1. O transporte rodoviário intermunicipal e interestadual de passageiros é um serviço público
A Constituição Federal estabelece que o transporte interestadual constitui serviço público de titularidade da União Federal (art. 21, inc. XII, ‘e’). Já o transporte intermunicipal de passageiros é um serviço público de titularidade dos Estados (CF/88, art. 25, §1º). No Estado de São Paulo, o serviço está previsto na CE/SP, art. 158, parágrafo único.
Além de constituir serviço público, a Constituição Federal também consagra o transporte como direito (fundamental) social (CF/88, art. 6º). Isso confere importância adicional ao serviço público de transporte de passageiros.
2. Decorrências
Por se tratar de um serviço público, cabe ao Estado organizar, manter, prestar diretamente ou outorgar (por meio de permissão, concessão ou autorização) e regular a prestação do serviço de transporte de passageiros.
Ademais, a sua prestação deve observar os princípios aplicáveis aos serviços públicos, tais como a continuidade, a igualdade, a regularidade, a atualidade, a modicidade tarifária, a eficiência e a universalidade.
3. Custos necessários à prestação do serviço
Como qualquer prestação, o serviço de transporte envolve custos significativos para a sua prestação, que podem ser cobertos pelo próprio orçamento estatal, quando o serviço é prestado diretamente pelo Estado; por tarifas, quando prestado em regime de outorga e também por meio de subsídios governamentais destinados a complementar a receita proveniente de tarifas.
3.1. Equilíbrio econômico-financeiro das outorgas
Quando se trata de serviços objeto de outorga a particulares, a questão central reside na definição da tarifa necessária para cobrir os custos e remunerar o particular. Não há obrigação de que o particular preste tais serviços pelo seu custo. A sua atividade deverá ser remunerada pela tarifa.
A equação econômico-financeira consiste na relação de equilíbrio entre receitas e encargos (e remuneração) necessários à prestação do serviço público. A sua manutenção consiste em garantia constitucional (art. 37, inc. XXI) e legal (Lei 8987/1995 e Leis 8.666/1993 e 14.133/2021). Esse equilíbrio deve ser mantido ao longo da outorga em favor do particular. Ou seja, se houver aumento de encargos, caberá rever e restabelecer o equilíbrio mediante revisão das tarifas ou instituição de subsídio.
3.2. Reajuste e revisão das tarifas
Para a manutenção do equilíbrio, prevê-se os mecanismos do reajuste tarifário (aplicado periodicamente, com base em tabela de custos, índices gerais ou setoriais de preços ou cesta de índices) e da revisão tarifária, que pode ser ordinária (prevista para ser promovida em determinado interregno) ou extraordinária (para os casos de desequilíbrio extraordinário e imprevisto).
4. A relevância do reajuste
O reajuste tarifário constitui mecanismo essencial para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. Por isso mesmo, deve ser aplicado regularmente, na periodicidade estabelecida em contrato ou em norma e aplicando-se os critérios de reajuste pré-definidos.
Constituem graves desvios – juridicamente inválidos – o congelamento tarifário e a definição das chamadas tarifas “políticas”. O primeiro consiste em deixar de aplicar o reajuste na periodicidade ajustada. A segunda, no estabelecimento de tarifas ou aplicação de percentuais de reajustes diversos daqueles obtidos pela aplicação dos critérios de reajuste definidos contratualmente ou em norma.
Ambos produzem o desequilíbrio da outorga. Reduzem a receita que seria devida ao particular pela prestação do serviço e impõem ônus adicional ao particular, que terá que cobrir o aumento dos custos que seriam compensados pelo reajuste regular.
Trata-se de situações que, a despeito de inválidas, eis que contrárias ao regime constitucional e legal do serviço público de transporte, são vivenciadas por muitas empresas no país. Infelizmente, a prática do congelamento tarifário e das tarifas políticas ainda persiste no Brasil.
5. Isenções tarifárias
Outro aspecto muito relevante para o equilíbrio econômico-financeiro das tarifas do serviço público de transporte envolve o estabelecimento pelo Poder Público de isenções tarifárias para determinadas categorias (como estudantes, idosos, pessoas com deficiência). Algumas dessas isenções têm previsão constitucional e outras, definições por meio de Lei.
Por se tratar de serviço de titularidade estatal, o Poder Público pode definir tais isenções, observando critérios de legitimidade e necessidade. Mais do que isso, deve observar as condições legais para o estabelecimento de tais isenções e gratuidades.
Afinal, ao definir que determinada categoria não irá pagar a tarifa pelo serviço de transporte, o Poder Público suprime receita que é necessária para a prestação do serviço. Numa outorga equilibrada, não há sobra de receita. A supressão de parcela dessa receita sempre resultará em desequilíbrio da outorga.
Justamente por isso, a legislação estabelece (Lei 9.074/1995, art. 35) que qualquer isenção ou gratuidade somente poderá ser instituída se houver definição da fonte de custeio. Ou seja, o benefício deve ser imediatamente e adequadamente compensado pelo Poder Público. Essa compensação pode ser dar por meio de ajustes de tarifas, concessão de subsídios ou mesmo repasses diretos de valores do orçamento público.
Há limites para soluções tarifárias, especialmente em sistemas de transporte que já estão com tarifas em valores elevados. A elasticidade tarifária e de demanda coloca claros limites a essas soluções. Não é viável atribuir os custos de uma isenção ou gratuidade aos demais usuários, sob pena de prejudicar toda a coletividade de usuários, reduzir a atratividade do serviço e mesmo produzir o efeito colateral de reduzir a demanda pelo serviço (com prejuízo à receita tarifária geral).
Por isso, a definição de isenções e gratuidades sem a previsão de fonte de custeio também acarreta rompimento do equilíbrio econômico-financeiro e não pode ser admitido.
6. Rompimento do equilíbrio econômico-financeiro e proteção judicial
O rompimento do equilíbrio econômico-financeiro de outorgas do serviço de transporte de passageiros além de impor prejuízo ilícito ao particular que o presta, acarreta riscos ao Poder Concedente, para o usuário e para o próprio serviço público. Tem como efeito degradar a forma de prestação do serviço, prejudicando o atendimento pleno dos requisitos e princípios do serviço público.
Ademais, acaba tornando menos atrativo o serviço, dificultando a sua outorga pelo Poder Concedente. Recentemente, tem-se vivenciado situações de licitações para concessões públicas que acabam não atraindo interessados ou um número muito pequeno de empresas interessadas em assumir a outorga. Isso, de certo modo, pode ser reflexo da postura inadequada do Estado de não velar pela segurança da outorga e, principalmente, pela manutenção constante do equilíbrio econômico-financeiro. Sem que haja essa garantia, os particulares acabam por empregar seus recursos em outras atividades que não estejam sujeitas a riscos governamentais (mudanças de governo e de políticas públicas).
A omissão do governo na adoção das medidas necessárias para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, como a supressão do reajuste, a adoção de tarifas políticas ou o estabelecimento de gratuidades sem fonte de custeio podem ser impugnadas judicialmente. Nesse ponto, são relevantes as medidas que buscam a tutela específica da obrigação de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. As medidas puramente condenatórias (em que se pretende que o Estado seja condenado ao pagamento pelo prejuízo causado) acabam sendo problemáticas nesse campo, considerando o tempo necessário para o encerramento de tais ações e o fato de que o pagamento se dará ao final, depois do trânsito em julgado, por meio de precatórios. Ou seja, trata-se de medida judicial que acaba sendo ineficaz para afastar a ilicitude da conduta estatal e para restabelecer de imediato o equilíbrio contratual. Nesses casos, quando a ação for definitivamente julgada e o precatório estiver sendo pago, a outorga do serviço já terá se encerrado pelo decurso do prazo ou em razão da degradação da situação econômica da outorga. Daí a relevância das ações que buscam tutela específica – e do entendimento que vem sendo adotado pelo Judiciário a esse respeito.