Informativo Eletrônico - Edição 161 - Julho / 2020

LEI 14.026 E A EFETIVIDADE DA REGULAÇÃO NACIONAL UNIFORME DO SANEAMENTO

Cesar Pereira

1. Introdução  

A aprovação final do PL 4.162/2019 no Senado em 24.6.2020, após  tramitação iniciada efetivamente apenas quatro meses antes, é uma tentativa  de dar rapidez à solução de problemas tornados ainda mais evidentes com a pandemia da covid-19. Mas o reconhecimento desta urgência é anterior. A  Câmara de Deputados já aprovara em dezembro de 2019 o projeto de lei  encaminhado pelo Poder Executivo em julho do mesmo ano. O ambiente  provocado pela pandemia tornou impossível deixar de tomar, de imediato, este  passo necessário para a superação das deficiências do Brasil na área de  saneamento. O urgente agora será a implementação concreta do novo marco  legal.

2. Normas de referência nacionais

Com o objetivo de dar uniformidade e segurança regulatória e  administrativa, a Lei 14.026 alterou a Lei 9.984 para atribuir à ANA – Agência  Nacional de Águas e Saneamento Básico a competência para a edição de  normas de referência nacionais, segundo os parâmetros definidos na própria  Lei 9.984 e na Lei 11.445. 

Também modificou a Lei 11.445 para estabelecer mecanismos para a  definição concreta da titularidade dos serviços e da correspondente  competência regulatória (art. 8º da Lei 11.445), segundo o interesse seja local  (inc. I) ou comum (inc. II). As competências administrativas e regulatórias dos  titulares podem ser exercitadas de modo isolado ou regionalizado, segundo  uma variedade de formas (art. 8º, § 1º). Para uma visão geral das alterações,  inclusive quanto ao ponto desenvolvido abaixo, cf. REISDORFER, Guilherme,  F. Dias. O novo marco legal do saneamento (PL 4.162/2019): impactos sobre  os contratos em curso e os novos investimentos no setor. Informativo Justen,  Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n.º 160, junho de 2020, disponível em  http://www.justen.com.br/informativo, acesso em 27.07.2020.

Essa regra impõe ao Administrador o dever de contratar pelo melhor (e não menor) preço.1 Trata-se de uma resposta às reiteradas críticas ao sistema  atual de contratação de bens comuns, que conduz o Administrador a pagar o  menor preço ofertado e adquirir produtos de baixa qualidade.

3. Mecanismos de efetivação  

A Lei 14.026 adotou solução engenhosa para superar os problemas da  regulação fragmentária do setor, consistente na utilização do spending power da União como sanção premial para a adesão voluntária dos entes reguladores  às normas de referência a serem editadas pela ANA. Este mecanismo havia  sido previsto originariamente pela Medida Provisória nº 844 e pela Medida  Provisória nº 868, que não foram convertidas em lei e inspiraram o projeto de  lei que resultou na Lei 14.026. 

Ou seja, o diploma não pretendeu qualificar a competência atribuída à  ANA para estabelecer normas de referência como parte da definição de  normas gerais federais para o setor. Ao contrário, a partir da constatação de  que recursos federais objeto de transferência não obrigatória são  indispensáveis para as atividades de saneamento dos respectivos titulares,  definiu que tais recursos seriam destinados aos serviços regulados por  “entidades reguladoras e fiscalizadoras que adotam as normas de referência  nacionais para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico” (art.  4º-B da Lei 9.984), na linha do que já estabelecia com mais detalhamento o art.  50 da Lei 11.445. O dispositivo se refere às diretrizes (art. 48) e objetivos (art.  49) da política federal de saneamento básico, bem como a diversas condições  previstas no próprio art. 50. 

A utilização do spending power da União para orientar condutas de  outros entes políticos é conhecida. Diversos dispositivos da Lei de  Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101) adotam a solução de  vedar transferências voluntárias da União para incentivar o cumprimento dos  limites de despesas ou endividamento. Também é prevista no art. 28 da Lei de  Parcerias Público-Privadas (Lei 11.079) para estimular o respeito ao limite financeiro das parcerias em curso. O art. 50 da Lei 11.445 já a previa, mas a  Lei 14.026 lhe deu nova amplitude e aplicação. 

4. Procedimentos da ANA para efetivação das normas de referência 

Compete à ANA verificar periodicamente esta adoção (art. 4º-B, § 2º),  que também será examinada obrigatoriamente “no momento da contratação  dos financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou  operados por órgãos ou entidades da administração pública federal”. Cabe-lhe  inclusive avaliar o impacto regulatório e o cumprimento das normas de  referência pelos órgãos e entidades responsáveis pela regulação e fiscalização  dos serviços (art. 4º-A, § 6º).

Para evitar dúvidas quanto aos critérios para este exame, cabe à ANA  editar ato normativo com requisitos e procedimentos “de modo a preservar as  expectativas e os direitos decorrentes das normas a serem substituídas e a  propiciar a adequada preparação das entidades reguladoras” (art. 4º-B, § 1º).  Impõe-se à ANA que observe o devido processo legal regulatório, com a  necessária oitiva do setor e a realização de consultas e audiências públicas  (art. 4º-A, § 4º), realize estudos técnicos (art. 4º-A, § 10) e esteja disponível para, de modo voluntário e mediante concordância dos interessados, realizar  atividades de prevenção ou solução administrativa de “conflitos que envolvam titulares, agências reguladoras ou prestadores de serviços públicos de  saneamento básico”.

5. Incentivo ao cumprimento espontâneo pelo regulador 

O mecanismo cria incentivos positivos para que a sociedade e os entes  regulados exercitem eles próprios o controle social dos entes reguladores, por  meio dos instrumentos de participação social ou mesmo do exercício formal de  direitos subjetivos públicos, exigindo dos reguladores estaduais, regionais ou  municipais a adoção das normas de referência nacionais como forma de  assegurar o acesso a recursos federais. 

6. Outros instrumentos para a uniformidade regulatória 

Além do mecanismo de impedimento de acesso a recursos federais, as  alterações da Lei 11.445 estabelecem outras formas de promover a efetividade  das normas de referência da ANA. 

O art. 25-A da Lei 11.445 reitera a competência da ANA para a  instituição de normas de referência. O art. 22, I, prevê que um dos objetivos da  regulação é “estabelecer padrões e normas para a adequada prestação e a  expansão da qualidade dos serviços e para a satisfação dos usuários”,  observando-se as “normas de referência editadas pela ANA”. O art. 23, § 1º-B,  prevê que a agência reguladora, depois de selecionada, “não poderá ser  alterada até o encerramento contratual, salvo se deixar de adotar as normas de  referência da ANA”. Uma das condições para que o titular do serviço possa  aderir a uma agência reguladora em outro estado da Federação é justamente  que “não exista no Estado do titular agência reguladora constituída que tenha  aderido às normas de referência da ANA” (art. 23, § 1º-A, I). 

7.  Conclusão

Percebe-se que o objetivo da Lei 14.026 é incentivar a adoção efetiva da  regulação uniforme, a partir da compreensão da multiplicidade de centros de  poder existentes no setor de saneamento, como os titulares dos serviços, em  atuação isolada ou conjunta, e as correspondentes agências reguladoras  estaduais, regionais ou municipais.  

Os instrumentos adotados não dependem apenas da iniciativa das  agências reguladoras em observar as normas de referência, mas atribuem aos  titulares do serviço, aos entes regulados e à sociedade os meios para exigir essa observância. Com isso, incentivam o cumprimento espontâneo das  normas de referência pelos entes reguladores e criam condições para se evitar ou corrigir a frustração da diretriz legal de coerência regulatória.

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Cesar Pereira
Cesar Pereira
Doutor em Direito Administrativo pela PUC. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Cesar Pereira
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Doutor em Direito Administrativo pela PUC. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.