1. Introdução
O novo marco legal do saneamento (PL 4.162/2019), que aguarda sanção presidencial, apresenta uma série de inovações, ao mesmo tempo em que busca conferir maior efetividade à disciplina já existente. Trata-se de tentativa de incorporar maior formalidade a um setor marcadamente caracterizado por contratos precários e lacônicos e de modernizá-lo, com novas práticas que, se implementadas, podem mudar o patamar de segurança jurídica e efetividade na prestação dos serviços de saneamento básico. O presente texto trata de algumas das previsões que, entrando em vigor, dirigirão os contratos em curso e os novos investimentos no setor.
2. Proposta de reduzir a pulverização, uniformizar a regulação e a organização do setor: as atribuições que a União busca atrair para si
No tocante às contratações desses serviços, um primeiro aspecto a ser observado diz respeito ao impacto das redefinições institucionais relativas à regulação do serviço – notadamente, no que diz respeito à influência mais abrangente e intensa que a União visa a empreender para impulsionar o setor.
Além de preservar a previsão de elaboração pela União do Plano Nacional de Saneamento Básico” – agora, sob atribuição do Ministério do Desenvolvimento Regional (art. 52 da Lei 11.445/07) –, o novo marco incorpora alterações na Lei 9.984/00, para o fim de atribuir à ANA (agora denominada Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) a definição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, observando as diretrizes regulatórias já previstas na Lei 11.445/07 (arts. 1º e 4º-A).
Essa sistemática é diretamente relevante para a delegação dos serviços. Conforme os incisos do art. 4º-A, as normas de referência a serem fixadas pela ANA dizem respeito a três núcleos essenciais para o planejamento e a execução dos serviços: (1) elementos técnicos (de qualidade e eficiência dos serviços), (2) aspectos econômicos (regulação tarifária, equilíbrio dos contratos e universalização, contabilidade regulatória, metodologia de cálculo de indenizações, p. ex.), utilização e alcance dos serviços (uso racional de recursos naturais, redução e controle de perda da água e universalização, observando a viabilidade econômico-financeira da expansão do serviço, p. ex.) e (3) jurídicos (padronização dos “instrumentos negociais de prestação de serviços públicos”, incluindo a disciplina acerca de metas de qualidade, eficiência e ampliação da cobertura dos serviços, matriz de riscos e manutenção do equilíbrio contratual, governança regulatória etc.).
No tocante aos aspectos técnicos, o novo marco visa a ampliar a eficiência do planejamento dos serviços, que, em vista de limitações municipais, muitas vezes se revela precário, e reduzir o custo regulatório a partir da elaboração centralizada das normas de referência pela União. Esses objetivos são ilustrados, ainda, pela possibilidade de o titular do serviço aderir a parâmetros regulatórios inclusive de agências reguladoras de outros Estados (art. 23, § 1º-A, da Lei 11.445/07). Já as normas sobre os aspectos econômicos e jurídicos acentuam o propósito de agregar previsibilidade e estabilidade ao setor. Cabe ressalvar possível discussão acerca da constitucionalidade da concentração dessas atribuições em âmbito federal, considerando as competências próprias dos entes titulares dos serviços.
Ainda como forma de superar carências locais, previu-se disciplina pormenorizada sobre a prestação regionalizada dos serviços e a forma de integração dos Municípios para viabilizar projetos de escala maior e que comportem uso mais amplo de mecanismos de subsídios cruzados – que podem ser aplicados dentro e entre os serviços de saneamento (entre abastecimento de água e esgotamento sanitário, p. ex.), observando cada serviço envolve diferentes estruturas de capital, em vista dos potenciais e fluxos de arrecadação e das demandas de investimento peculiares a cada qual.
Outra via para conferir eficácia às definições regulatórias e às metas previstas em âmbito federal está no uso do spending power da União, conforme as previsões do art. 50, III, IV e V e § 5º, da Lei 11.445/07. Os incisos condicionam a alocação de recursos e financiamentos federais à observância das normas de referência, cumprimento de índice de perda de água e fornecimento adequado de informações ao SINISA (Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico), enquanto o § 5º, a título de “fomento à melhoria da prestação dos serviços públicos de saneamento básico”, prevê a concessão de “benefícios ou incentivos orçamentários, fiscais ou creditícios como contrapartida ao alcance de metas de desempenho operacional previamente estabelecidas”.
3. As mudanças contratuais: o contrato de concessão como instrumento jurídico exclusivo para a delegação dos serviços
No plano contratual propriamente dito, o marco legal produz alterações significativas.
De acordo com a nova redação do art. 10 da Lei 11.445/07, fica vedada a delegação de serviços “mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária” – que era uma das práticas mais características do setor. Também essa vedação pode vir a ser sujeita a questionamentos sobre a sua constitucionalidade, sob o prisma da autonomia federativa dos titulares dos serviços.
Como consequência, prevê-se a delegação dos serviços exclusivamente pela via do contrato de concessão – em suas diversas modalidades, incluindo as parcerias público-privadas disciplinadas pela Lei 11.079/04 (art. 11-A da Lei 11.445/07), as quais já vêm sendo adotadas no setor por Municípios e empresas estatais, sobretudo sob a forma da concessão administrativa.
4. A universalização e o contratos em curso: medidas de reequilíbrio, flexibilização de requisitos de habilitação e novas técnicas contratuais
Por outro lado, prevê-se meta concreta de universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033 (art. 10-B da Lei 11.445/07).
Trata-se de inovação relevante, pois a disciplina original da Lei 11.445/07 era pródiga em estabelecer definições para o processo de formação do planejamento dos serviços, mas era destituída de instrumentos para aferição da qualidade e da efetividade dos planos produzidos. Em outras palavras, estabelecia-se mais uma obrigação de meio, desacompanhada de parâmetros de controle dos fins e dos objetivos atingidos. O novo marco visa a modificar essa realidade, a partir da definição do prazo máximo para universalização. Sendo essa meta efetivamente adotada, ela pautará de forma mais objetiva os contratos específicos e a própria evolução do planejamento local dos serviços. Trata-se de proposta desafiadora e resta esperar que as condições institucionais e os investimentos necessários sejam de fato implementados para o seu atendimento, diferentemente do que ocorreu com a meta de desativação de lixões. Prevista na Política Nacional de Resíduos Sólidos para ser atendida até 2014 (art. 54 Lei 12.305/10), a meta até hoje não foi atingida.
Para viabilizar prontamente a observância das metas de universalização, abastecimento, melhorias e redução de perdas, o art. 11-B da Lei 11.445/07 passará a disciplinar três hipóteses específicas: (1) a incidência do novo regramento a contratos vigentes que não contemplem quaisquer metas, com a sua adequação até 31.03.2022; (2) a adoção de providências alternativas aos contratos em curso (prestação direta da parcela remanescente ou licitação complementar) e (3) o aditamento de contratos já em curso.
Para a adequação dos contratos em curso, a providência mais evidente será promover a reestruturação econômico-financeira, para comportar os novos investimentos. Aqui surgirão limitações práticas ao reequilíbrio econômico financeiro, visto que a alteração da política tarifária, para ampliação da remuneração do serviço, pode ter alcance limitado em vista da realidade socioeconômica e, de modo geral, não será possível reequilibrar o contrato pela via da redução de investimentos, visto que o propósito é justamente ampliar o capital a ser aplicado para viabilizar a expansão dos serviços.
Entre as providências que podem ser adotadas, de forma isolada ou em conjunto, está a incorporação de receitas alternativas e de estruturas de remuneração ou aporte pelo próprio poder concedente, incluindo subsídios e subvenções (art. 29 da Lei 11.445/07), além da prorrogação das delegações como forma de viabilizar a amortização dos investimentos realizados, bem como a observância dos parâmetros federais necessários para a captação de recursos e financiamentos.
Adicionalmente, para viabilizar o financiamento do capital necessário, a alteração promovida por meio do art. 10-B pode justificar a modificação dos requisitos de habilitação econômico-financeira originais da concessão. Isso pode ser concretizado, por exemplo, pela flexibilização dos índices de liquidez e endividamento eventualmente previstos, para possibilitar a contratação de maiores volumes de dívida em vista das novas demandas de capital. Isso sempre de forma atrelada “à comprovação da capacidade econômico financeira da contratada”, conforme o art. 10-B.
De outra parte, afigura-se questionável (ou, pelo menos, de alcance limitado) a vedação à “distribuição de lucros e dividendos, do contrato em execução, pelo prestador de serviços que estiver descumprindo as metas e cronogramas estabelecidos no contrato específico da prestação de serviço público de saneamento básico”, prevista no § 5º do art. 11 da Lei 11.445/07. Entende-se que essa providência pode vir a ser ajustada bilateralmente, mas não pode ser imposta de forma unilateral para modificar contratos em curso, inclusive porque diz respeito à organização interna e societária da empresa prestadora do serviço e afeta direitos de terceiros.
Por fim, quanto à redução das perdas e de melhoria dos processos de tratamento, especialmente os ente públicos que prossigam prestando os serviços por conta própria podem valer-se de contratos com remuneração variável e do próprio contrato de eficiência para incentivar o atingimento das metas, como apontado em outra oportunidade a propósito da gestão de recursos hídricos (REISDORFER, Guilherme F. Dias. Contratos administrativos de performance: a aplicação da remuneração variável e do contrato de eficiência para a gestão eficiente de recursos escassos. In: CUNHA FILHO; Alexandre Jorge Carneiro da; et al.. (org.). A crise hídrica e o direito: racionalidade jurídica a serviço da complexidade socioambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015).