1. A singularidade na Lei 8.666/1993
A inexigibilidade de licitação foi reconhecida pelo art. 25, II, da Lei 8.666, condicionada a pelo menos três requisitos: (1) para contratar os serviços técnicos do art. 13, (2) que revelassem natureza singular, (3) por profissionais ou empresas de notória especialização.
A Súmula n° 39 do TCU, alterada pelo Acórdão 1.427/2011, conceituou o requisito da singularidade como aquele “capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação, nos termos do art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993.”
2. Exclusão da singularidade na Lei das Empresas Estatais
Em 2016, o art. 30, II, da Lei 13.303, manteve a inexigibilidade para sociedades de economia mista e empresas públicas contratarem serviço técnico especializado prestado por profissional de notória especialização.
No entanto, a Lei deixou de mencionar a singularidade do objeto como requisito para a inexigibilidade.
Essa omissão refletiu o reconhecimento da insuficiência da Súmula 39 do TCU para eliminar as interrogações acerca da singularidade do objeto. Tanto permaneceram as incongruências na aplicação da norma que os seus requisitos de aplicação foram alterados, reputando desde então como suficientes apenas dois dos anteriores três requisitos para as contratações mediante inexigibilidade de serviços técnicos especializados por empresas estatais.
3. Serviços profissionais singulares ex lege
Duas modalidades de serviços receberam da lei o caráter de singular, independentemente de interpretação doutrinária e jurisprudencial.
A Lei 14.039/2020 incluiu o art. 3º-A na Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB) e os §§1º e 2º no art. 25 do Decreto-Lei 9.295/46, que regula a profissão de contador. A regra considera que a singularidade integra a natureza do serviço advocatício e do contador, quando comprovada a notória especialização.
Ou seja, a partir de 2020, ao menos o requisito da singularidade para contratação de serviços advocatícios e contabilidade foi suprido diretamente pela lei, que passou a considerá-lo inquestionavelmente cumprido para os aludidos serviços – ainda que não contratados por empresas estatais.
3.1. O voto do relator na ADC 45-STF
Ainda em 2020, o relator da ADC 45 no STF, Min. Roberto Barroso, divulgou seu voto pela constitucionalidade dos arts. 13, V, e 25, II, da Lei 8.666, conferindo duas relevantes interpretações.
A primeira foi a conceituação de “natureza singular do serviço”, prevista no art. 25, II: “O objeto do contrato deve dizer respeito a serviço que escape à rotina do órgão ou entidade contratante e da própria estrutura de advocacia pública que o atende. Inviabilidade de contratar-se profissional de notória especialização para serviço trivial ou rotineiro, exigindo-se que a atividade envolva complexidades que tornem necessária a peculiar expertise. Existência de característica própria do serviço que justifique a contratação de um profissional específico, dotado de determinadas qualidades, em detrimento de outros potenciais candidatos”.
A segunda foi a estipulação de cinco requisitos para a contratação por inexigibilidade de serviço técnico especializado: (a) necessidade de procedimento [processo] administrativo formal; (b) notória especialização do profissional a ser contratado; (c) natureza singular do serviço; (d) inadequação, por impossibilidade ou relevante inconveniência, da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e (e) preço compatível com o praticado pelo mercado. Os dois últimos foram afetos especificamente à contratação de serviço advocatício.
Há pedido de destaque pelo Min. Gilmar Mendes e o processo aguarda pauta para julgamento.
3.2. O acórdão no AgRg-HC 669.347-STJ
Em 2021, o STJ julgou recurso em habeas corpus que reputou não existir crime na contratação por inexigibilidade de advogado externo para prestar serviço específico para o poder público, mesmo diante da existência de procuradoria de carreira no ente federativo (AgRg-HC 669.347/SP, Rel. Ac. Min. João Otávio de Noronha, j. 13/12/2021).
Diferentemente do voto do relator na ADC 45, referido acórdão do STJ veiculou decisão sob a égide da Lei 14.133. Afirmou-se que o requisito da singularidade “foi suprimido pelo legislador, devendo ser demonstrada a notória especialização do agente contratado e a natureza intelectual do trabalho a ser prestado”.
4. A regra de inexigibilidade da Lei 14.133/2021
O aludido acórdão do STJ estabelece o ponto de partida hermenêutico adequado para a Lei 14.133, em especial sobre a singularidade do objeto: o seu art. 74, III, retirou-a do rol de requisitos da contratação de serviços técnico especializado por inexigibilidade.
Vale dizer, aquele antigo requisito não mais existe em nosso ordenamento, ao menos como integrante da aplicação dessa modalidade de contratação. A inviabilidade de competição, como ausência dos “pressupostos para escolha objetiva da proposta mais vantajosa” não se subordina à identificação da singularidade do objeto (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, p. 997).
Aponte-se ainda não se tratar mais de suprimento (fictício ou não) da singularidade, para alguns serviços, por declaração da lei. Desta feita, todo e qualquer serviço técnico especializado de natureza intelectual por agente dotado de notória especialização prescinde da singularidade do objeto para ser contratado.
Permanece vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação (inc. III) e proibida a subcontratação ou delegação para outros profissionais ausentes da justificativa da inexigibilidade (§4º).
Por outro lado, o §3º definiu a notória especialização como a reputação demonstrando que o trabalho do profissional é essencial e adequado para satisfazer o objeto contratado.
5. Essencialidade da inviabilidade de competição
A eliminação da singularidade pela lei nova muito mais solucionou uma perplexidade hermenêutica, que chegou a punir contratações legítimas, do que alterou requisitos fundamentais da contratação de serviço técnico especializado por inexigibilidade.
De uma parte, tal modalidade de contratação permanece sujeita a um pressuposto fundamental, que é a inviabilidade de competição. No tocante ao serviço técnico especializado, essa inviabilidade decorre de uma variedade de requisitos, sendo dois diretamente decorrentes da Lei 14.133: a natureza predominante intelectual do serviço e a notória especialização do agente.
De outra parte, a inviabilidade de competição nesse caso nem tampouco se caracteriza por algum processo administrativo formal, embora dele dependa para se materializar. Além do processo administrativo, o voto do relator na ADC 45 incluiu a inadequação da prestação pelos gestores públicos e o preço de mercado – embora rigorosamente não constituam requisitos da inviabilidade de competição, mas efeitos da inexigibilidade de licitar.
Em suma, a ausência do requisito da singularidade do objeto não impedirá a identificação da inexigibilidade de licitar, nem liberará indistintamente a contratação por inexigibilidade de todos os serviços arrolados no art. 74. Diferentemente, as necessidades peculiares da Administração em face do caso concreto serão o requisito essencial para concluir pela inviabilidade de competição.
6. Requisitos prevalecentes de licitação inexigível
A licitação será inexigível diante da inviabilidade de competição, caracterizada por uma especial necessidade da Administração a ser satisfeita.
Disso decorre que haverá requisitos remanescentes emanados diretamente da Lei 14.133 e de outros diplomas que, por um lado, caracterizam a inviabilidade de competição e, por outro, revelam os efeitos da inexigibilidade de licitar.
Como se disse, o caráter personalíssimo por notória especialização juntamente com a natureza intelectual do serviço são requisitos da inexigibilidade de licitação estipulada diretamente pelo art. 74, inc. III, da Lei 14.133.
No entanto, é essencial para concluir pela inviabilidade de competição – condicionante da contratação por inexigibilidade – que a realização da licitação seja inadequada para satisfazer uma necessidade diferenciada da Administração.
A regularidade da contratação por inexigibilidade também depende da formalização do processo administrativo, da justificativa do preço de mercado, do vínculo do profissional prestador com o objeto contratado. Será desejável, embora não essencial, a demonstração de outras possíveis vantagens da inexigibilidade, dependendo do caso concreto, como a confiança decorrente de atuação pretérita exitosa, a economicidade adicional da contratação e a demanda quantitativa extraordinária a ser suprida.