Informativo Eletrônico - Edição 210 - Agosto / 2024

O FUTURO ESTATUTO NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO (PL 2.481/2022): EXPOSIÇÃO DAS PROPOSTAS DE ALTERAÇÕES NA LEI 9.784/1999

Nicole Mendes Müller

1. Introdução

Está em tramitação o PL 2.481/2022, que contempla diversas alterações à Lei 9.784/1999. Caso aprovado, importantes inovações serão implementadas no âmbito dos processos administrativos. Cabe desde logo examiná-las.

2. Âmbito de incidência da lei

Uma das primeiras alterações contempla o âmbito de incidência da Lei 9.784/1999. Atualmente, a Lei é aplicável exclusivamente à Administração Federal direta e indireta. O PL contempla alteração para que a Lei se torne nacional, aplicável à Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (cf. a nova redação proposta para a ementa e art. 1°, caput e § 1°).

A alteração do âmbito de incidência do regime legal é relevante sob o aspecto de uniformização das regras aplicáveis aos processos administrativos. Pode trazer mais segurança jurídica e melhor difundir os hábitos processuais na Administração brasileira.¹

3. Incentivo ao consensualismo

As alterações propostas pelo PL também incentivam o consensualismo em diversos pontos. Há sugestão para a inclusão de todo um novo capítulo (Capítulo XVII-A), com previsão expressa da possibilidade de a Administração negociar e firmar acordos com os interessados, podendo se utilizar da mediação, da negociação, do comitê de resolução de disputas e da arbitragem (arts. 68-E e 68-F).

Não há inovação no que concerne à legislação atual, como exemplo a LINDB e a Lei 9.307/1996, que já regulam práticas consensuais no âmbito da Administração Pública. Contudo, a proposta do PL deve ser considerada positiva, visto que o incentivo ao uso de mecanismos de consenso garante uma participação mais democrática dos administrados, além de proporcionar maior transparência e validade para as ações administrativas.

4. Duração razoável do processo e garantia do direito de resposta

Ainda, o PL contempla propostas de inserção de vários dispositivos que estabelecem prazos para as diversas etapas do processo administrativo. Isso demonstra uma preocupação em garantir a duração razoável do processo.

4.1. Duração da fase instrutória

A instrução do processo administrativo deverá ser realizada no prazo de 60 dias, prorrogável mediante decisão prévia e devidamente motivada (art. 29, § 3°).

4.2. Prazo para conclusão do processo

Já a conclusão do processo não poderá ultrapassar o prazo total de seis meses (art. 49), contados da data de instauração, nos casos iniciados de ofício pela Administração, ou da data de entrada do requerimento do interessado. Há hipóteses de suspensão do referido prazo, tais como o início das tratativas para a celebração de acordo. A previsão pode ser considerada também como mais um incentivo à prática do consensualismo.

Há inovação prevendo que a ausência de decisão no prazo de seis meses viola o direito líquido e certo dos interessados de obter uma decisão (§ 5°, art. 49). Assim, havendo omissão ou recusa da autoridade em decidir nesse prazo, será transferida a competência decisória para a autoridade superior (art. 49-H).

Ainda, no caso de omissão reiterada, a autoridade superior deverá, de ofício ou mediante o requerimento de qualquer interessado, apresentar um plano de ação. Esse plano deverá indicar, no mínimo, as medidas concretas que deverão ser adotadas, o prazo esperado para cessação da omissão reiterada e um ou mais agentes públicos responsáveis pela supervisão do cumprimento do plano (art. 49-I).

4.3. Alteração na forma de contagem dos prazos

Além disso, o texto do PL propõe que todos os prazos processuais deverão ser contados em dias úteis (art. 66, § 2°), tal como ocorre nos processos judiciais.

5.  Incentivo ao uso de meios eletrônicos

O texto do PL também prevê a inclusão de um novo capítulo (X-A) na Lei, dispondo sobre o processo administrativo eletrônico.

Segundo o projeto, os processos administrativos deverão, preferencialmente, ser conduzidos por meio eletrônico (art. 47-A, caput), devendo a Administração Pública assegurar aos interessados os meios para acesso e consulta dos sistemas eletrônicos (art. 47-C).

O art. 47-B estabelece os parâmetros que deverão ser observados pelos sistemas eletrônicos, destacando-se a garantia de interoperabilidade (inc. II) e a padronização e simplificação dos requerimentos (inc. V).

O art. 47-D, § 2º, prevê o uso de aplicativo de mensagem instantânea para comunicação e intimação dos atos no âmbito dos processos eletrônicos. A confirmação da comunicação se dará mediante a manifestação expressa do destinatário ou através do comparecimento espontâneo ou prática do ato processual correspondente. Há inclusive previsão de sanção premial para o caso de manifestação expressa do destinatário, sendo dilatado pela metade o prazo para a prática do ato processual correspondente.

Ainda, o art. 47-E prevê regulamentação para o uso de modelos de inteligência artificial, que deve ser transparente, previsível, auditável e garantir: (i) informação prévia sobre o uso de sistemas que utilizam IA; (ii) explicação, quando solicitada, sobre os critérios utilizados pelo sistema para tomada de decisão; (iii) proteção de dados pessoais; (iv) revisão de dados e resultados; e (v) correção de vieses discriminatórios. 

6. Extensão das decisões administrativas

O texto do PL também propõe a inclusão do Capítulo XI-C na Lei 9.784/1999, que cuidará da “extensão das decisões”.

6.1. A atribuição de eficácia vinculante às decisões administrativas

O art. 49-J estabelece a possibilidade de a autoridade administrativa atribuir eficácia vinculante e normativa à decisão proferida em processo administrativo que se caracterizar como extensível a outros casos similares.

Há emenda (nº 8), ainda pendente de apreciação, propondo a inclusão de dois novos parágrafos no dispositivo, com a previsão de que, nos casos em que a decisão for restritiva de direitos, a Administração Pública deverá, como regra, submeter as minutas dos atos à consulta pública.

A referida emenda se preocupa com a preservação da ampla defesa e do contraditório. O intuito do legislador é que o mecanismo da consulta pública seja utilizado nesses casos para fortalecer a legitimidade das decisões tomadas e conferir maior transparência ao processo.

6.2. A atribuição de eficácia vinculante às decisões administrativas

O art. 49-K prevê a possibilidade de a autoridade administrativa editar enunciado vinculante para tornar obrigatória a aplicação de decisão judicial transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, aos casos similares cujo conteúdo seja extensível.

6.3. A extensão das decisões judiciais aos processos administrativos

O art. 49-L, por sua vez, estabelece o dever de a autoridade administrativa, de ofício ou mediante requerimento, observar para os casos similares: (i) as decisões do STF em regime de repercussão geral ou em controle concentrado de constitucionalidade; (ii) os enunciados de súmula vinculante; (iii) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (iv) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional.

Segundo o projeto, a Administração deverá emitir parecer jurídico, no prazo de 90 dias, para indicar a extensão dos efeitos da decisão judicial no âmbito do processo administrativo (§ 1° do art. 49-L). Quando a aplicação da decisão judicial decorrer de requerimento do administrado, o decurso do referido prazo produzirá o efeito de extensão tácita da decisão (§ 2° do art. 49-L).

A proposta possui redação muito semelhante ao art. 927 do CPC, o que demonstra um interesse em aplicar o entendimento uniformizado da jurisprudência também aos processos administrativos e, por consequência, à própria Administração Pública.

7. Controle de qualidade regulatória

Outra inovação contida no texto do PL é prevista pelo Capítulo XII-A, que tratará da Análise de Impacto e Avaliação de Resultado Regulatório (AIR e ARR, respectivamente). Nota-se uma preocupação com o controle de qualidade regulatória, principalmente com o incentivo à utilização da Avaliação de Resultado Regulatório.

O Guia Orientativo para Elaboração da AIR, elaborado pela Casa Civil, já recomendava a utilização da ARR. Na esfera federal, as Agências Reguladoras também já vinham aplicando o instrumento para realizarem a gestão e revisão do seu estoque regulatório. A Aneel e a Anvisa inclusive nomearam o processo como “Guilhotina Regulatória”.

O ARR também foi objeto de destaque pelo Decreto 10.411/2020. Seu art. 12 prevê a utilização da ARR nos casos em que a AIR tenha sido dispensada. E o art. 13 indica que os órgãos e entidades que utilizarem o instrumento deverão implementar estratégias de integração dele com a “atividade de elaboração normativa”.

Até o momento, o ARR não conta com ampla adesão da Administração Pública.² A sua inclusão no Estatuto Nacional de Uniformização do Processo Administrativo pode ser um importante incentivo para sua utilização, com a consequente melhoria da qualidade regulatória no país.

8. Direito administrativo sancionador

Por fim, o texto do PL propõe a implementação de dois novos capítulos sobre direito administrativo sancionador: um deles sobre os princípios do direito administrativo sancionador e outro sobre o processo administrativo sancionador.

8.1. Os princípios do direito administrativo sancionador (Capítulo XVII)

O art. 68-A determina a observância dos princípios da retroatividade da norma mais benéfica, do contraditório, da prévia e ampla defesa, da intranscendência da sanção, da proporcionalidade, da razoabilidade, do non bis in idem e da verdade material, sempre que houver a elaboração, interpretação, aplicação e execução de normas de direito administrativo sancionador.

O art. 68-B prevê a ausência de responsabilização sancionatória objetiva da pessoa física e jurídica. O art. 68-C estabelece o dever de redução do tempo de tramitação dos processos e detração da sanção anterior de igual natureza, sempre que existir mais de um processo administrativo sancionatório, baseado, total ou parcialmente, nos mesmos fatos.

E o art. 68-D prevê a possibilidade de a Administração estabelecer investigação preliminar para aferir a plausibilidade da ocorrência de fato ilícito levado ao seu conhecimento. Essa investigação deverá ser concluída no prazo de 12 meses, sendo prorrogável uma única vez, pela metade do tempo.

8.2. O processo administrativo sancionador (Capítulo XVII-B)

O art. 68-G traz grande inovação em seu § 4°, ao estabelecer a segregação de funções para as atividades de investigação e julgamento, a fim de garantir a imparcialidade investigativa, instrutória e julgadora das autoridades competentes, preservando o princípio do devido processo legal. ³

Nesse ponto há uma emenda (n° 6), pendente de apreciação, que visa a inserir o § 6° no art. 68-G, para que sejam aplicados aos agentes públicos os arts. 133 a 148 do Código de Processo Civil, relativos às hipóteses de impedimentos e suspeição.

Ainda, o art. 68-H estabelece critérios gerais para a dosimetria da sanção, com a indicação de agravantes e atenuantes, detalhando a regra já prevista pelo art. 22, §2°, da LINDB⁴

O art. 68-I prevê a concessão de efeito suspensivo para o recurso interposto em face da decisão que aplicar sanção. A emenda n° 7, também pendente de apreciação, sugere a retirada da parte final da redação do art. 68-I, que atualmente prevê que o prazo do efeito suspensivo não poderá ser inferior a 10 dias. A intenção da emenda é que o efeito suspensivo perdure até a ciência do julgamento do recurso.

E o art. 68-J estabelece o prazo de cinco anos para prescrição da ação punitiva da atividade administrativa e controladora, objetivando apurar infração administrativa. Há emenda (n° 22), ainda não apreciada, sugerindo a alteração do prazo para oito anos, utilizando-se como paradigma o prazo estabelecido no art. 23, caput, da Lei 8.249/1992.

9. Conclusão

O PL 2.481/2022 propõe importantes mudanças e inovações na Lei 9.784/1999 que podem trazer melhorias para os processos administrativos, principalmente sob o aspecto da procedimentalização.

As alterações propostas podem reforçar garantias essenciais para assegurar a observância do devido processo legal, trazendo maior segurança, transparência, uniformidade e previsibilidade aos processos administrativos.

Além das mudanças acima mencionadas há outras propostas pelo PL. Um quadro comparativo provisório pode ser consultado através QR Code abaixo.⁵

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Descrição gerada automaticamente

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¹ A doutrina possui entendimento no sentido de que o atual âmbito de incidência da lei pode ser um dos motivos pelos quais há uma lenta difusão dos hábitos processuais na Administração Pública. Sobre o tema, confira-se: PEREZ, Marcos Augusto. Processo administrativo e globalização: um diálogo entre os direitos brasileiro e norteamericano. REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLÍTICOS, v. 124, p. 335-364, 2022.

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² Sobre o tema, confira-se JORDÃO, Eduardo; CUNHA, Luiz Filippe. Revisão do Estoque Regulatório: a tendência de foco na análise de impacto regulatório retrospectiva in A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, vol. 80. Belo Horizonte: Fórum, abr./jun. 2020.

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³ Para mais sobre o tema: JUSTEN FILHO, Marçal. O projeto de reforma da Lei de Processo Administrativo. Jota. Publicado em 9 de jul. de 2024. Acesso em 12 de julho de 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/o-projeto-de-reforma-da-lei-de-processo-administrativo-09072024?non-beta=1

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⁴ O art. 22, § 2°, da LINDB dispõe que: “Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente”.

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Nicole Mendes Müller
Nicole Mendes Müller
Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
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Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.