1. Direito ao reequilíbrio econômico-financeiro
A Constituição determina a garantia “das condições efetivas da proposta” no âmbito das contratações públicas (art. 37, XXI)¹. A Lei 14.133/2021 prevê a possibilidade de alteração do contrato público para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro inicial (art. 124, II, “d”)². A Lei 8.987/1995 dispõe, por sua vez, que o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato deve ocorrer concomitantemente ao evento de desequilíbrio contratual (art. 9º, § 4º)³.
Essas normas são voltadas à limitação do poder do Estado, de modo a garantir os direitos do particular contratado.⁴ Trata-se de consideração importante, porque é essa característica limitadora do poder que diferencia o Estado de Direito de formas mais primitivas de organização social – como o Estado Absolutista, em que a “Administração” estava acima da lei.⁵
No entanto, burocracias e ineficiências estatais muitas vezes impedem a concretização do comando legal que determina o equilíbrio econômico-financeiro das contratações públicas.⁶ Tornam as referidas garantias verdadeira “letra morta”.
2. Reequilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão
Os contratos de concessão de serviço público, em especial, são contratações complexas e de longo prazo. Por esse motivo, há mecanismos pré-definidos que visam facilitar a execução do contrato ao longo do tempo, tal como a previsão de uma matriz de riscos (art. 6º, XXVII, da Lei 14.133/2021)⁷. Todavia, a Lei – e mesmo os estudos prévios do projeto de concessão⁸ – é incapaz de prever todos os possíveis problemas da execução de um contrato de concessão. Não por outro motivo, ela admite “fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis” (art. 124, II, “d”, da Lei 14.133/2021) como hipóteses ensejadoras de reequilíbrio.
Por vezes, nesses casos, o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato exige análises morosas e multidisciplinares envolvendo questões de engenharia, de economia, entre outras. Para THIAGO FERRAREZI, “a perícia é uma ferramenta fundamental para avaliar a necessidade de reequilíbrio em contratos de concessões e PPPs, garantindo a justiça e o equilíbrio nas relações entre as partes envolvidas”.⁹
Nesse contexto, a morosidade do procedimento de reequilíbrio econômico-financeiro pode agravar os prejuízos da situação de desequilíbrio identificada, além de ser um fator que desincentiva novos investimentos privados ou, quando menos, um fator de aumento de custos considerado pelos licitantes interessados em apresentar proposta e contratar com a Administração Pública.
3. Reequilíbrio cautelar (ou liminar) como forma de mitigação de prejuízos
artindo-se da premissa de que há casos em que o reequilíbrio econômico-financeiro não pode ser ultimado imediatamente, é necessário pensar em medidas para compatibilizar os morosos procedimentos de reequilíbrio com o dever legal da Administração Pública de realizar um “reequilíbrio concomitante” e com o direito constitucional do particular à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF).¹⁰
Sendo necessário conciliar o direito de “reequilíbrio concomitante” com os padrões e procedimentos burocráticos da Administração Pública, uma possível solução é o estabelecimento de um instituto voltado à antecipação provisória de medidas de reequilíbrio, nos moldes das medidas cautelares ou liminares aplicáveis nos processos judiciais (art. 294 e seguintes do CPC).
4. Caso concreto: Resolução 19/2023 da SPI/SP
A Secretaria de Parcerias em Investimentos do Estado de São Paulo, por meio da Resolução 19/2023¹¹, pretendeu instituir precisamente essa forma de mitigação de desequilíbrios contratuais.
Nos termos do art. 1º da norma, “A Secretaria de Parcerias em Investimentos e as autarquias a ela vinculadas adotarão as medidas necessárias, na forma prevista nesta resolução, para a mitigação de desequilíbrios econômico-financeiros identificados nos contratos de delegação dos serviços públicos de que trata o artigo 12 do Decreto nº 67.435, de 1º de janeiro de 2023”.
A norma também explica, em seu art. 2º, que “A mitigação de desequilíbrios econômico-financeiros, de que trata o artigo 1º desta resolução: […] III – poderá envolver a aplicação, a título cautelar, de medida que produza efeitos econômico-financeiros, em especial:
a) antecipação, postergação ou cancelamento de investimentos programados;
b) inclusão de investimentos adicionais;
c) suspensão da exigibilidade de pagamentos devidos ao Poder Concedente ou à autarquia responsável pela fiscalização da execução contratual;
d) elevação ou redução de valores devidos ao Poder Concedente ou à autarquia responsável pela fiscalização da execução contratual;
e) elevação ou redução de tarifa ou outros valores contratualmente devidos à concessionária, inclusive a título de aporte de recursos ou contraprestação pecuniária;
f) pagamento de valores à concessionária, a título de indenizações, ressarcimentos ou afins;
g) elevação ou desoneração de encargos previstos no contrato de parceria; h) transferência a uma das partes de custos ou encargos originalmente atribuídos à outra. (original sem destaque)
A edição da Resolução 19/2023 da SPI/SP não apenas confirma a viabilidade jurídica da medida como também vai ao encontro do princípio de eficiência administrativa
Essa questão também chegou a ser recentemente debatida na Audiência Pública 08/2024, da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, em que se discutem alterações na Resolução 85/2022 da ANTAQ, que estabelece normas sobre o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de arrendamento de terminais portuários e de concessão dos portos organizados¹². As contribuições apresentadas, algumas envolvendo a introdução do mecanismo de reequilíbrio cautelar na referida norma, estão atualmente em análise pela ANTAQ no âmbito do Processo Administrativo 50300.008615/2023-72.
5. Conclusão
Se há alguma dificuldade relacionada à burocracia estatal, como a preocupação com o princípio da legalidade (no sentido de que a Administração Pública não pode fazer o que não está previsto em “lei” – interpretação dada ao art. 37, caput, da CF), a solução trazida pelo Estado de São Paulo com a normatização da medida de reequilíbrio cautelar deve eliminar esse problema. Espera-se, assim, que essa solução seja replicada em outras esferas administrativas, com o intuito de prestigiar outro princípio da Administração Pública (igualmente previsto no art. 37, caput, da CF): a eficiência.¹³
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¹ O art. 37, XXI, da Constituição estabelece que, “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.
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² Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: […] II – por acordo entre as partes: […] d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato.
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³ Art. 9º […]. § 4º Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.
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⁴ MARÇAL JUSTEN FILHO explica que “A legalidade significa a submissão dos poderes do Estado ao direito, exigindo autorização normativa para atuação estatal” (Curso do direito administrativo, 13ª ed., São Paulo: RT, 2018, p. 19).
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⁵ De acordo com LUIZ GUSTAVO BAMBINI DE ASSIS, no Estado Absolutista havia a “impossibilidade de responsabilização de seus atos [do governante]” (O absolutismo e sua influência na formação do Estado brasileiro, Revista dos Tribunais, v. 969, jul./2016, p. 4).
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⁶ Para JOÃO LUIZ GIONA JUNIOR, “a burocracia estatal no Brasil sofre de um arranjo que penaliza a eficiência econômica” (A política da ineficiência: escolhas institucionais e custos de transação da burocracia estatal brasileira, UFPR: Curitiba, 2022, p. 91 – dissertação de mestrado).
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⁷ Art. 6º […]. XXVII – matriz de riscos: cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações […].
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⁸ De acordo com FILIPE AUGUSTO COSTA FLESCH, “por melhor que seja o planejamento pré-contratual, é inviável que um contrato de concessão de serviço público preveja todos os acontecimentos que possam ocasionar prejuízo a uma ou outra parte” (Reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessões rodoviárias brasileiras em razão da oscilação do custo de capital, Instituto Serzedello Corrêa, TCU: Brasília, 2023, p. 16.
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⁹ FERRAREZI, Thiago. Perícia em contratos de concessão e PPPs: entendendo seu papel no reequilíbrio financeiro e econômico, Portal Migalhas, publicado em 14/04/2023, disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/384844/pericia-em-contratos-de-concessao-e-ppps.
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¹⁰ O art. 5º, LXXVIII, da Constituição estabelece que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
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¹¹ Conforme publicação no Diário Oficial do Estado de São Paulo, Caderno Executivo – Seção I, de 31/05/2023.
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¹² Conforme o preâmbulo da Resolução 85/2022 da ANTAQ, “Estabelece procedimentos para a elaboração e análise de estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental e recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de arrendamento de áreas e instalações portuárias nos portos organizados”.
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¹³ Comparando-se os índices de eficácia governamental entre diferentes países, JOÃO LUIZ GIONA JUNIOR explica que “efeitos econômicos negativos [do princípio] da legalidade podem ser mitigados ou compensados por outros efeitos econômicos positivos”. (A política da ineficiência: escolhas institucionais e custos de transação da burocracia estatal brasileira, UFPR: Curitiba, 2022, p. 47 – dissertação de mestrado).