1. Introdução
Assim como o regime anterior (da Lei 8.666), a nova Lei de Licitações (PL 4.253/2020) prevê que devem ser desclassificadas as propostas de valor excessivo – isto é, acima do orçamento estimado para a contratação.
Mas há diferenças relativas aos critérios de aferição da inexequibilidade da proposta. As disposições normativas do projeto aprovado modificam alguns aspectos da disciplina de desclassificação da proposta por irrisoriedade do preço ofertado pelo licitante, embora não solucionem os problemas inerentes à questão.
2. Os critérios objetivos do regime anterior
O regime superado previa que, nas licitações de menor preço para obras e serviços de engenharia, a aferição da exequibilidade das propostas deveria considerar o menor valor entre (i) a média aritmética das propostas superiores a 50% do orçamento estimado pela Administração e (ii) o próprio orçamento estimado.
Sobre o menor desses dois valores deveria incidir o parâmetro objetivo de 70%, do qual resultaria o valor mínimo para aferição da exequibilidade das propostas.
3. Os parâmetros de inexequibilidade na nova Lei de Licitações
A nova Lei de Licitações contempla modificações a respeito dos parâmetros objetivos de análise da inexequibilidade, especialmente para os casos de obras e serviços de engenharia.
3.1 Supressão do critério da média aritmética
A nova disciplina suprimiu o critério da média aritmética das propostas superiores a 50% do valor orçado pela Administração.
Ou seja, o novo diploma abandonou a hipótese de aferição da inexequibilidade a partir das próprias propostas dos licitantes. Subsiste tão somente o limite apurável a partir de percentual incidente sobre o valor orçado pela Administração.
3.2 Majoração do percentual incidente sobre o orçamento estimado
O projeto aprovado prevê que serão desclassificadas as propostas que apresentarem preços inexequíveis – assim consideradas, no caso de obras e serviços de engenharia, as propostas cujos valores forem inferiores a 75% do valor orçado pela Administração.
Vale dizer: em relação à disciplina da Lei 8.666, a nova Lei de Licitações eleva de 70% para 75% o limite mínimo admissível. A partir de agora, não se presumirá inexequível a proposta que superar 75% do orçamento estimado pela Administração.
Em casos de maior complexidade, essa disciplina, aliada à possibilidade de o orçamento estimado possuir caráter sigiloso, poderá dificultar o próprio objetivo de obter o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração.
Afinal, a Administração não dispõe de informações precisas sobre todas as condições consideradas pelos particulares na formação dos preços ofertados na licitação. A assimetria de informações dificulta a definição de um parâmetro de inexequibilidade que seja coerente com as circunstâncias inerentes ao próprio mercado – e não apenas decorrente de uma presunção legal condicionada exclusivamente ao orçamento estimado pela Administração.
Esse cenário cria condições para que a disputa licitatória deixe de significar uma busca natural pela oferta da proposta mais vantajosa – formulada a partir das condições e parâmetros inerentes ao mercado e, portanto, amplamente conhecidos pelos licitantes. O certame poderá refletir tão somente uma disputa movida pela oferta de propostas potencialmente dentro da margem resultante do percentual incidente sobre o orçamento da Administração – sujeito a distorções decorrentes de uma visão de mercado muito menos precisa e abrangente.
3.3. Exigência de garantia adicional
A nova Lei prevê ainda que, nas contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional do vencedor cuja proposta seja inferior a 85% do orçamento estimado. Essa garantia deverá cobrir a diferença entre 85% do valor orçado pela Administração e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis.
A regra é semelhante ao disposto no regime anterior (art. 48, § 2º, da Lei 8.666), segundo o qual a garantia adicional deveria ser exigida do licitante detentor de proposta inferior a 80% do menor valor entre (i) a média aritmética dos valores das propostas superiores a 50% do valor orçado pela Administração e (ii) o valor orçado pela Administração. A garantia deveria cobrir a diferença entre o menor desses dois valores e o valor da proposta (TCU, Acórdão 2.503/2018, Plenário, rel. Min. Bruno Dantas).
Em última análise, o que se busca é estabelecer mecanismo apto a neutralizar a desconfiança existente sobre as propostas aparentemente insuficientes para assegurar a satisfação dos custos inerentes à execução do contrato.
A garantia adicional decorre da presunção de que as propostas de valor mais reduzido representam maior risco à execução adequada do objeto licitado, ainda que correspondam a valor superior ao limite mínimo de exequibilidade (75% do orçamento estimado).
3.4. Análise de preços unitários “relevantes”
A nova Lei também contempla previsão semelhante à disciplina do RDC (Lei 12.462) para efeito de avaliação da exequibilidade e de sobrepreço.
Dispõe que, nas licitações relativas a obras e serviços de engenharia e arquitetura, serão considerados o preço global, os quantitativos e os preços unitários tidos como relevantes, observado o critério de aceitabilidade de preços unitário e global a ser fixado no edital, conforme as especificidades do mercado correspondente.
A dificuldade consistirá em definir, em cada caso concreto, quais preços unitários serão considerados relevantes para fins de aferição da exequibilidade da proposta. Afinal, a desclassificação da proposta pela avaliação de valor unitário deve ocorrer apenas se o item correspondente for essencial em vista do objeto licitado. É descabida a desclassificação de proposta que tenha cotado preço relativamente reduzido para um item incapaz de comprometer a execução do contrato.
Será necessário que o próprio edital de licitação estabeleça, de forma clara, os itens considerados essenciais à funcionalidade da obra/serviço de engenharia ou de maior impacto no valor total da proposta, eventualmente a partir de critérios objetivos definidos em regulamento.
3.5. Presunção relativa de inexequibilidade
De todo modo, assim como no regime anterior, a incidência dos parâmetros objetivos previstos na nova Lei autoriza tão somente presunção relativa de inexequibilidade. As novas previsões normativas devem ser interpretadas no sentido de que subsiste a possibilidade de o licitante demonstrar a plena exequibilidade de sua proposta, ainda que o valor ofertado seja inferior ao limite mínimo de 75% do orçamento estimado pela Administração.
Deve ser transportada para a nova Lei a racionalidade traduzida na Súmula 262 do TCU sob a égide da Lei 8.666, no sentido de que o critério legal “conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”.
Antes de qualquer decisão desclassificatória, cabe à Administração garantir ao licitante a oportunidade de se desincumbir do ônus da prova da exequibilidade. A Administração deve promover diligências para aferir a exequibilidade da proposta ou exigir do licitante que ela seja demonstrada – precisamente para assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração.
Isso envolve desde a solicitação de esclarecimentos e documentos pontuais até a concessão de oportunidade para o licitante demonstrar, com base em informações concretas da sua atividade, que dispõe de condições favoráveis para a execução do objeto do contrato e que essas circunstâncias foram consideradas para a formação do preço apresentado na licitação, resultando em ganho de eficiência.
4. Conclusão
A análise da nova Lei de Licitações conduz ao reconhecimento de que a nova disciplina não resolverá as dificuldades relativas à aferição da inexequibilidade das propostas nas contratações públicas.
Os parâmetros de avaliação da inexequibilidade permanecem distantes da realidade econômica. O desafio consistirá em minimizar essa distorção, o que somente será possível se os orçamentos estimados pela Administração forem compatíveis com os valores praticados pelo mercado.
Também será fundamental garantir que, durante a aplicação concreta da nova Lei, as propostas presumidamente inexequíveis sejam objeto de avaliação acurada por parte da Administração mediante a realização de diligências, sob pena de ofensa ao objetivo assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso.