1. Introdução
A Lei 8.666 (Lei Geral de Licitações e Contratos), a Lei 10.520 (Lei do Pregão) e parte da Lei 12.462 (Lei do RDC) perderão sua vigência em 31.3.2023, nos termos do art. 193 da Lei 14.133.
O imperativo da nova lei, no entanto, não trouxe clareza aos gestores envolvidos nas licitações promovidas pelo Poder Público. Além das medidas necessárias para regulamentação da Lei 14.133¹, pairam sobre os gestores dúvidas práticas acerca desses marcos temporais.
Desde dezembro de 2022, os gestores aguardavam uma posição do Tribunal de Contas da União que pussesse fim às duvidas existentes. Em 22.2.2023, o Plenário se posionou sobre a matéria por meio do Acórdão 507/2023.
2. O cerne da discussão
O cerne da discussão é a definição da data limite para utilização das leis revogadas pela Lei 14.133. Segundo o art. 193 da Lei 14.133, a legislação antiga ficará vigente até dois anos da sua publicação, ou seja, até 31.3.2023.
No entanto, a expressão “optar por licitar”, contida no art. 191² da Lei 14.133, gerou algumas dúvidas: “bastaria o processo licitatório ser autuado até 31.3.2023?”, “seria necessária a conclusão a conclusão do termo de referência ou projeto básico até final de março?”, “deveria o edital ser publicado até esta data?”, “deveria o contrato ser assinado antes de abril deste ano?”.
Essas questões envolvem uma situação muito específica: processos licitatórios já autuados, mas ainda na fase preparatória, anterior à publicação do edital de licitação.
3. A divergência entre Seges e AGU
A discussão surgiu da divergência de posicionamentos entre a Secretaria de Gestão do Ministério da Economia (“Seges”) e a Advocacia-Geral da União.
De um lado, a Seges, por meio do Comunicado n.° 10/2022, indicou que “o Sistema de Compras do Governo Federal, a contar do dia 31 de março de 2023, estará configurado para recepcionar somente as licitações e contratações diretas à luz da Lei 14.133”³. Desse modo, os processos licitatórios que tenham editais publicados até 31.3.2023 com fundamento nos diplomas revogados permaneceriam por eles regidos. Ou seja, o ato adotado como referência seria o edital.
De outro lado, a AGU consignou que a “expressão legal ‘opção por licitar ou contratar’, para fins de definição do ato jurídico estabelecido como referência para aplicação da ultratividade da legislação anterior, deve ser a manifestação pela autoridade competente, ainda na fase preparatória, que opte expressamente pela aplicação do regime licitatório anterior”. Ou seja, o ato adotado como referência seria a manifestação da autoridade competente na fase preparatória.
A divergência foi submetida ao TCU por meio do TC-000.586/2023-4. Segundo o Regimento Interno do TCU, compete ao Plenário deliberar sobre propostas de fixação de entendimento de especial relevância para a Administração Pública, sobre questão de direito (art. 16, inc. V). A área técnica do Tribunal chegou a emitir pronunciamento alinhado à posição da AGU.
4. O alinhamento da Seges e do TCU ao posicionamento da AGU
Enquanto o processo ainda estava em fase de elaboração de voto pelo Min. Relator Augusto Nardes, a Seges voltou atrás no seu entendimento para acompanhar a AGU.
Para tanto, editou a Portaria n.° 720, de 15 de março de 2023 dispondo que “[a] opção por licitar com fundamento na legislação a que se refere o caput deve constar expressamente da fase preparatória da contratação e ser autorizada pela autoridade competente até o dia 31 de março de 2023” (art. 2°, §1°, Portaria Seges/MGI n.° 720, de 15.3.2023)⁴.
O TCU se posicionou nos mesmos termos por meio do Acórdão 507/2023. Com isso, fixou o entendimento de que a Administração Pública Federal pode iniciar processos licitatórios com base nas legislações revogadas pela lei 14.133 até 31.3.2023.
O voto condutor do acórdão consignou que a conclusão em sentido contrário implicaria “aceitar que as licitações que foram iniciadas sob a égide das leis anteriores antes de 1° de abril teriam que ser refeitas para que se enquadrassem no novo regime, o que causaria elevado prejuízo ao erário, seja em termos econômicos, seja em atrasos na concretização de políticas públicas em benefício da sociedade”.
O entendimento foi fixado nos seguintes termos:
9.2.1. os processos licitatórios e os de contratação direta nos quais houve a “opção por licitar ou contratar” pelo regime antigo (Lei 8.666/1993, Lei 10.520/2002 e arts. 1º a 47-A da Lei 12.462/2011) até a data de 31/3/2023 poderão ter seus procedimentos continuados com fulcro na legislação pretérita, desde que a publicação do Edital seja materializada até 31/12/2023;
9.2.2. os processos que não se enquadrarem nas diretrizes estabelecidas no subitem anterior deverão observar com exclusividade os comandos contidos na Lei 14.133/21;
9.2.3. a expressão legal “opção por licitar ou contratar” contempla a manifestação pela autoridade competente que opte expressamente pela aplicação do regime licitatório anterior (Lei nº 8.666/1993, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2011), ainda na fase interna, em processo administrativo já instaurado.
5. A fixação de data limite: 31.12.2023
A definição da fase preparatória como o ato que atrai a incidência das legislações anteiores possui uma preocupação que lhe é intrínseca: o risco de se eternizar a utilização desses diplomas.
Em virtude dessa preocupação, a Seges chegou a fixar o dia 1°.4.2024 como data limite para a publicação do edital (art. 2°, caput). Contudo, o TCU se posicionou de modo diverso, fixando o dia 31.12.2023 como a data limite para publicação dos editais.
Segundo o voto condutor do acórdão, a opção por licitar deve estar inserida numa lógica de planejamento, nos termos da Lei 14.133 (arts. 11; 12, inc. VII; e 38), “mesmo para aqueles órgãos e entidades que não implementaram formalmente a materialização desse plano [plano atual de contratações, previsto no art. 12, inc. VII]”.
É interessante observar que o TCU não apenas incorporou a questão da fixação da data limite no rol de entendimentos fixados, com fundamento no art. 16, inc. V, do Regimento Interno, como também expediu determinação para que a Seges “proceda aos devidos ajustes de sua Portaria 720/2023” a fim de alterar a data de 1°.4.2024 para 31.12.2023.
A qualificação da deliberação como determinação é questionável, pois não há propriamente uma irregularidade identificada na Portaria passível de correção pelo TCU. Por outro lado, podem surgir dúvidas quanto à cogência dessa determinação e eventual possibilidade de penalização dos gestores em caso de descumprimento.
6. Considerações finais
Tal como exposto, o posicionamento do TCU parece por fim às discussões relacionadas à data limite para utilização dos diplomas revogados pela Lei 14.133.
O entendimento fixado valerá para a Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, bem como para os demais entes que se utilizem de recursos públicos federais. Além disso, tal como dispõe o art. 7° da Portaria Seges/MGI 720/2023, se aplica aos órgãos que se utilizem do Sistema de Compras do Governo Federal.
Se por um lado a solução permite um suspiro aos gestores públicos. Por outro pode abrir precedentes para novas modificações dos limites fixados para publicação do edital e o eterno prolongamento da utilização de regimes expressamente revogados por lei.
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¹O tema é objeto do artigo de ALEXANDRE WAGNER NESTER, publicado nesta edição do Informativo Eletrônico.
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²Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
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³Disponível em https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/comunicados/comunicado-no-10-2022-transicao-entre-a-lei-no-14-133-de-2021-e-as-leis-no-8-666-de-1993-no-10-520-de-2002-e-os-arts-1o-a-47-a-da-lei-no-12-462-de-2011. Acesso em 22.3.2023.
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⁴Disponível em https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/portarias/portaria-seges-mgi-no-720-de-15-de-marco-de-2023.