termo de contrato ou não aceitar ou retirar o instrumento equivalente no prazo e condições estabelecidos, convocar os licitantes remanescentes, na ordem de classificação, para fazê-lo em igual prazo e nas mesmas condições propostas pelo primeiro classificado, inclusive quanto aos preços atualizados de conformidade com o ato convocatório, ou revogar a licitação independentemente da cominação prevista no art. 81 desta Lei”.
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8 A afirmação deve ser interpretada em termos. Destaca-se aqui a ausência de relevância do personalismo nos contratos administrativos. Mas é evidente que isso não leva a afirmar-se que haveria plena liberdade, por exemplo, para que a Administração simplesmente alterasse a pessoa do contratado, ainda que o substituto reúna todas as características necessárias à execução da avença.
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9 É exemplo de contrato administrativo intuitu personae a contratação de determinado artista para a realização de um show ou execução de uma obra de arte. Nesse tipo de situação, o artista foi escolhido por suas qualidades pessoais, que não são exatamente as mesmas de nenhum outro profissional. Há, evidentemente, outras situações similares, mas não é objeto deste estudo ir além neste ponto.
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10 A admissão de atestados de subcontratada nomeada nas licitações para concessão de serviços públicos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 238, p. 126.
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11 Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 531.
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12 Aspectos jurídicos da transferência de concessão de serviços públicos. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, n. 12, ano 3, n. 12, out./dez. 2005. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=33297>. Acesso em: 16 out. 2014.
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13 As licitações são regidas por diversos princípios. Mas pode-se afirmar também que a própria licitação é um princípio, na medida em que se exige em regra a adoção de um procedimento licitatório que observe uma série de princípios específicos. Sobre o assunto: JUSTEN FILHO, MARÇAL. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16.ed. São Paulo: RT, 2014, p. 80 e ss.
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14 Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 641.