Informativo Eletrônico - Edição 216 - Fevereiro / 2025

O CASO CASSIRER: UMA BATALHA JURÍDICA SOBRE OBRAS DE ARTE SAQUEADAS

Wendell Leal Hossu Monteiro de Melo

1. Introdução

Em janeiro de 2024, o Tribunal de Apelações dos EUA para o 9º Circuito julgou o caso Cassirer v. Thyssen-Bornemisza Collection Foundation.² O julgado resulta de uma batalha jurídica de duas décadas sobre a propriedade legítima da pintura Rue Saint-Honoré, après-midi, effet de pluie, do impressionista francês Camille Pissarro. O caso destaca as complexidades da restituição internacional de arte, os princípios de conflito de leis e as preocupações morais em torno das obras de arte saqueadas.

2. Os personagens

No Cassirer v. Thyssen-Bornemisza Collection Foundation, os demandantes são os herdeiros de Lilly Cassirer, ou seja, David Cassirer, o espólio de Ava Cassirer e a Federação Judaica Unida do Condado de San Diego (EUA). O réu é a Thyssen-Bornemisza Collection Foundation (TBC), uma entidade do Reino da Espanha. A TBC é a instituição que administra a pintura adquirida pelo governo espanhol em 1993.

O caso foi ouvido no Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o 9º Circuito, após litígio no Distrito Central da Califórnia e a anulação de um julgamento anterior pela Suprema Corte dos Estados Unidos. 

3. Contexto

A pintura no centro da disputa era originalmente propriedade de Paul Cassirer, um negociante de arte judeu-alemão, e foi mais tarde herdada por Lilly Cassirer. Em 1939, sob coação do regime nazista, Lilly foi constrangida a vender a pintura por 900 Reichsmark (US$ 360), uma fração de seu valor, para garantir um visto de saída para a Inglaterra. Como Lilly nunca foi paga, a transação foi posteriormente reconhecida como uma venda forçada equivalente a um roubo.³

Após a guerra, a pintura mudou de mãos várias vezes, passando por um leilão na Alemanha, colecionadores particulares nos Estados Unidos e, eventualmente, passou a integrar a coleção do Barão Hans Heinrich Thyssen-Bornemisza na Suíça. Em 1993, o governo espanhol adquiriu a coleção do Barão, incluindo o disputado Pissarro, por US$ 350 milhões. A pintura está em exibição pública no Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, em Madri, desde então.

4. Histórico dos litígios

Em 2001, Claude Cassirer, neto de Lilly, descobriu o paradeiro da pintura e pediu ao governo espanhol sua devolução. Depois que a Espanha recusou o pedido, ele entrou com uma ação nos Estados Unidos sob a Lei de Imunidades Soberanas Estrangeiras (FSIA) em 2005, buscando sua restituição.

O caso envolveu várias rodadas de litígios, com decisões relevantes em vários níveis judiciários:

  • O Tribunal Distrital dos EUA aplicou as regras federais de direito internacional privado e decidiu a favor da TBC, concluindo que a lei espanhola regia a disputa.
  • O 9º Circuito inicialmente confirmou essa decisão, mas a Suprema Corte posteriormente anulou a decisão, sustentando que as regras de direito internacional privado da Califórnia deveriam ser aplicadas em vez da lei federal.
  • Em novo julgamento, o 9º Circuito reafirmou que a lei espanhola se aplicava, sustentando que o interesse da Espanha em manter a segurança jurídica sobre a propriedade superava os interesses políticos da Califórnia em devolver obras de arte saqueadas às vítimas do Holocausto.

5. O resultado

O 9º Circuito acabou decidindo a favor da Fundação de Coleção Thyssen-Bornemisza. O tribunal conduziu uma análise de “prejuízo comparativo” segundo as regras de direito internacional privado da Califórnia, concluindo que o interesse do governo da Espanha em garantir direitos de propriedade estáveis dentro de sua jurisdição superava o interesse da Califórnia em facilitar a restituição de arte roubada aos residentes naquele Estado.

Nos termos da lei espanhola, o artigo 1955 do Código Civil prevê que a propriedade dos bens pode ser adquirida através da posse ininterrupta de boa-fé durante três anos ou de má-fé durante seis anos. O tribunal determinou que a TBC havia exercido a posse sobre a pintura de forma pública e contínua por mais de seis anos, obtendo assim o título sobre a obra de arte pela prescrição aquisitiva.

No entanto, a decisão não considerou o artigo 1956 do Código Civil espanhol,⁴ que estabelece:

“Las cosas muebles hurtadas o robadas no podrán ser prescritas por los que las hurtaron o robaron, ni por los cómplices o encubridores, a no haber prescrito el delito o falta, o su pena, y la acción para exigir la responsabilidad civil, nacida del delito o falta”.⁵

Embora o tribunal reconhecesse as preocupações morais em torno da arte saqueada pelos nazistas, considerou que o ordenamento jurídico da Espanha para a aquisição de propriedades disciplinava a controvérsia. A juíza Callahan, em sua declaração de voto, lamentou o resultado, observando que a Espanha poderia ter devolvido voluntariamente a pintura, apesar de ter razão juridicamente.⁶

6. Posição espanhola sobre a decisão

O governo espanhol expressou uma posição dividida sobre a decisão. O ministro da Cultura, Ernest Urtasun, reconheceu que teria gerido o caso de forma diferente, mas afirmou respeitar a decisão judicial. Ele afirmou que as autoridades anteriores trataram do assunto como entenderam melhor e, embora soluções alternativas estivessem disponíveis, o caminho escolhido levou a uma solução jurídica para a questão.⁷

O Ministério Público espanhol defendeu a Fundação Thyssen-Bornemisza, enfatizando que a lei espanhola protegia a propriedade do museu. O próprio museu, satisfeito com o resultado, argumentou que o processo de aquisição havia sido legal e que a pintura fazia parte legalmente do patrimônio nacional da Espanha.⁸ No entanto, alguns críticos, incluindo representantes de organizações culturais judaicas, argumentaram que a Espanha deveria ter considerado a restituição voluntária de acordo com os compromissos internacionais sobre a arte saqueada pelos nazistas.⁹

7. Conclusão

O caso Cassirer v. Thyssen-Bornemisza Collection Foundation destaca as dificuldades de se decidir sobre pleitos de restituição de arte envolvendo várias jurisdições, princípios jurídicos conflitantes e fatos históricos. 

Apesar da vitória jurídica da entidade espanhola, o caso reacendeu as discussões sobre a responsabilidade ética de governos e museus em lidar com reivindicações de arte saqueada da era nazista. A decisão, independentemente de ser sólida ou não em termos jurídicos, permanece controversa no contexto mais amplo da justiça para as vítimas do Holocausto e suas famílias. A posição espanhola reflete a tensão entre segurança jurídica e responsabilidade moral, ilustrando o debate ainda em curso sobre a restituição do patrimônio cultural originalmente adquirido em circunstâncias questionáveis. 

Na cadeia de propriedade de uma obra de arte de alto perfil como o Pisarro em questão, até que ponto os compradores subsequentes devem investigar sua origem potencialmente ilegítima? Até onde  vai o caveat emptor em um ambiente de obras de arte saqueadas, como o relacionado à Segunda Guerra Mundial e o inaugurado com o fim do domínio colonial sobre regiões culturalmente espoliadas durante o período de ocupação? Devem prevalecer a segurança jurídica atual e a opção por se deixar o passado para a História? Ou instrumentos jurídicos como o art. 1956 do Código Civil espanhol devem ensejar a private enforcement das diretrizes morais (senão jurídicas) que inspiram a restituição de obras culturais saqueadas? São questões ainda em aberto e cada vez mais relevantes.

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¹ Artigo produzido sob a orientação de Cesar Pereira, sócio da Justen, Pereira, Oliveira e Talamini.

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² David Cassirer, et al., Peticionários v. Fundação da Coleção Thyssen-Bornemisza, No. 24-652 – Disponível em: https://www.supremecourt.gov/docket/docketfiles/html/public/24-652.html – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025.

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³  Disponível em: https://www.reuters.com/legal/madrid-museum-may-keep-pissarro-painting-looted-by-nazis-us-appeals-court-rules-2024-01-09/ – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025.

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⁴ Disponível em: Urtasun, sobre el ‘Pissarro’ expoliado del Thyssen: “Lo habría gestionado de otra manera” – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025.

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⁵  Código Civil Espanhol – Disponível em: https://www.mjusticia.gob.es/es/AreaTematica/DocumentacionPublicaciones/InstListDownload/Codigo_Civil.PDF  – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025.

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David Cassirer, et al., Peticionários contra Fundação da Coleção Thyssen-Bornemisza, Corte de Apelações dos Estados Unidos para o 9º Circuito, Nº 19-55616 (D. C. Nº 2:055-cv-03459-JFW-E), Parecer do Juiz BEA, Carlos T.; Concordância da Juíza CALLAHAN, Consuelo M. – Disponível em: https://cdn.ca9.uscourts.gov/datastore/opinions/2024/01/09/19-55616.pdf – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025.

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⁷ Disponível em: Urtasun, sobre el ‘Pissarro’ expoliado del Thyssen: “Lo habría gestionado de otra manera” – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025

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⁸ Disponível em: El Museo Thyssen lleva gastados 3 millones de euros en el litigio judicial por el cuadro de Pissarro – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025.

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⁹ Disponível em: Urtasun, sobre el ‘Pissarro’ expoliado del Thyssen: “Lo habría gestionado de otra manera” – Acesso em: 23 de fevereiro de 2025.

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Wendell Leal Hossu Monteiro de Melo
Acadêmico de Direito (PUC/SP). Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.¹
Wendell Leal Hossu Monteiro de Melo
Acadêmico de Direito (PUC/SP). Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.¹
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