Informativo Eletrônico - Edição 168 - Fevereiro / 2021

EFICÁCIA TERRITORIAL DAS DECISÕES NO PROCESSO COLETIVO: NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DO ART. 16 DA LACP CONFORME À CONSTITUIÇÃO

Há quase 25 anos discute-se a questão da pretensa limitação da eficácia  territorial das decisões em processo coletivo. O impasse interpretativo tem  afetado o adequado emprego das ações coletivas – e talvez seja um dos  responsáveis (ainda que não o principal) pelo relativo ocaso do processo  coletivo brasileiro. A perspectiva é de que agora a controvérsia venha a ser  enfrentada pelo STF no julgamento do RE 1.101.937/SP, em regime de  repercussão geral (Tema 1075). O julgamento, que estava previsto para o  último dia 25.02, foi adiado para o próximo 03.03. 

 Propus-me a enfrentar o problema em texto publicado em 2004 (“Limites  territoriais da eficácia das decisões no processo coletivo”, em Migalhas,  18.10.2004 – https://migalhas.uol.com.br/depeso/7558/limites-territoriais-da eficacia-das-decisoes-no-processo-coletivo). Ora o retomo, com as necessárias  atualizações. Desde já adianto minha conclusão – de resto, expressa no título  desta nota: não é um caso de “ou tudo ou nada”; a questão comporta e exige  interpretação conforme à Constituição.

 Dois aspectos contribuem para a confusão reinante.1.

Primeiro: tais dispositivos são mal redigidos e quem os instituiu  provavelmente pretendia mesmo impor severas restrições ao processo coletivo.  Mas eles têm como ser adequadamente interpretados, de modo compatível  com os valores constitucionais. 

É nesse ponto que se põe o segundo aspecto problemático. Parte da  doutrina e algumas decisões judiciais têm optado por interpretá-los de modo a  desconsiderar por completo sua inserção sistemática. No mais das vezes,  fazem-no para atingir um resultado absurdo e, assim, poder tachar tais normas  de inconstitucionais e consequentemente desprezar por completo sua  aplicação. Por óbvio, isso é tão ilegítimo quanto a intenção inicial – e  malsucedida – do “legislador”. 

Em suma, radicais defensores e empenhados detratores do processo  coletivo interpretam as regras em questão da pior maneira possível – os primeiros na tentativa de aniquilá-las; os segundos, na pretensão de aniquilar o  próprio processo coletivo…   

O art. 16 da Lei 7.347/1985 (na redação que lhe deu a Lei 9.494/1997)  pretensamente restringe a “coisa julgada” (sic) aos “limites da competência  territorial do órgão prolator”. O art. 2º-A da Lei 9.494/1997 (acrescido pela MP  2.180-35/2001) prevê que a sentença prolatada em “ação de caráter coletivo” proposta por entidade associativa na defesa dos interesses e direitos de seus  associados abrangerá apenas os “substituídos” (sic) domiciliados, na data de  propositura da ação, “no âmbito da competência territorial do órgão prolator”.

A rigor, ambas as regras dizem respeito à eficácia da sentença, e não  diretamente à coisa julgada. Ou seja, tratam dos limites em que a decisão é  apta a produzir efeitos – e não propriamente da sua imutabilidade, a coisa  julgada. Apenas indiretamente a questão concerne à coisa julgada, a qual  incide sobre a eficácia da sentença e operará nos limites em que essa se  ponha.

A interpretação radical e inadequada que por vezes se dá a essas regras  é no sentido de que elas estariam impedindo que uma decisão em ação  coletiva pudesse produzir efeitos para além da circunscrição territorial do juízo  prolator (a “comarca” estadual ou “subseção” federal). De fato, se fosse esse o  sentido das regras, estaria dizimado o instituto da ação coletiva. E, então, tais  regras seriam irremediavelmente inconstitucionais, sobretudo por violar a  garantia do acesso à justiça (considerada inclusive a “cláusula de proibição de  retrocesso”, que veda a supressão do processo coletivo). 

 Mas não é esse o sentido razoável de tais normas – que aludem à  “competência territorial”, conceito processual que não se confunde com os  limites territoriais da comarca ou subseção. 

As duas regras devem ser interpretadas em harmonia com o art. 93 do  Código do Consumidor (CDC), que define o “âmbito de competência territorial” do órgão prolator: as ações de abrangência local devem ser propostas no foro  do lugar onde ocorreu o “dano” (inc. I); as de abrangência regional ou nacional,  no foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal (inc. II). Trata-se de  disposição aplicável a todas as ações de caráter coletivo (cf. art. 21 da Lei  7.347/1985 e CDC, art. 90). Tal regra, contida no CDC desde sua origem,  jamais teve sua legitimidade posta em dúvida. Bem o contrário, é  extremamente razoável, ao fixar parâmetros mínimos de competência para  processamento da ação coletiva. A interpretação desse dispositivo reclama  dois esclarecimentos.

 A parte inicial do caput do art. 93 do CDC deixa “ressalvada a  competência da Justiça Federal”. Mas isso não significa que as regras ali  contidas não se apliquem à Justiça Federal. Quer-se apenas indicar que tais  regras não se prestam a autorizar a tramitação na Justiça Estadual do  processo que envolva interesse federal, nas localidades que não sejam sedes  de varas federais. Lembre-se que, quando editado o CDC, o art. 109, § 3º,  parte final, da Constituição permitia que a lei atribuísse amplamente tal  competência ao juiz estadual – e nessa linha vinha sendo interpretado o art. 2º  da Lei 7.347, que aludia apenas ao foro do local do dano como competente para a ação civil pública. O Superior Tribunal de Justiça chegou a editar  Súmula nesse sentido (nº 183), posteriormente cancelada (STJ, ED no CC  27.676) em vista da rejeição dessa interpretação pelo STF (STF, RE 228.955).  Foi para evitar que novamente se incidisse em tal equívoco interpretativo que o  art. 93 do Código do Consumidor ressalvou “a competência da Justiça  Federal”. Mas é apenas essa a finalidade da ressalva. Não faria sentido supor  que, quanto ao mais, não se aplicariam aos processos da Justiça Federal as  regras ali contidas. 

A segunda questão relevante na interpretação do art. 93 do CDC  consiste em saber se, no seu inciso II, a competência para ações de  abrangência nacional e de abrangência regional que ultrapasse um Estado é  atribuída indistintamente ao foro do Distrito Federal e ao de capitais de Estado  ou se, nessas hipóteses, a competência é apenas do Distrito Federal, com o  foro de capital de Estado sendo competente apenas para ações de  abrangência regional limitadas ao Estado. A esse respeito, tem prevalecido no  STJ o entendimento de que, para as ações de abrangência nacional ou  regional que vá além de um único Estado, é competente não apenas o foro do  Distrito Federal, como também o de qualquer capital de Estado (CC 17.533, 2ª  S., rel. Min. C. A. Menezes Direito, j. 13.09.2000, DJU 30.10.2000; CC 26.842,  2ª S., rel. Min. W. Zveiter, j. 10.10.2001, DJU 05.08.2002; CC 17.532, 2ª S., rel.  Min. Ari Pargendler, j. 29.02.2000, DJU 05.02.2001; REsp 1.101.057, 3ª T., rel.  Min. Nancy Andrighi, j. 07.04.2011, DJe 15.04.2011; AgRg no CC 118.023, 1ª  S., rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 28.03.2012, DJe 03.04.2012; CC 126.601,  1ª S., rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 27.11.2013, DJe 05.12.2013; AgInt  no AREsp 944.829, 1ª T., rel. Min. Gurgel de Faria, j. 14.05.2019, DJe 12.06.2019; AgInt no AREsp 1.023.553, 1ª T., rel. Min. Napoleão Nunes Maia  Filho, j. 29.06.2020, DJe 01.07.2020). E parece ser mesmo essa a orientação  consentânea com a letra e o propósito do dispositivo.

Assim, de acordo com o art. 93 do CDC, se a ação coletiva visa a uma  tutela destinada a operar apenas no âmbito territorial de uma comarca da  Justiça Estadual ou de uma subseção da Justiça Federal (i.e., tem alcance  “local”), poderá ser proposta no foro dessa comarca ou subseção, mesmo que  no interior do Estado. Já se ação coletiva tem objeto que ultrapassa os limites  de uma única comarca ou subseção (i.e., tem alcance “regional”) deve ser  proposta, a critério do autor, no foro de capital de Estado ou no do Distrito  Federal. Essa segunda diretriz aplica-se indistintamente a ações com alcance  regional interno a um Estado, com alcance regional interestadual e com  alcance nacional. E – repita-se – ambas as diretrizes se aplicam à Justiça  Estadual e à Federal. 

Pois bem, uma vez conjugadas com esse dispositivo do Código do  Consumidor, aquelas duas normas inicialmente mencionadas configuram um  regime jurídico especial para a incompetência territorial nas ações coletivas.

Por um lado, se a ação é proposta perante foro incompetente e lá  permanece, não há a integral prorrogação da competência, pois a sentença  final não terá o alcance que se pretendeu na demanda. Aliás, isso também se  aplica, por simetria, à antecipação de tutela que eventualmente se conceda  nesse processo.

Mas, por outro lado, os atos decisórios do juiz incompetente, em vez de  serem integralmente considerados nulos, têm apenas sua eficácia limitada ao  âmbito da competência territorial do órgão prolator, quando isso for possível.

 Por exemplo, se com a ação pretendia-se tutela que abrangesse todo o  Estado, mas ela foi proposta em foro de comarca do interior, caso o processo  não seja oportunamente remetido ao foro competente, da capital do Estado  (CDC, art. 93, II), e o juízo incompetente profira sentença ou decisão de tutela  antecipada, essa será eficaz apenas para os beneficiários abrangidos pela  competência territorial do órgão prolator, que, no caso, limita-se à própria  comarca. Haverá casos em que a pretensão coletiva de extensão nacional  indevidamente ajuizada em comarca ou subseção do interior do Estado terá  como ser segmentada para vigorar apenas no âmbito de competência daquele  juiz (CDC, art. 93, I). Assim, se na ação civil pública proposta na comarca do  interior se pede a proibição de comercialização de um produto em todo  território nacional, a decisão de acolhimento dessa pretensão pelo juiz  incompetente tem como ser parcialmente aproveitada: vigorará no seu âmbito  regional de competência. Em outros casos, não haverá segmentação possível,  e o indevido ajuizamento de pretensão de extensão transregional perante o juiz  da comarca ou subseção do interior produzirá pronunciamento de todo inútil e  ineficaz: se a ação coletiva é proposta na subseção judiciária de Tefé, no  Amazonas, visando a impedir a privatização de estatal federal de energia  elétrica sediada na cidade do Rio de Janeiro, onde também está ocorrendo o  leilão de seu controle acionário, a decisão concessiva de tutela antecipada ou  de acolhimento dessa demanda, por não ser segmentável (para ter sua eficácia  restrita ao âmbito regional de competência) é de todo ineficaz. 

Mas isso não é nenhum especial óbice à tutela coletiva – e sim mera  regra de operacionalidade, razoabilidade e até destinada a coibir a sham litigation. Para que uma ação coletiva possa abranger toda a extensão territorial  pretendida que vá além de uma única circunscrição ou comarca (atingindo  várias circunscrições ou comarcas, o Estado inteiro, vários Estados ou todo o  país), basta ajuizá-la em capital do Estado ou no Distrito Federal. Agora, sendo  ajuizada em capital do Estado (qualquer capital de Estado) ou no Distrito  Federal, ela terá eficácia nacional. No exemplo dado, bastava propor-se a ação  perante a Justiça Federal de Manaus (ou Rio Branco, Macapá ou qualquer  outra capital do Estado ou Brasília). 

Compreendido nesses termos, não parece haver nenhuma ilegitimidade  constitucional no modelo extraível das regras ora brevemente examinadas. Na  discussão ora posta no STF, há a tese de que a inconstitucionalidade residiria  na limitação, pela lei, da eficácia das decisões judiciais – sob o argumento de  que a soberania estatal de que está investido cada julgador não comportaria  jamais quaisquer restrições. Mas, com o devido respeito, tal argumento não parece proceder. Se fosse assim, a lei não poderia sequer cominar nulidades  (que também conduzem à ineficácia – e integral – das decisões judiciais),  prever a ineficácia da sentença em caso de preterimento de litisconsorte  necessário (CPC, art. 115, II) ou estabelecer a “inexigibilidade” do título  executivo judicial inconstitucional (CPC, art. 525, § 12, e 535, § 5). Pense-se  ainda nos casos em que a lei impõe limitações temporais à eficácia da decisão (como o condicionamento da eficácia da sentença ao reexame necessário,  previsto no art. 496 do CPC; ou a previsão de perda de eficácia da decisão  concessiva de tutela provisória, nas hipóteses do art. 309 do CPC). Esses são  apenas alguns entre tantos outros exemplos. O legislador está, sim, autorizado  a impor limites à eficácia das decisões. A limitação legal é legítima desde que  seus fundamentos e fins sejam constitucionalmente razoáveis – e esse  requisito está preenchido, na medida em que se adote a interpretação aqui  apresentada. 

Em suma, a delimitação de eficácia prevista nas duas normas em  questão não pode ser compreendida como vinculada à circunscrição territorial  do órgão prolator da decisão (no sentido de que, p. ex., a decisão do juiz  estadual de Curitiba só teria efeitos na comarca de Curitiba; a do juiz federal de  Brasília apenas na sua respectiva subseção – e assim por diante). Essa leitura  é inconstitucional. A delimitação de eficácia incide sobre o âmbito de  competência territorial do juízo prolator da decisão, definido pelo art. 93 do  CDC. Essa é a interpretação conforme à Constituição dos arts. 16 da LACP e  2º-A da Lei 9.494/1997

       Eduardo Talamini

Mestre e Doutor em Direito Processual pela USP. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.

       Eduardo Talamini

Mestre e Doutor em Direito Processual pela USP. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.