1. Introdução
Antes da Lei 14.133/2021, prevalecia o entendimento de que os serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual podiam ser licitados por pregão (com critério de julgamento de menor preço) se, no caso concreto, os serviços fossem classificados como comuns.
Mas a Lei 14.133/2021 promoveu uma reforma relevante no tocante a esses serviços. Isso torna necessário avaliar se, diante das novas regras, prevalece o posicionamento adotado no passado.
2. Breve nota sobre a disciplina anterior à Lei 14.133/2021
A Lei 8.666/1993 estipulava um rol das manifestações mais típicas desses serviços, no art. 13. O § 1º previa que esses serviços, quando fosse o caso de licitação, deveriam preferencialmente ser objeto de concurso.
O art. 46 determinava que os tipos de licitação melhor técnica e técnica e preço poderiam ser utilizados exclusivamente para a contratação desses serviços – ressalvado o cabimento de licitação por “técnica e preço” para a contratação de bens e serviços de informática, nos termos do art. 45, § 4º, da Lei 8.666/1993.
A Lei 10.520/2002, que regia a licitação na modalidade de pregão, não continha previsão específica sobre os serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual.
A Lei 12.462/2011 (Lei do RDC) previa que o julgamento por melhor combinação de técnica e preço era cabível quando a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas (ultrapassando os requisitos mínimos estabelecidos no edital) fossem relevantes aos fins pretendidos pela administração pública (art. 20, § 1º).
Mas não havia obrigatoriedade de adoção desses critérios para licitar esses serviços. Com o reconhecimento de que o pregão era cabível para contratação de serviços comuns de engenharia (posicionamento consolidado na Súmula 257 do TCU e depois previsto no Decreto 10.024/2019), foi amplamente aceito o uso de pregão – naturalmente com critério de julgamento de menor preço – para licitar serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual, desde que eles configurassem serviços comuns.
3. As regras Lei 14.133/2021
A Lei 14.133/2021 detalhou as regras aplicáveis à licitação desses serviços. O inciso XVIII do art. 6º contemplou um elenco das manifestações mais típicas desses serviços, na linha do que estabelecia a Lei 8.666/1993.
Foram previstas algumas regras antes inexistentes. Algumas retratam a positivação da jurisprudência anterior. Mas existem regras que não retratam o posicionamento jurisprudencial anterior – mais ainda, que rompem com os posicionamentos anteriormente adotados.
3.1. A hipótese de cabimento do pregão e as exceções da Lei 14.133/2021
O art. 29, caput, da Lei 14.133/2021 alude ao rito procedimental da concorrência e do pregão. O pregão será adotado nos casos em que o objeto possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por especificações usuais no mercado. Trata-se de reiteração da disciplina anterior sobre o cabimento do pregão, nos termos da Lei 10.520/2002.
Porém, o parágrafo único do art. 29 previu que o pregão não se aplica às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e às obras e serviços de engenharia. Em relação a estes, ressalvou apenas os serviços de engenharia qualificados como comuns, nos termos da alínea “a” do inciso XXI do caput do art. 6º.
3.2. Critérios de julgamento
Além de vedar a utilização de pregão, a Lei 14.133/2021 avançou para disciplinar os critérios de julgamento cabíveis para a contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual.
O art. 36 regula o critério de julgamento por técnica e preço. O § 1º estabelece os parâmetros para avaliação do seu cabimento, nos seguintes termos:
§ 1º O critério de julgamento de que trata o caput deste artigo será escolhido quando estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos pela Administração nas licitações para contratação de:
Segue-se um rol exemplificativo das hipóteses em que cabe adotar o critério de julgamento de técnica e preço. O inc. I alude aos “serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, caso em que o critério de julgamento de técnica e preço deverá ser preferencialmente empregado”.
O dispositivo estabelece que o critério de técnica e preço será adotado preferencialmente. Por ocasião da elaboração do estudo técnico preliminar, cabe avaliar se o incremento da qualidade técnica das propostas é um fator relevante para a seleção do particular (a presunção legal é essa), ou se basta o estabelecimento de requisitos mínimos para assegurar a qualidade desejada pela Administração, caso em que seria desnecessário utilizar critério técnico.
Além disso, o art. 37, § 2º, prevê o seguinte:
§ 2º Ressalvados os casos de inexigibilidade de licitação, na licitação para contratação dos serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual previstos nas alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do caput do art. 6º desta Lei cujo valor estimado da contratação seja superior a R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), o julgamento será por:
I – melhor técnica; ou
II – técnica e preço, na proporção de 70% (setenta por cento) de valoração da proposta técnica.
Esse dispositivo estabelece uma disciplina apartada para determinados serviços, tendo em vista a sua relevância.
A alínea “a” menciona “estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos”; a alínea “d” trata de “fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras e serviços”; e a alínea “h” alude a “controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem na definição deste inciso”.
A tutela diferenciada a esses serviços decorre das suas peculiaridades. Esses serviços de engenharia e arquitetura têm enorme relevância para o planejamento e gestão de obras públicas. Por exemplo, o custo estimado de elaboração de projetos é de cerca de 5% do valor da obra. Porém, deficiências nos projetos tendem a causar sérios problemas na etapa de execução, podendo resultar em prejuízos muito mais elevados do que o desconto (aparente) obtido na contratação para a elaboração de projetos.
A Lei 14.133/2021 adotou um regime mais rígido para esses serviços, considerando a importância de se contratar os serviços de qualidade mais elevada. Trata-se de evitar a ocorrência dos fenômenos da seleção adversa e da mutação dinâmica da proposta, inerentes a um modelo de licitação no modo de disputa aberto, caracterizado pela realização de lances públicos sucessivos.
Nas licitações para contratação desses serviços, com valor estimado superior a R$376.353,48 (valor atualizado conforme o Decreto 12.234/2024), o julgamento deve ser realizado por melhor técnica ou por técnica e preço – neste caso, com 70% da valoração consistente na técnica.
A regra do art. 37, § 2º foi objeto de veto do Presidente da República no processo de edição da Lei 14.133/2021. O veto se baseava no argumento de que haveria situações em que os serviços em questão não teriam complexidade suficiente para exigir julgamento por técnica e preço, de modo que caberia ao gestor, no caso concreto, determinar o critério de julgamento aplicável, que poderia ser o de menor preço.
Mas o veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional. A Lei 14.133/2021 foi promulgada com a reinclusão da regra do art. 37, § 2º.
4. A jurisprudência recente do TCU
Diante das novas regras da Lei 14.133/2021, coloca-se a questão de determinar se essa competência discricionária persiste. O TCU tem reconhecido o descabimento de classificar os serviços especializados de cunho predominantemente intelectual do inc. XVIII do art. 6º das alíneas “a”, “d” e “h” de modo diverso. O resultado é a impossibilidade de qualificação dos serviços como comuns, licitar por pregão ou com critério de julgamento de menor preço.
O § 2º do art. 37 da Lei 14.133/2021 estabeleceu uma presunção sobre as particularidades dos referidos serviços: quanto maior o valor da contratação, maior é a complexidade e a dificuldade de adimplir as obrigações pertinentes. Essas particularidades se traduzem na complexidade, no desafio intelectual envolvido. O TCU já manifestou o entendimento de que se trata de presunção absoluta (juris et de jure), não admitindo prova em sentido contrário.
Reconhece-se que o § 2º do art. 37 veicula uma regra especial em face da regra do §1º do art. 36. Este, ao estabelecer apenas a preferência por critério de técnica e preço, exige a avaliação sobre a necessidade ou não de julgamento por critério técnico. No estudo técnico preliminar, cabe determinar se basta a previsão de requisitos mínimos de qualidade (o que dispensaria julgamento baseado na técnica), ou se é relevante a avaliação das propostas que superaram esses requisitos mínimos.
Mas o § 2º do art. 37 não atribui igual competência. Portanto, para serviços descritos nas alíneas “a”, “d” e “h” do inciso XVIII do caput do art. 6º, com valor estimado superior o valor previsto, cabe licitar por melhor técnica ou por técnica e preço. Reconhece-se que essa solução é condizente com a nova disciplina legal, resultado de regular processo legislativo.
Nesse sentido, confiram-se os seguintes julgados: Acórdão 2.381/2024- Plenário, Rel. Min. Augusto Sherman (com declaração de voto do Min. Benjamin Zymler); Acórdão 2.619/2024- Plenário, Rel. Min. Jhonatan de Jesus; e Acórdão 323/2025-Plenário, Rel. Min. Antonio Anastasia.