1. Introdução
Foi publicada no dia 16.7.2020 a Lei 14.026, que atualiza o marco legal do saneamento básico.
Não se trata propriamente da edição de uma nova lei de saneamento, mas de ajustes realizados no marco legal do setor.
Mas, afinal, quais foram as principais alterações introduzidas pela nova lei? Este artigo pretende reunir quatro delas: (1) a questão dos contratos de programa, (2) a competência da ANA para o estabelecimento de “normas de referência”, (3) a questão da cobrança pela disponibilidade do serviço e (4) o detalhamento das previsões sobre prestação regionalizada.
2. Término dos contratos de programa
Um dos pontos mais discutidos ao longo do processo de aprovação da nova lei diz respeito às restrições para a utilização dos contratos de programa.
Os contratos de programa são os instrumentos pelos quais um ente federativo transfere a outro a execução dos serviços. No setor de saneamento, são comuns os contratos de programa em que um Município transfere a uma empresa estatal de saneamento a execução dos serviços de sua titularidade. Nesses contratos, são previstas disposições sobre a prestação dos serviços, a política tarifária, as obrigações das partes e diversos outros assuntos.
O problema é que os contratos de programa são celebrados sem a realização de prévia licitação, e isso sempre gerou discussões por ser, na prática, uma restrição aos investimentos privados no setor de saneamento. Ainda que as empresas estatais de saneamento possam ter capital privado, inclusive por meio de sócios privados estratégicos e não apenas pela sistemática da pulverização do capital, trata-se na prática de uma dificuldade ao ingresso de investidores privados.
Com o intuito de ampliar a participação da iniciativa privada, a nova lei alterou a redação de dois dispositivos da Lei 11.445.
O art. 10 da Lei 11.445 passou a prever que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, “vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária”.
Assim, por exemplo, se um Município pretender delegar a prestação de serviços de saneamento e alguma entidade que não integre a sua estrutura administrativa, deverá celebrar um contrato de concessão mediante licitação.
O outro dispositivo alterado é o art. 8º da Lei 11.445. O §1º estabelece que o exercício da titularidade dos serviços de saneamento poderá ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal, sendo possível, por exemplo, a formalização de consórcios intermunicipais de saneamento básico. No entanto, o inciso II desse parágrafo passou a estabelecer textualmente que fica “vedada a formalização de contrato de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública, ou a subdelegação do serviço prestado pela autarquia municipal sem prévio procedimento licitatório”.
Portanto, seja por meio de um município isoladamente, seja por meio de um consórcio intermunicipal, é vedada a celebração de contratos de programa sem licitação. A ideia é que os serviços de saneamento sejam delegados por meio de contratos de concessão, precedidos de licitação, de modo a ampliar a disputa pela exploração desses serviços, o que, em tese, gera condições de haver maior concorrência e condições mais vantajosas ao poder público e aos usuários.
3. Competência da ANA para edição de “normas de referência”
A Lei 14.026 incluiu o art. 4º-A na Lei 9.984, prevendo que a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA instituirá “normas de referência” para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras.
Assim, a ANA passou a ter a competência de instituir regras básicas sobre determinados assuntos, de modo a estabelecer padrões mínimos que serão de observância obrigatória em todo o país.
Os temas a ser tratados pelas normas de referência da ANA são os seguintes: (1) padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico; (2) regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico; (3) padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços públicos de saneamento básico firmados entre o titular do serviço público e o delegatário; (4) metas de universalização dos serviços públicos de saneamento básico; (5) critérios para a contabilidade regulatória; (6) redução progressiva e controle da perda de água; (7) metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados; (8) governança das entidades reguladoras; (9) reúso dos efluentes sanitários tratados; (10) parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico; (11) normas e metas de substituição do sistema unitário pelo sistema separador absoluto de tratamento de efluentes; (12) sistema de avaliação do cumprimento de metas de ampliação e universalização da cobertura dos serviços públicos de saneamento básico; e (13) conteúdo mínimo para a prestação universalizada e para a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento básico.
A nova lei ainda estabelece certos parâmetros que a ANA deverá observar ao estabelecer normas de referência (como o estímulo à competitividade e à sustentabilidade econômica, por exemplo), como também prevê a necessidade de observância de certas formalidades destinadas a garantir que haja transparência e ampla participação (como a utilização dos instrumentos de consultas e audiências públicas e análises de impacto regulatório). Nesse sentido, por exemplo, o § 6º do art. 4º-A da Lei 9.984 prevê que “A ANA avaliará o impacto regulatório e o cumprimento das normas de referência de que trata o § 1º deste artigo pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pela regulação e pela fiscalização dos serviços”
Os objetivos de todas essas previsões relacionados às normas de referência são, basicamente, a instituição de uma uniformidade regulatória e de uma maior segurança jurídica. Num país de dimensões constitucionais, em que os Municípios muitas vezes editam regras bastante diversas, comumente influenciados por razões políticas e não propriamente técnicas, trata-se de objetivos salutares.
4. A cobrança pela disponibilidade do serviço
A Lei 14.026 alterou a redação do art. 45 da Lei 11.445 para deixar mais clara a possibilidade de cobrança pela disponibilidade do serviço de saneamento, e não apenas pela sua prestação.
O dispositivo passou a prever que as edificações permanentes urbanas serão conectadas às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis e estarão sujeitas ao pagamento de taxas, tarifas e outros preços públicos “decorrentes da disponibilização e da manutenção da infraestrutura e do uso desses serviços”.
O § 4º do art. 45 ainda passou a estabelecer que, quando for disponibilizada rede pública de esgotamento sanitário, o usuário “estará sujeito aos pagamentos previstos no caput deste artigo, sendo-lhe assegurada a cobrança de um valor mínimo de utilização dos serviços, ainda que a sua edificação não esteja conectada à rede pública”.
A solução de se permitir expressamente a cobrança pela disponibilização do serviço tende a conferir maior segurança jurídica às empresas prestadoras de serviços de saneamento. Trata-se, na verdade, de solução já adotada em diversos outros setores e em atividades totalmente privadas, em que se cobra um valor base (tarifa básica, assinatura básica etc.) pela disponibilização de um serviço. Há evidente racionalidade econômica nessa solução, uma vez que a simples disponibilização de um serviço envolve custos, investimentos e responsabilidades ao prestador.
5. A prestação regionalizada e a questão (ainda) da titularidade do serviço
O Novo Marco ainda estabeleceu conceitos novos sobre a prestação de serviços de interesse regional.
O inciso VI do art. 3º da Lei 11.445 passou a definir a “prestação regionalizada” como sendo a “modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município”, que pode ser estruturada de três formas: (1) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, (2) unidade regional de saneamento básico, e (3) bloco de referência.
As regras estabelecidas detalham muito mais do que antes como pode ocorrer a prestação regionalizada. Isso tende a dar mais uniformidade ao tema, mas pode ter o efeito de inviabilizar situações específicas que não se amoldem perfeitamente às novas previsões.
Além disso, a própria uniformidade pretendida é difícil de ser alcançada. De um lado, são os Estados que definem os agrupamentos (CF, art. 25, §3º). De outro lado, a definição de interesse local é definida pelos municípios (CF, art. 30, V).
6. Conclusão
As alterações na legislação que trata do saneamento têm claramente o objetivo de aumentar a segurança jurídica e tornar o setor mais atrativo à iniciativa privada. Diversas modificações, na realidade, são desnecessárias. Algumas regras, ao detalhar certas previsões, acabam reduzindo a margem de definições em cada situação concreta. De todo modo, diversas regras novas são relevantes e tendem a propiciar maior estabilidade regulatória.