1. O objeto da deliberação do Tema 1.199 do STF
Em dezembro passado, foi publicado o acórdão que definiu o Tema 1.199. O STF se pronunciou sobre a (ir)retroatividade de algumas das diretrizes trazidas ao ordenamento pela Lei 14.230, que alterou substancialmente o regime da improbidade administrativa da Lei 8.429.
Mais especificamente, deliberou sobre a constitucionalidade e a aplicabilidade imediata (ou retroativa) de disposições que (1) condicionam a condenação à presença do elemento subjetivo dolo, e eliminam a culpa mesmo para as hipóteses do art. 10, e (2) os novos prazos (e marcos) de prescrição geral e intercorrente.
O leading case eleito para processamento das discussões foi o Agravo em Recurso Extraordinário n.º 843.989.
2. A tese final homologadal
À unanimidade, as previsões alusivas à eliminação de dolo (art. 1º, §§1º e 2º, art. 3º, e arts. 9, 10 e 11, e art. 17-C, VII, §1º), aos novos prazos e marcos de prescrição geral e à concepção de prescrição intercorrente (art. 23 e respectivos parágrafos), foram julgadas constitucionais.
Quanto à análise sobre a (ir)retroatividade dos institutos sob julgamento, a tese prevalente foi aquela proposta no voto do Min. Alexandre de Moraes, relator do caso. Entendeu-se pela aplicação imediata aos processos em curso – o que, segundo o Ministro, constituiria uma derivação da não ultra-atividade da Lei 8.429, revogada.
Em linhas gerais, o voto condutor propôs que a necessidade do elemento subjetivo (dolo) é imprescindível a todos os processos que ainda não contemplem condenação transitada em julgado.
Quanto à questão da prescrição (geral e intercorrente), sedimentou-se entendimento no sentido de que os novos prazos e marcos deveriam incidir de imediato, mas sem retroagir – i.e., a partir do dia 1 de vigência da Lei, sem que os interregnos temporais anteriores, ainda que suficientes a fulminar a pretensão, sejam albergados pela nova disciplina.
Eis a tese firmada:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se, nosartigos 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade, a presença do elemento subjetivo, o dolo.
2) A norma benéfica da Lei nº 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa – é irretroativa em virtude do artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada, nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes.
3) A nova Lei nº 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior, devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente.
4) O novo regime prescricional previsto na Lei nº 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
3. Ressalva: os limites da análise
O presente ensaio dedicar-se-á aos pressupostos relativos à incidência imediata da imposição da condicionante do dolo específico para fins de condenação.
A lógica da prescrição possui peculiaridades envoltas à ideia de inércia, que segundo a maioria dos Ministros não poderia ser assim considerada por lei futura, quando o Poder Público teria agido com diligência de acordo com as diretrizes anteriormente vigentes.
4. Questão jurídica essencial à discussão sobre a retroação relacionada à necessidade de dolo
A compreensão sobre a (ir)retroatividade da norma passa fundamentalmente pelo exame da identidade entre os regimes de direito penal e direito administrativo sancionatório¹.
Os Ministros dedicaram-se a fazer um exame em torno desse panorama, para definir se a amplitude art. 5º, XL, da CF, que assegura a retroação da norma penal mais benéfica, é apto também a abranger a disciplina da improbidade.
Votaram pela irretroatividade irrestrita, no sentido de que as novas normas não seriam aplicáveis nem mesmo aos processos em curso, os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia.
A tese vencedora (aplicação imediata) teve sete votos. Além do Min. Alexandre de Moraes, acompanharam a proposição os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux. Destes, quatro defendiam inclusive a retroatividade irrestrita, para abranger também decisões condenatórias em fase de execução (Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes).
A despeito disso, os votos (todos) contemplam importantes elementos que devem ser considerados, inclusive em vista de evoluir numa aproximação entre os ramos do direito (penal e administrativo sancionatório) para fins de retroação. E aqui faço referência ao instituto como passível de abranger também decisões já com trânsito em julgado.
5. Ressalvas dos votos dos Ministros Roberto Barroso e Luiz Fux
Muito embora tenham se posicionado contra a retroatividade irrestrita (Min. Barroso pela irretroatividade absoluta, e Min. Fux pela aplicação imediata, junto da tese vencedora), os Ministros Roberto Barroso e Luiz Fux não descartaram a identidade principiológica entre direito penal e direito administrativo sancionador. Para os julgadores, a questão deve ser ponderada caso a caso, em razão da inexistência de comunicação automática das prerrogativas entre os dois ramos.
Em seu voto, o Min. Barroso chega a dizer que “Em outros contextos, eu não teria dúvida de aplicar a retroatividade benéfica”, mas a limita no caso em razão de que situação empírica. Segundo ele, várias decisões condenatórias anteriores não faziam a distinção do elemento subjetivo que teria levado à condenação (culpa ou dolo). E, no exemplo utilizado, há impactos significativos dessa distinção para fins de se considerar inelegível (ou não) um candidato a cargo eletivo.
O Min. Fux, por sua vez, fala em “cautela” na aplicação de prerrogativas penais ao regime administrativo sancionatório, mas reconhece (inclusive com base em precedentes) o “núcleo constitucional comum” entre os dois ramos. No entanto, não dá critérios para definir quando as prerrogativas poderiam ser consideradas comuns. A partir de uma análise sistemática do voto, é possível supor que o Ministro entende que seria o caso de aplicá-los somente quando as condutas ímprobas se enquadrarem também em hipóteses de crimes comuns.
6. Elementos comuns dos votos pela irretroatividade irrestrita
Por outro lado, os elementos comuns dos votos que propuseram maior rigor na identificação entre os ramos, eliminando qualquer possibilidade de retroação, são dois: (1) literalidade do art. 5º, XL, da CF, que limita a exceção ao direito penal – e, portanto, não caberia estendê-la ao direito administrativo sancionador –, e (2) aspecto consequencial da condenação penal (mais rigorosa), porque envolve pena privativa de liberdade.
Há também aspectos derivados de pesquisas empíricas sobre ações em curso e tempo de duração dos processos – estes, utilizados também como baliza pelos Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux –, que sugeriam uma repercussão indesejada em termos de impunidade pela aplicação retroativa em caráter irrestrito da Lei 14.230.
7. Aprofundamento em torno de questões principiológicas e humanitárias: elementos utilizados para afastar os subsídios literais da irretroatividade
Os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes apresentaram votos extensos e aprofundados. Afastaram a aplicação literal da disposição do art. 5º, XL, da CF, e a ideia de que a improbidade seria uma ação civil – o que, aliás, a própria Lei 14.230 tratou de afastar (art. 17-D).
Remeteram a uma perspectiva histórica, alusiva à unicidade do poder estatal (penal e/ou administrativo). O Ministro Gilmar Mendes chegou a observar a incoerência do ordenamento na definição de condutas ímprobas (despidas de privilégios atribuíveis aos casos penais) e os crimes de responsabilidade, por vezes representativos de sanções muito menos gravosas e passíveis de aproveitamento das garantias inerentes a processos criminais.
Ademais, valeram-se de menções ao Pacto de San Jose da Costa Rica (art. 9º), de julgados proferidos com base no referido diploma internacional, e de precedentes do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) para rebater essa lógica.
A humanização da pena, segundo a conclusão dos Ministros, não estaria restrita à sanção privativa de liberdade.
É digno de nota que a Ministra Rosa Weber também examinou o assunto. No entanto, segundo a julgadora, a Convenção de Direitos Humanos não é apta a se sobrepor às previsões constitucionais do art. 5º, XL e XXXVI – e, portanto, não poderia impor exceção à direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e coisa julgada fora do direito penal.
8. Considerações finais
Os votos proferidos foram bastante elucidativos e aprofundados. Contemplaram vasta pesquisa doutrinária e jurisprudencial, inclusive em direito comparado, e enfatizaram questões práticas elementares que não podem ser descartadas.
Sem adentrar no mérito da solução adotada, há inúmeros excertos proveitosos, extraíveis da fundamentação apresentada por diversos Ministros, que devem ser utilizados para propiciar um aprofundamento ainda maior da discussão – e que, em última análise, deve ser calcada sob o prisma humanitário e das garantias fundamentais do cidadão.
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¹A esse respeito, confira-se o detalhado e esclarecedor artigo de Júlia Venzi Guimarães, veiculado neste mesmo periódico no mês de dezembro/2022: O direito administrativo sancionador aos olhos do STF: uma breve exposição do acórdão do ARE 843.989.