Informativo Eletrônico - Edição 216 - Fevereiro / 2025

PROGRAMAS DE INTEGRIDADE NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS: AVANÇOS E DESAFIOS DO DECRETO 12.304/2024

Nicole Mendes Müller

1. Introdução

Em fevereiro de 2025, entrou em vigor o Decreto 12.304/2024¹, que estabelece os parâmetros de avaliação dos programas de integridade adotados pelas empresas privadas que contratam com a Administração Pública. 

A Lei 14.133/2021 já deu certo destaque aos programas de integridade ao estabelecer como critério obrigatório a sua implementação pelo licitante vencedor em contratações de grande vulto (art. 25, §4°), bem como incentivar a sua existência nas empresas ao considerá-lo como um dos critérios de desempate na licitação (art. 60, IV) e também como condição de reabilitação, (art. 163, parágrafo único).

No entanto, tais previsões careciam de regulamentação, principalmente no que diz respeito aos parâmetros de avaliação desses programas de compliance e governança corporativa. É nesse contexto e com esse objetivo que foi editado o Decreto 12.304/2024. 

O Decreto não apenas regulamenta as disposições da Lei 14.133/2021, mas também representa um avanço na consolidação das diretrizes sobre integridade no âmbito das contratações públicas. Inclusive complementa o Decreto 11.129/2022 e a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), reforçando a necessidade da existência de programas de integridade robustos e eficazes como um fator decisivo para contratações públicas.  

Apesar de representar um avanço significativo, contribuindo para a construção de uma cultura de compliance que se torna cada vez mais importante e necessária, o Decreto ainda carece de especificações que ficaram, mais uma vez, a cargo de regulamentação futura. Essas questões, bem como o conteúdo do Decreto, são objeto de análise do presente texto.  

2. Âmbito de aplicação e incidência do Decreto

Conforme indicado no tópico introdutório, o Decreto 12.304 regulamenta o art. 25, § 4°, o art. 60, inciso IV e o art. 163, parágrafo único, da Lei 14.133/2021. Nesse sentido, os parâmetros de avaliação e todas as regras de processo de fiscalização serão aplicadas nos casos de: (i) contratações de obras, serviços e fornecimento de grande vulto² (aproximadamente R$ 260 milhões, conforme Decreto 12.343/2025); (ii) empresa que sagrou-se vencedora do certame com a apresentação do programa de integridade como critério de desempate; e (iii) pedido de reabilitação de licitante ou contratado. 

As regras do Decreto se aplicam às concessões, permissões de serviço público e PPPs (art. 22) e incidem em nível federal. No entanto, há dispositivo (parágrafo único do art. 1°) ressalvando que as contratações realizadas por outros entes da federação que utilizarem recursos oriundos de transferências voluntárias da União, também deverão observar as regras estabelecidas pelo Decreto. 

Destaca-se que a CGU foi instituída como órgão responsável e competente para realização da avaliação e fiscalização dos programas de integridade regulados pelo Decreto. Nesse aspecto, nota-se que o Decreto não dispôs sobre como a CGU supervisionará ou acompanhará os programas nos casos em que as diretrizes forem estendidas para estados e municípios. Isso pode resultar em problemas para empresas que terão seus programas avaliados por diferentes estruturas de governo, sendo necessária uma eventual concentração da análise para garantir segurança jurídica. 

3. Objetivos do programa de integridade

O programa de integridade, conforme definido no Decreto, é um conjunto de mecanismos e procedimentos internos voltados à integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, garantindo a aplicação efetiva de códigos de ética e conduta. 

O objetivo do programa, no contexto do Decreto, deve ser voltado para prevenir, detectar e corrigir fraudes e atos lesivos contra a Administração Pública, mitigar riscos sociais e ambientais das atividades da empresa e promover uma cultura organizacional baseada na integridade e na ética. 

As definições são abrangentes e genéricas de forma propositada, visando permitir maior flexibilidade na sua aplicação. Conforme previsto no parágrafo único do art. 2°, a redação do dispositivo busca possibilitar que cada organização estruture, implemente e atualize seu programa conforme suas características e riscos específicos. 

Embora essa flexibilidade permita a adaptação às especificidades de cada empresa, a ausência de diretrizes mais concretas pode gerar inseguranças, principalmente no aspecto da fiscalização e avaliação da efetividade das medidas implementadas.

4. Parâmetros de avaliação 

Em relação aos parâmetros de avaliação, o art. 3° importou os 15 incisos do art. 57 do Decreto 11.129/2022. Tais parâmetros, em linhas gerais, abrangem o comprometimento da alta direção com o programa de integridade, a adoção de códigos de ética e políticas aplicáveis a funcionários e terceiros, treinamentos periódicos, gestão de riscos e controles internos para garantir a confiabilidade das informações contáveis e financeiras. Também incluem a existência de canais de denúncia eficazes, medidas disciplinares, procedimentos para prevenir fraudes e ilícitos em contratações públicas, além de diligências na relação com terceiros e pessoas expostas politicamente. Por fim, exigem monitoramento contínuo dos programas, assegurando a sua constante adaptação e aprimoramento. 

4.1. Inovações

As inovações quanto aos parâmetros foram apresentadas nos incisos IX e XVI do art. 3°, que tratam respectivamente de “mecanismos específicos para assegurar o respeito aos direitos humanos e trabalhistas e a preservação do meio ambiente” e “transparência e responsabilidade socioambiental da pessoa jurídica”. Tais inovações introduziram a dimensão ambiental na avaliação dos programas de integridade. 

A inclusão do chamado compliance ambiental reflete a ampliação do escopo tradicional dos programas de integridade, exigindo que as organizações adotem práticas voltadas à conformidade com normas ambientais e à mitigação de impactos ecológicos. Essa mudança está alinhada à crescente valorização dos princípios ESG (Environmental, Social and Governance) na governança corporativa, reforçando a responsabilidade das empresas não apenas na prevenção de ilícitos contra a Administração Pública, mas também na promoção da sustentabilidade e da transparência socioambiental. 

Notadamente, para a avaliação do programa serão consideradas as particularidades de cada empresa, levando em conta seu porte e complexidade. Entre os aspectos analisados estão o número de funcionários, o faturamento – com atenção especial a micro e pequenas empresas –, a estrutura de governança, a atuação em diferentes setores e países, e o uso de intermediários, como consultores e representantes comerciais. Além disso, será avaliado o grau de interação com o setor público, incluindo contratações, investimentos e necessidade de licenças governamentais, bem como a quantidade e a localização das empresas do grupo econômico. 

4.2. Lacunas 

Embora o Decreto 12.304 tenha cumprido sua função de estabelecer parâmetros gerais para avaliação e controle dos programas de integridade, sua abordagem abrangente levanta questões relevantes. A ausência de critérios de avaliação mais precisos no próprio texto gera incertezas quanto ao efetivo cumprimento das exigências, criando uma lacuna legislativa que, embora permita certa flexibilidade, posterga a padronização eficaz e objetiva das regras. Dessa forma, as empresas ficam à espera de diretrizes mais claras, o que pode resultar em interpretações divergentes sobre o atendimento dos programas aos parâmetros. Isso se torna ainda mais preocupante sob a perspectiva das possíveis sanções previstas pelo Decreto (cf. tópico adiante). 

Além disso, o art. 3°, §2°, do Decreto indica que a metodologia de avaliação e os critérios mínimos serão definidos futuramente por meio de ato do Ministro de Estado da CGU. Essa dependência de novo regulamento posterior, sem um prazo definido para sua edição, é contraditória com o próprio objetivo do Decreto, contribuindo para um ambiente de insegurança jurídica que pode impactar negativamente na aplicação uniforme das regras.  

5. O papel da CGU

Conforme indicado anteriormente, a CGU será o órgão responsável pela avaliação e acompanhamento dos programas de integridade das empresas enquadradas no âmbito de aplicação do Decreto. Assim, as atividades a serem desempenhadas pela CGU consistirão em atividades preventivas e repressivas. 

5.1. Atividades preventivas

As atividades preventivas incluem: (i) orientação, consistindo na conscientização e na capacitação de agentes públicos e entes privados (art. 10); (ii) supervisão, consistindo no levantamento e na análise de informações e dados relevantes para subsidiar a avaliação de programas de integridade e a atividade preventiva (art. 11); e (iii) avaliação, consistindo na análise da aderência do programa de integridade aos parâmetros estabelecidos pelo Decreto, com o objetivo de verificar a sua implementação, seu desenvolvimento e o seu aperfeiçoamento. 

Após a avaliação, a CGU encaminhará relatório à unidade de gestão do contrato para adoção das providências pertinentes (art. 14). O prazo de validade do relatório é de 24 meses (§1°, art. 14). Ainda, nova avaliação poderá ser realizada em relação à mesma pessoa jurídica quando: (i) transcorrido o prazo de 24 meses (art. 14, §2°, inc. II); ou (ii) identificada, a qualquer tempo, situação ou informação que possa suscitar dúvida ou questionamento sobre seu comprometimento com a ética, a integridade, a prevenção e o combate a atos de fraude e corrupção (art. 14, §2°, II). 

A avaliação poderá ser dispensada no caso de pessoa jurídica aprovada e com reconhecimento ainda vigente em programa específico de fomento à ética e à integridade privada promovido pela CGU, observando, no mínimo, os mesmos parâmetros estabelecidos pelo Decreto. 

A CGU também poderá reconhecer a avaliação realizada por outro órgão ou entidade pública federal, estadual, distrital ou municipal, desde que efetivada de acordo com os parâmetros adotados pelo Decreto (art. 15, II). Nesse caso, pontua-se, mais uma vez, que a generalidade dos parâmetros pode resultar em um cenário de insegurança decorrente da falta de uniformidade na avaliação dos programas. 

E, por fim, a CGU poderá propor plano de conformidade, após a avaliação, em que estabelecerá objeto, prazos, medidas a serem adotadas pelo licitante ou pelo contratante, critérios e formas de acompanhamento. A falta de observância do plano poderá acarretar a aplicação de sanções, conforme será destacado no tópico a seguir. 

5.2. Atividades repressivas 

As atividades repressivas, por sua vez, consistirão na apuração das infrações indicadas no art. 17 do Decreto, quais sejam: (i) a não entrega ou entrega fora do prazo da documentação do programa de integridade; (ii) a omissão ou recusa injustificada de informações necessárias para comprovar sua efetividade; (iii) o descumprimento dos prazos e medidas estabelecidos no plano de conformidade; (iv) dificultar a atuação da CGU; (v) a prática de fraudes na apresentação de documentos e informações; (vi) a apresentação de declarações falsas para fazer jus ao critério de desempate. 

No caso dessas infrações também configurarem atos lesivos tipificados na Lei Anticorrupção, elas serão apuradas e julgadas conjuntamente, seguindo o procedimento previsto na Lei 14.133. 

5.2.1. Processo de responsabilização

Identificada a existência de indícios de autoria e materialidade da infração, a CGU lavrará nota de indiciação (art. 18). O interessado será devidamente notificado e terá o prazo de 15 dias para apresentação de defesa (art. 19, §1°). 

Após a defesa, será aberto prazo para produção de provas. Caso elas não alterem em nada a indiciação, o interessado terá novo prazo de 15 dias para manifestação. Do contrário, apresentando alguma alteração, será feita a modificação da nota ou mesmo a lavratura de uma nova nota. 

Por fim, será elaborado relatório com a proposta, devidamente motivada, de: (i) aplicar a sanção; ou (ii) arquivar o processo. 

5.2.2. Sanções aplicáveis

Serão aplicáveis sanções de advertência, multa (de 1% até 5% do valor da licitação ou do contrato), impedimento de licitar e contratar, ou declaração de inidoneidade para licitar ou contratar. 

Quando as infrações corresponderem a atos lesivos tipificados na Lei Anticorrupção, poderão ser aplicadas também as sanções previstas no art. 6° da referida lei³.

As sanções previstas pelo Decreto demonstram o interesse em garantir que os programas de integridade sejam implementados de forma efetiva, afastando-se da mera formalidade (compliance de papel). Contudo, há previsão de penalidades severas, que levanta questões quanto à segurança jurídica, especialmente pela ausência de parâmetros de avaliação precisos. Essa indefinição pode tornar incerta a uniformidade e a coerência na aplicação das sanções entre as diversas empresas submetidas à fiscalização. 

Além disso, o fato de o Decreto não estabelecer um marco temporal claro para sua aplicação – o que sugere sua eficácia imediata, mesmo para contratos já vigentes – acarreta preocupações práticas. As empresas terão que arcar com custos e investimentos para implementar ou eventualmente aperfeiçoar seus programas de integridade, sem que tais despesas façam parte, a priori, da equação econômico-financeira dos contratos ou tenham sido pensadas nas propostas licitatórias. Assim, embora se reconheça o valor de atribuir peso às regras, visando à efetiva implementação dos programas através da previsão de sanções expressivas, a norma também abre espaço para futuras exigências que podem aumentar os ônus operacionais para o setor privado. 

Por fim, destaca-se que o Decreto 12.304/2024 está inserido dentro do regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador, o que significa que suas sanções devem ser interpretadas à luz dos princípios dessa disciplina, como a proporcionalidade e a razoabilidade. O respeito aos referidos princípios será essencial para sanar a insegurança resultante da ausência de critérios mais detalhados sobre a avaliação dos programas. 

6. Considerações finais

O Decreto 12.304/2024 representa um avanço significativo na consolidação da cultura de compliance no Brasil, reforçando a necessidade de integridade e transparência nas contratações públicas. Ao estabelecer parâmetros para a avaliação dos programas de integridade, o normativo busca incentivar práticas empresariais mais responsáveis e alinhadas aos princípios éticos da governança corporativa. A introdução de mecanismos voltados à conformidade ambiental e social demonstra um movimento em direção a um modelo regulatório conectado às diretrizes ESG e às melhores práticas internacionais. 

No entanto, apesar dos méritos inegáveis, o Decreto ainda apresenta desafios que precisam ser superados para garantir sua efetividade. A ausência de critérios detalhados para a avaliação dos programas, delegando à CGU a definição futura de aspectos metodológicos essenciais, pode gerar insegurança jurídica e dificultar a uniformidade das análises. Além disso, a aplicação imediata das exigências, sem período claro de transição para adaptação das empresas, pode representar um ônus significativo, especialmente para micro e pequenas empresas, que carecem de estrutura robusta de compliance. 

Ainda assim, a regulamentação reflete o compromisso com a construção de um ambiente de negócios mais íntegro e transparente. Se complementado por regulamentações claras e uma atuação equilibrada da CGU – com uma fiscalização eficiente com diretrizes objetivas e suporte às empresas – o Decreto pode se consolidar como um marco na evolução do compliance no Brasil. Dessa forma, sua efetividade dependerá não apenas das normas, mas da forma como será aplicado, garantindo que o incentivo à integridade não se transforme em mais um entrave burocrático, mas sim em um verdadeiro diferencial competitivo para as empresas que contratam com a Administração Pública. 

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¹ O Decreto foi publicado em dez./2024, com uma vacatio legis de sessenta dias (art. 24).

_____________________________
² O valor poderá ser considerado de grande vulto no momento da contratação ou em aditivos futuros (art. 5°, § 1°). E, no caso de contrato firmado por pessoa jurídica em consórcio, todas as consorciadas precisarão implementar o programa de integridade (art. 5°, §2°).

_____________________________
³ “Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções: I – multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e II – publicação extraordinária da decisão condenatória”.

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Nicole Mendes Müller
Nicole Mendes Müller
Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Nicole Mendes Müller
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