Informativo Eletrônico - Edição 219 - Maio / 2025

OBRAS DE ARTES E PATRIMÔNIO CULTURAL SAQUEADO – O POSICIONAMENTO BRASILEIRO, CONVENÇÕES E A PERSPECTIVA INTERNACIONAL¹

Wendell Leal Hossu Monteiro de Melo

1. Introdução

Embora o litígio não seja, tipicamente, a principal lente pela qual a arte é apreciada, disputas envolvendo objetos culturais estão longe de ser raras. Na esfera internacional, uma das principais fontes de litígios diz respeito à restituição de obras de arte saqueadas durante episódios históricos de violência ou sob dominação colonial. Casos de grande repercussão, como a devolução das pinturas de Gustav Klimt — popularizada no filme Woman in Gold (2015) — já fazem parte da consciência pública global.

Este artigo busca explorar esse mercado em crescimento, trazendo também o contexto brasileiro: como o mundo tem respondido a esses casos e em que medida o Brasil está envolvido na aplicação das normas internacionais sobre saque e proteção do patrimônio cultural?

2. Looting e o patrimônio cultural

2.1. Conceito

O looting pode se referir à apropriação ilícita de bens culturais, especialmente em tempos de instabilidade política, militar ou social. Representa uma ameaça direta ao patrimônio nacional, desestabiliza a ordem pública e compromete a preservação da identidade cultural. Esses atos resultam na perda irreparável de informações históricas e contribuem para o financiamento do crime organizado por meio do comércio ilícito. Consequentemente, a proteção efetiva do patrimônio cultural é uma prioridade fundamental para os Estados soberanos.

2.2. Contexto histórico

O looting está diretamente ligado à história, desde as conquistas coloniais até os conflitos armados modernos. Nos séculos XVIII e XIX, potências europeias como França e Inglaterra foram responsáveis pela remoção de artefatos significativos do Egito.²

Atualmente, muitos museus ao redor do mundo abrigam itens de origem incerta ou, ao menos, questionável. O ex-ministro das Antiguidades do Egito, Zahi Hawass, fez campanhas recorrentes pela restituição de importantes artefatos, incluindo o Busto de Nefertiti, o Teto Zodiacal de Dendera e a Pedra de Roseta.³

3. A legislação brasileira e mecanismos institucionais

3.1. O papel do IPHAN

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)⁴ é a autoridade responsável pela exportação legal de bens culturais no Brasil. Quatro categorias de bens estão estritamente proibidas de deixar o país: (i) artefatos registrados no IPHAN; (ii) obras produzidas ou introduzidas antes de 1889; (iii) itens arqueológicos e pré-históricos; e (iv) livros raros e materiais de arquivo dos séculos XVI ao XIX.⁵

3.2. Desafios

Apesar dessas proteções, o Brasil já enfrentou casos de furtos culturais, como o roubo na Biblioteca Nacional em 2004. O mercado negro global de bens culturais é estimado em US$ 15 bilhões anuais. O Brasil ocupa a 26ª posição mundial em prevalência de saques e baixas taxas de recuperação.⁶

Uma investigação da Polícia Federal em 2023 descobriu 200 obras sacras sendo transportadas sem documentação, provavelmente saqueadas de igrejas no Rio de Janeiro e em Belém.⁷

4. Instrumentos jurídicos internacionais

4.1. A Convenção UNESCO de 1970

O Brasil ratificou a Convenção da UNESCO de 1970 por meio do Decreto 72.312/1973⁸, integrando-a ao direito interno como norma não retroativa. A Convenção⁹ incentiva a devolução de bens culturais e oferece uma plataforma multilateral para negociação e cooperação.¹⁰ Desempenhou papel central na restituição pós-colonial, como ilustra o acordo de 1998 entre Itália e Líbia sobre saques coloniais na Tripolitânia.¹¹

4.2. A Convenção UNIDROIT de 1995

Por meio do Decreto 3.166/1999¹², o Brasil ratificou a Convenção UNIDROIT sobre Objetos Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportados. Seu objetivo é harmonizar os procedimentos de restituição, fomentar a cooperação e promover medidas preventivas, como inventários de objetos. Está fundamentada nos Princípios UNIDROIT¹³ para contratos comerciais internacionais, frequentemente aplicados como soft law na interpretação jurídica transfronteiriça.

5. A repatriação do Manto Tupinambá 

Em 2000, lideranças do povo Tupinambá encontraram um de seus mantos sagrados durante uma exposição em São Paulo.¹⁴ O item, mantido pelo Museu Nacional da Dinamarca (Nationalmuseet), havia sido levado do Brasil no século XVII. O manto, confeccionado com vibrantes penas vermelhas de guará, era tradicionalmente usado por xamãs e líderes em rituais.¹⁵ Possui profundo significado simbólico, representando a força ancestral e a conexão da comunidade com entidades sagradas.¹⁶

In 2022, Glicéria Tupinambá solicitou formalmente a devolução do manto ao museu dinamarquês, com o apoio de líderes indígenas e do governo brasileiro. O processo culminou em 2024, quando o manto foi entregue ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro — um momento de enorme significado tanto para os direitos indígenas quanto para a reconstrução do museu após o incêndio de 2018.¹⁷

Em 2023, o museu dinamarquês anunciou a “doação” do manto à instituição brasileira, marcando um passo significativo no movimento de restituição do patrimônio indígena. Durante a cerimônia oficial de entrega, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva descreveu o retorno como parte de uma “nova etapa na reconstrução do Brasil”, reforçando o compromisso do Estado com os povos indígenas e seu patrimônio cultural.¹⁸

O cacique Jamopoty, do povo Tupinambá de Olivença, celebrou a repatriação como um momento de renovação cultural.

O retorno do manto reacendeu debates sobre justiça histórica e a descolonização das coleções de museus. Mais do que a restituição de um único item, trata-se de uma reafirmação da identidade, da memória e da resiliência indígena.

6. A perspectiva internacional
6.1. Klimt e as restituições do período nazista

O caso emblemático Altmann v. Republic of Austria resultou, em 2006, na restituição de pinturas de Gustav Klimt saqueadas da família Bloch-Bauer durante o regime nazista. O procedimento arbitral estabeleceu um precedente fundamental para a justiça cultural no pós-Holocausto.¹⁹

Na mesma direção, muitos outros casos sobre arte saqueada durante o nazismo começaram a ser ajuizados. Esse movimento levou a Alemanha a criar um tribunal arbitral especializado para tratar desses casos.

6.2. O caso Cassirer 

O caso Cassirer v. Thyssen-Bornemisza Collection Foundation gira em torno da propriedade da obra Rue Saint-Honoré, après-midi, effet de pluie, de Camille Pissarro, saqueada pelo regime nazista em 1939 de Lilly Cassirer, uma mulher judia alemã que foi forçada a trocá-la por um visto para escapar da perseguição. Embora nominalmente tenha sido uma venda, a transação foi posteriormente reconhecida como coercitiva, equivalente a roubo.

Após a guerra, a pintura passou por várias mãos até ser adquirida, em 1976, pelo Barão Hans Heinrich e, posteriormente, integrar a coleção estatal espanhola por meio da Fundação Thyssen-Bornemisza (TBC) em 1993. Desde então, a obra tem sido exibida publicamente no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza, em Madri.

O litígio começou em 2005, sob a Foreign Sovereign Immunities Act dos EUA. Inicialmente, o Tribunal Distrital dos EUA e a Corte de Apelações do 9º Circuito decidiram a favor da TBC, aplicando a lei espanhola, que permite a prescrição aquisitiva após seis anos de posse pública (artigo 1.955 do Código Civil Espanhol). O tribunal desconsiderou a relevância do artigo 1.956 do Código Civil Espanhol, que restringe a propriedade por quem participou ou ocultou o roubo, pois não encontrou provas conclusivas de que a TBC tinha conhecimento da origem ilícita da obra.

Entretanto, em setembro de 2024, a Califórnia promulgou a Assembly Bill 2867²⁰, determinando a aplicação da lei substantiva da Califórnia a todas as demandas pendentes relacionadas a arte saqueada pelos nazistas. Em resposta, a Suprema Corte dos EUA anulou a decisão do 9º Circuito e remeteu o caso para reavaliação sob a nova legislação.²¹

De acordo com a lei da Califórnia, um ladrão não pode transmitir título válido, e os prazos prescricionais começam apenas após a descoberta da localização da obra. Esses princípios contrastam fortemente com a abordagem espanhola e podem levar a um desfecho diferente, possivelmente favorável aos herdeiros Cassirer.

Embora a Espanha defenda a legalidade da posse da TBC sob sua legislação interna²², críticos, especialmente organizações culturais judaicas, argumentam em favor da restituição voluntária, alinhada aos compromissos internacionais sobre propriedade saqueada pelos nazistas.²³

A resolução agora depende da reavaliação pelo 9º Circuito sob o novo marco legal da Califórnia. O caso evidencia as tensões persistentes entre segurança jurídica, responsabilidade moral e padrões em evolução sobre a restituição de bens culturais adquiridos em contextos de injustiça histórica.

6.3. O novo modelo alemão de arbitragem para restituição de obras saqueadas

O modelo instituído pela Alemanha em 2025 para a resolução de disputas sobre arte confiscada pelo regime nazista representa uma inovação relevante no campo da justiça restitutiva e do direito arbitral.²⁴

Trata-se de um mecanismo híbrido, que combina características próprias da arbitragem comercial — como a emissão de decisões vinculantes e executáveis — com elementos típicos de processos de reparação histórica e direitos humanos. A grande novidade reside na criação de um marco normativo próprio, aplicável exclusivamente aos casos de arte saqueada, que opera paralelamente ao direito civil alemão e afasta a incidência de normas como prescrição e usucapião, que, em regra, impediriam o sucesso das pretensões de restituição. 

Esse framework substantivo impõe critérios específicos para análise do vínculo entre a perda da obra e a perseguição nazista, estabelecendo presunções favoráveis aos herdeiros das vítimas e flexibilizando padrões de prova, em reconhecimento das dificuldades inerentes à reconstrução de fatos ocorridos há mais de oito décadas. 

Além disso, a composição dos tribunais, que inclui não apenas juristas, mas também historiadores especializados no período do nacional-socialismo, reflete uma preocupação em garantir que a análise transcenda o mero exame jurídico e incorpore uma compreensão aprofundada do contexto histórico das expropriações.

Este modelo, portanto, não apenas busca efetivar os princípios da just and fair solution consagrados na Conferência de Washington, como também se apresenta como um potencial precedente para a formulação de soluções análogas em disputas envolvendo patrimônio cultural decorrente de outras violações históricas, como saques coloniais, apropriações indevidas de bens de povos originários e outras formas de espoliação sistemática.

7. Conclusão

A análise dos instrumentos jurídicos internacionais, dos mecanismos nacionais e dos casos apresentado demonstra que o debate sobre a restituição de bens culturais saqueados transcende a mera questão patrimonial, situando-se no campo da reparação histórica e dos direitos humanos. 

No plano jurídico, observa-se um movimento progressivo de flexibilização de institutos clássicos do direito civil — como prescrição, usucapião e boa-fé objetiva — em favor de uma lógica que privilegia a justiça material sobre a segurança formal das relações. 

O recente modelo alemão de arbitragem, com um framework normativo próprio e desvinculado das limitações tradicionais do direito privado, ilustra essa evolução ao criar um ambiente jurídico específico, apto a tratar das complexidades históricas e morais envolvidas na restituição de obras saqueadas. 

Esse paradigma também tensiona os conceitos clássicos de soberania, imunidade jurisdicional e autonomia da vontade, ao inserir o direito internacional, o direito dos direitos humanos e o soft law como vetores interpretativos obrigatórios. 

Nesse sentido, tanto o Brasil, quanto outros países, são desafiados a aprimorar seus marcos normativos e suas práticas institucionais, de modo a assegurar que os processos de restituição não sejam meramente discricionários ou simbólicos, mas dotados de efetividade jurídica. 

A consolidação de modelos híbridos, como o alemão, aponta para um futuro em que a arbitragem e outros meios alternativos de resolução de conflitos poderão desempenhar papel central na concretização da justiça restitutiva no cenário internacional.

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¹ Artigo produzido sob a orientação de Cesar Pereira, sócio da Justen, Pereira, Oliveira e Talamini (São Paulo).

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² https://www.migalhas.com.br/depeso/129005/devem-se-restituir-os-objetos-historicos-aos-paises-de-origem

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³  https://dasartes.com.br/de-arte-a-z/ex-ministro-de-antiguidades-egipcio-pede-devolucao-de-pecas-a-museus-europeus/

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http://portal.iphan.gov.br/

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⁵  http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/881

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https://revistapesquisa.fapesp.br/brasil-avanca-no-combate-ao-trafico-de-bens-culturais/

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https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/04/09/policia-apreende-objetos-de-arte-sacra-na-grande-sp-decorador-que-prestava-servicos-para-igrejas-e-suspeito-de-comandar-esquema.ghtml

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https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/d72312.html#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA.,Propriedade%20Il%C3%ADcitas%20dos%20Bens%20Culturais

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https://news.un.org/pt/story/2017/03/1581081

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¹⁰ https://www.gov.br/museus/pt-br/assuntos/noticias/unesco-celebra-40-anos-da-convencao-contra-trafico-ilicito-de-bens-culturais

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¹¹ https://courier.unesco.org/en

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¹²  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3166.htm

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¹³ https://www.unidroit.org/instruments/commercial-contracts/unidroit-principles-2016/

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¹⁴ https://diplomatique.org.br/repatriar-nossos-artefatos-e-demarcar-nosso-territorio/

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¹⁵https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/07/13/manto-tupinamba-entenda-como-o-item-repatriado-era-usado-em-rituais-antropofagicos-e-por-liderancas-indigenas-no-brasil.ghtml

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¹⁶https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2024/manto-tupinamba-governo-federal-celebra-retorno-do-artefato-sagrado-ao-brasil-e-reafirma-direitos-indigenas-como-uma-prioridade

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¹⁷ https://ufrj.br/2024/09/cerimonia-oficial-marca-chegada-do-manto-tupinamba-ao-museu-nacional-da-ufrj/

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¹⁸ https://osprimeirosbrasileiros.mn.ufrj.br/pt/mundo-indigena/o-manto-tupinamba/

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¹⁹ https://supreme.justia.com/cases/federal/us/541/677/

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²⁰  https://leginfo.legislature.ca.gov/faces/billNavClient.xhtml?bill_id=202320240AB2867

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²¹ https://www.supremecourt.gov/search.aspx?filename=/docket/DocketFiles/html/Public/24-652.html

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²² https://www.reuters.com/legal/madrid-museum-may-keep-pissarro-painting-looted-by-nazis-us-appeals-court-rules-2024-01-09/

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²³https://www.europapress.es/cultura/exposiciones-00131/noticia-urtasun-pissarro-expoliado-thyssen-habria-gestionado-otra-manera-20240112143624.html#google_vignette

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²⁴ https://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2025/05/23/germanys-lost-art-arbitration-towards-a-just-and-fair-solution-for-nazi-confiscated-art/

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Wendell Leal Hossu Monteiro de Melo
Acadêmico de Direito (PUC/SP). Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.¹
Wendell Leal Hossu Monteiro de Melo
Acadêmico de Direito (PUC/SP). Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.¹
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