Informativo Eletrônico - Edição 161 - Julho / 2020

O QUE MUDA COM O NOVO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO? Breves apontamentos sobre quatro alterações relevantes

Rafael Wallbach Schwind

1. Introdução  

 Foi publicada no dia 16.7.2020 a Lei 14.026, que atualiza o marco legal  do saneamento básico. 

Não se trata propriamente da edição de uma nova lei de saneamento,  mas de ajustes realizados no marco legal do setor. 

Mas, afinal, quais foram as principais alterações introduzidas pela nova  lei? Este artigo pretende reunir quatro delas: (1) a questão dos contratos de  programa, (2) a competência da ANA para o estabelecimento de “normas de  referência”, (3) a questão da cobrança pela disponibilidade do serviço e (4) o  detalhamento das previsões sobre prestação regionalizada. 

2. Término dos contratos de programa

 Um dos pontos mais discutidos ao longo do processo de aprovação da  nova lei diz respeito às restrições para a utilização dos contratos de programa. 

Os contratos de programa são os instrumentos pelos quais um ente  federativo transfere a outro a execução dos serviços. No setor de saneamento,  são comuns os contratos de programa em que um Município transfere a uma  empresa estatal de saneamento a execução dos serviços de sua titularidade.  Nesses contratos, são previstas disposições sobre a prestação dos serviços, a  política tarifária, as obrigações das partes e diversos outros assuntos.

O problema é que os contratos de programa são celebrados sem a  realização de prévia licitação, e isso sempre gerou discussões por ser, na  prática, uma restrição aos investimentos privados no setor de saneamento.  Ainda que as empresas estatais de saneamento possam ter capital privado,  inclusive por meio de sócios privados estratégicos e não apenas pela  sistemática da pulverização do capital, trata-se na prática de uma dificuldade  ao ingresso de investidores privados. 

Com o intuito de ampliar a participação da iniciativa privada, a nova lei  alterou a redação de dois dispositivos da Lei 11.445.

O art. 10 da Lei 11.445 passou a prever que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração  do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia  licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, “vedada a sua  disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou  outros instrumentos de natureza precária”. 

Assim, por exemplo, se um Município pretender delegar a prestação de  serviços de saneamento e alguma entidade que não integre a sua estrutura  administrativa, deverá celebrar um contrato de concessão mediante licitação. 

O outro dispositivo alterado é o art. 8º da Lei 11.445. O §1º estabelece que o exercício da titularidade dos serviços de saneamento poderá ser  realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou  convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal,  sendo possível, por exemplo, a formalização de consórcios intermunicipais de  saneamento básico. No entanto, o inciso II desse parágrafo passou a  estabelecer textualmente que fica “vedada a formalização de contrato de  programa com sociedade de economia mista ou empresa pública, ou a  subdelegação do serviço prestado pela autarquia municipal sem prévio  procedimento licitatório”.

Portanto, seja por meio de um município isoladamente, seja por meio de  um consórcio intermunicipal, é vedada a celebração de contratos de programa  sem licitação. A ideia é que os serviços de saneamento sejam delegados por meio de contratos de concessão, precedidos de licitação, de modo a ampliar a  disputa pela exploração desses serviços, o que, em tese, gera condições de  haver maior concorrência e condições mais vantajosas ao poder público e aos  usuários. 

3. Competência da ANA para edição de “normas de referência” 

A Lei 14.026 incluiu o art. 4º-A na Lei 9.984, prevendo que a Agência  Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA instituirá “normas de  referência” para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por  seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras. 

Assim, a ANA passou a ter a competência de instituir regras básicas  sobre determinados assuntos, de modo a estabelecer padrões mínimos que serão de observância obrigatória em todo o país. 

Os temas a ser tratados pelas normas de referência da ANA são os  seguintes: (1) padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção  e na operação dos sistemas de saneamento básico; (2) regulação tarifária dos  serviços públicos de saneamento básico; (3) padronização dos instrumentos  negociais de prestação de serviços públicos de saneamento básico firmados  entre o titular do serviço público e o delegatário; (4) metas de universalização dos serviços públicos de saneamento básico; (5) critérios para a contabilidade  regulatória; (6) redução progressiva e controle da perda de água; (7) metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos  realizados e ainda não amortizados ou depreciados; (8) governança das entidades reguladoras; (9) reúso dos efluentes sanitários tratados; (10)  parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços  públicos de saneamento básico; (11) normas e metas de substituição do  sistema unitário pelo sistema separador absoluto de tratamento de efluentes;  (12) sistema de avaliação do cumprimento de metas de ampliação e  universalização da cobertura dos serviços públicos de saneamento básico; e  (13) conteúdo mínimo para a prestação universalizada e para a  sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento  básico.

A nova lei ainda estabelece certos parâmetros que a ANA deverá  observar ao estabelecer normas de referência (como o estímulo à  competitividade e à sustentabilidade econômica, por exemplo), como também  prevê a necessidade de observância de certas formalidades destinadas a  garantir que haja transparência e ampla participação (como a utilização dos  instrumentos de consultas e audiências públicas e análises de impacto  regulatório). Nesse sentido, por exemplo, o § 6º do art. 4º-A da Lei 9.984 prevê  que “A ANA avaliará o impacto regulatório e o cumprimento das normas de  referência de que trata o § 1º deste artigo pelos órgãos e pelas entidades  responsáveis pela regulação e pela fiscalização dos serviços”

Os objetivos de todas essas previsões relacionados às normas de  referência são, basicamente, a instituição de uma uniformidade regulatória e de  uma maior segurança jurídica. Num país de dimensões constitucionais, em que os Municípios muitas vezes editam regras bastante diversas, comumente  influenciados por razões políticas e não propriamente técnicas, trata-se de  objetivos salutares. 

4. A cobrança pela disponibilidade do serviço

A Lei 14.026 alterou a redação do art. 45 da Lei 11.445 para deixar mais  clara a possibilidade de cobrança pela disponibilidade do serviço de  saneamento, e não apenas pela sua prestação.

O dispositivo passou a prever que as edificações permanentes urbanas  serão conectadas às redes públicas de abastecimento de água e de  esgotamento sanitário disponíveis e estarão sujeitas ao pagamento de taxas,  tarifas e outros preços públicos “decorrentes da disponibilização e da  manutenção da infraestrutura e do uso desses serviços”. 

O § 4º do art. 45 ainda passou a estabelecer que, quando for  disponibilizada rede pública de esgotamento sanitário, o usuário “estará sujeito aos pagamentos previstos no caput deste artigo, sendo-lhe assegurada a  cobrança de um valor mínimo de utilização dos serviços, ainda que a sua edificação não esteja conectada à rede pública”.

A solução de se permitir expressamente a cobrança pela  disponibilização do serviço tende a conferir maior segurança jurídica às  empresas prestadoras de serviços de saneamento. Trata-se, na verdade, de  solução já adotada em diversos outros setores e em atividades totalmente  privadas, em que se cobra um valor base (tarifa básica, assinatura básica etc.)  pela disponibilização de um serviço. Há evidente racionalidade econômica  nessa solução, uma vez que a simples disponibilização de um serviço envolve  custos, investimentos e responsabilidades ao prestador. 

5. A prestação regionalizada e a questão (ainda) da titularidade do serviço 

 O Novo Marco ainda estabeleceu conceitos novos sobre a prestação de  serviços de interesse regional. 

O inciso VI do art. 3º da Lei 11.445 passou a definir a “prestação  regionalizada” como sendo a “modalidade de prestação integrada de um ou  mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em  determinada região cujo território abranja mais de um Município”, que pode ser  estruturada de três formas: (1) região metropolitana, aglomeração urbana ou  microrregião, (2) unidade regional de saneamento básico, e (3) bloco de  referência. 

As regras estabelecidas detalham muito mais do que antes como pode  ocorrer a prestação regionalizada. Isso tende a dar mais uniformidade ao tema,  mas pode ter o efeito de inviabilizar situações específicas que não se amoldem  perfeitamente às novas previsões. 

Além disso, a própria uniformidade pretendida é difícil de ser alcançada.  De um lado, são os Estados que definem os agrupamentos (CF, art. 25, §3º).  De outro lado, a definição de interesse local é definida pelos municípios (CF,  art. 30, V). 

6. Conclusão 

As alterações na legislação que trata do saneamento têm claramente o  objetivo de aumentar a segurança jurídica e tornar o setor mais atrativo à  iniciativa privada. Diversas modificações, na realidade, são desnecessárias.  Algumas regras, ao detalhar certas previsões, acabam reduzindo a margem de  definições em cada situação concreta. De todo modo, diversas regras novas  são relevantes e tendem a propiciar maior estabilidade regulatória. 

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Rafael Wallbach Schwind
Rafael Wallbach Schwind
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela USP. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Rafael Wallbach Schwind
Rafael Wallbach Schwind
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela USP. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.