1. Um novo marco legal do saneamento básico
Recentemente, foi promulgada lei federal que altera a sistemática de exploração dos serviços de saneamento (Lei 14.026/2020).
O chamado “marco legal do saneamento básico” proíbe que os titulares dos serviços de saneamento celebrem novos contratos de programa com entidades (empresas estatais) da Administração Indireta de outros entes da Federação para organização e prestação daqueles serviços e condiciona o recebimento de apoio financeiro da União pelos titulares à conclusão das etapas de transição para o modelo previsto no novo marco legal.
A vedação à celebração de contratos de programa está na nova redação que os arts. 7º e 9º da Lei 14.026/2020 deram aos arts. 8º e 10 da Lei 11.445/2007 e ao art. 13 da Lei 11.107/2005. Por sua vez, o condicionamento para o apoio financeiro da União à transição para o novo modelo tem fundamento no art. 13 da Lei 14.026/2020. Tal apoio foi previsto para ser regulamentado por decreto que observe, entre as suas etapas, a adesão a mecanismo de prestação regionalizada distinto do existente pelo ente competente para prestar os serviços de saneamento básico; a estruturação da governança de gestão da prestação regionalizada; a elaboração ou atualização dos planos regionais de saneamento básico; a modelagem da prestação dos serviços com base em estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA); e, por fim, a alteração (substituição) dos contratos de programa vigentes, com licitação para alienação do controle acionário das estatais prestadoras dos serviços de saneamento e (ou) para a concessão desses serviços.
Diante dessas mudanças, uma das questões que se colocam é a forma pela qual as empresas estatais podem manter-se atuantes segundo o novo marco legal.
2. Primeira alternativa: contratos de programa vigentes no momento da promulgação da lei
Uma das modalidades de delegação da prestação dos serviços de saneamento que existiam até a edição da nova Lei era o contrato de programa. A modalidade tinha (tem) fundamento no art. 241 da Constituição. Foi regulamentada pela Lei federal 11.107/2005 e, desde a edição deste diploma, amplamente empregada pelos titulares dos serviços de saneamento para delegar a prestação desses serviços para entidades que não integram sua própria Administração Pública (art. 13 da Lei 11.107/2005).
O art. 9º da Lei 14.026/2020 alterou a redação do art. 13 da Lei 11.107/2005 e proibiu a celebração de novos contratos de programa com entidades da Administração Indireta de outros entes da Federação (empresas estatais), para a prestação de serviços de saneamento. Porém, ao fazê-lo, criou exceção para os contratos que estavam vigentes no momento da promulgação da lei (art. 17 da Lei 14.026/2020).
Tais contratos permanecerão em vigor até o advento do termo contratual – o qual, se revertido o veto ao art. 16 da Lei 14.026/2020, poderá ser postergado mediante renovação contratual. Não obstante, a Lei 14.026/2020 estabelece um claro incentivo financeiro aos entes que adotarem desde logo o modelo de concessão ou privatização nela previsto (art. 13, §§ 2º, 3º e 4º).
3. Segunda alternativa: contrato de concessão de serviços públicos
De um modo ou de outro, a delegação da prestação dos serviços de saneamento para a iniciativa privada ou para entidades da Administração Indireta de outros entes da Federação passará a ser feita mediante concessão e precedida de licitação.
O controle acionário das estatais prestadoras de serviços de saneamento poderá ser alienado para a iniciativa privada, em face dos arts. 13, VI, e 14 da Lei 14.026/2020. A alienação pressupõe a realização de licitação – inclusive para o fim de conceder os serviços de saneamento à iniciativa privada (art. 7º da 9.491/1997).
Porém, a Lei 14.026/2020 pode ser interpretada como não necessariamente impondo a privatização das estatais de saneamento. Alternativamente à alienação do controle acionário dessas estatais, a Lei permite a adoção do modelo de concessão previsto no art. 13, VI, da Lei 14.026/2020, sob o qual as estatais podem manter-se atuantes.
Tal entendimento tem respaldo doutrinário. Há pelo menos duas concepções de concessão de serviços públicos cuja análise é fundamental para confirmar esse raciocínio.
3.1. Primeira concepção: possibilidade de concessão de serviços públicos para entidades que não integram a Administração do titular desses serviços
Conforme será exposto mais adiante, as disposições da Lei 14.026/2020 relacionadas à delegação da prestação dos serviços para entidades que não integrem a Administração do titular desses serviços se aplicam apenas quando o próprio titular não queira prestá-los diretamente (v. tópico V, abaixo).
Parte da doutrina entende que basta a entidade não integrar a Administração do titular do serviço para que possa existir concessão em sentido próprio desse serviço para aquela entidade. Isso abrange as situações em que o titular do serviço contrata empresa estatal de outro ente da Federação, vez que tais empresas não integram a Administração do titular (e, com isso, satisfazem a condição mencionada previamente).1
Em apoio a esse entendimento, costuma-se invocar o art. 17, § 1º, da Lei 8.987/1995, segundo o qual, nas licitações para concessão de serviços públicos, serão desclassificadas as propostas de empresas estatais controladas por ente federativo alheio à esfera político-administrativa do poder concedente que necessitem de vantagens e subsídios de seu controlador. Considera-se que tal dispositivo confirma a possibilidade de existir relação de concessão entre o titular do serviço público e eventual empresa estatal controlada por outro ente da Federação.2
Diante da permissão contida no art. 13, § 3º, da Lei 14.026/2020 para que os titulares dos serviços de saneamento adotem modelo de concessão de serviços públicos, a estatal controlada por ente da Federação distinto desse titular poderá ainda assim continuar prestando aqueles serviços (sob regime de concessão).
3.2. Segunda concepção: possibilidade de concessão de serviços públicos apenas para particulares
Outra parte da doutrina entende que, como regra, a delegação da prestação de determinado serviço para entidade da Administração Direta e Indireta de outros entes da Federação não tem natureza própria de concessão e, quando muito, configura “concessão imprópria”.3
Essa parte da doutrina costuma aludir à disciplina legal do contrato de programa como evidência de que a orientação acima foi legislativamente recebida (Lei 11.107/2005). Considera-se que mesmo os contratos anteriores à vigência da Lei 11.107/2005 que foram denominados concessão de serviços públicos não têm natureza própria de concessão – de modo que a revogação do contrato de programa pela Lei 14.026/2020 não altera tal conclusão. Especificamente nesse caso, a prática adotada envolveria espécie de concessão imprópria designada como “concessão-convênio”.4
A figura designa situações em que existem interesses comuns a diversos entes federativos e a prestação é atribuída à entidade da Administração Indireta de um deles. Considera-se que, embora não haja vínculo de controle entre o titular do serviço e a entidade que o desempenha, o fato de tal entidade ainda pertencer à Administração Pública afasta o regime próprio da concessão, incompatível com aquela condição. O serviço continuaria sendo prestado com recursos estatais, por pessoa administrativa que estaria sob controle público e que poderia ser extinta a qualquer tempo.5
Contudo, para essa parte da doutrina, a afirmação de que a delegação da prestação do serviço para uma entidade sob controle estatal não caracteriza concessão é apenas a regra. Considera-se que, excepcionalmente, pode existir concessão de serviço público em sentido próprio tendo como delegatária uma entidade administrativa. Menciona-se precisamente o exemplo das companhias de saneamento que disputem a outorga de concessão dos serviços de saneamento de outro ente da Federação com o qual seu controlador não tenha celebrado qualquer convênio ou acordo. A companhia estadual estaria atuando “tal como se fosse uma empresa privada” e isso a subordinaria ao mesmo regime do concessionário privado.6
Assim, mesmo para essa parte da doutrina, em determinadas situações, as companhias de saneamento controladas por entes federativos distintos do titular desse serviço podem manter-se atuantes sob o regime de concessão de serviços públicos da Lei 14.026/2020.
4. Terceira alternativa: outorga de recursos hídricos para produção de água e venda para a operadora dos serviços de distribuição de água
Tanto no caso de se optar pelo modelo de concessão, quanto pelo modelo de privatização previstos no art. 13, VI, da Lei 14.026/2020, há ainda outra função que poderá remanescer com as estatais que hoje prestam serviços de saneamento: os serviços públicos de produção da água.
Os serviços de produção de água são objeto de outorga, normalmente detida pelas operadoras da distribuição de água. Conforme o art. 10-A da Lei 11.445/2007, incluído pelo art. 7º da Lei 14.026/2020, haverá a possibilidade de as outorgas atualmente detidas por empresas estatais serem segregadas ou transferidas das operações de distribuição de água a serem concedidas, para permitir que aquelas empresas continuem prestando os serviços de produção de água mesmo após a privatização e (ou) a concessão dos serviços de distribuição (discutidas nos tópicos precedentes).
A água produzida poderá então ser objeto de contrato de compra e venda entre as estatais detentoras da outorga dos recursos hídricos (produtoras de água) e as empresas operadoras da distribuição de água para o usuário final.
5. Quarta alternativa: empresa estatal integrante da Administração Indireta do próprio titular dos serviços de saneamento
Por fim, resta ao titular dos serviços de saneamento a possibilidade de explorar esses serviços por meio de empresa estatal integrante da sua própria Administração. Tal hipótese tem fundamento nos arts. 37, caput e XIX, e 175 da Constituição e não é atingida pelas alterações da Lei 14.026/2020 – as quais se voltam apenas para a contratação de entidades que não integrem a Administração do titular dos serviços.
Tais alterações, dirigidas às hipóteses de delegação da prestação dos serviços de saneamento para pessoa jurídica externa à estrutura do titular desses serviços, não podem ser interpretadas como sendo aptas a produzir algum efeito sobre a prerrogativa do titular dos serviços de organizar as atividades que são de sua competência da forma que entender melhor. Além da possibilidade de explorar tais serviços indiretamente, mediante delegação, o titular pode escolher prestá-los diretamente – tanto de forma centralizada, por meio de órgão da Administração Direta, quanto descentralizada, por meio de empresa estatal (arts. 37, caput e XIX, e 175 da Constituição).
6. Conclusão
Pelo exposto, segundo o novo marco legal do saneamento, as empresas estatais do setor que forem controladas por entes federativos distintos dos titulares desses serviços podem manter-se atuantes (1) mediante contratos de programa que estavam vigentes no momento da promulgação da Lei 14.026/2020 – até o advento do termo contratual – e também (2) mediante contrato de concessão de serviços públicos celebrado com os titulares dos serviços.
Mesmo na hipótese de os serviços de saneamento não serem concedidos para as empresas estatais, (3) haverá a possibilidade de as outorgas de recursos hídricos que tais empresas detêm serem segregadas ou transferidas dos serviços concedidos, para permitir que aquelas empresas continuem prestando os serviços públicos de produção de água. A água produzida poderá ser objeto de contrato de compra e venda entra as empresas estatais e as operadoras dos serviços de saneamento concedidos.
Além disso, (4) empresas estatais que integrem ou venham a integrar a Administração dos titulares dos serviços de saneamento não são afetadas pelas alterações da Lei 14.026/2020 e podem explorar esses serviços normalmente.
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1 Por todos, SCHIRATO, Vitor Rhein. Novas anotações sobre as empresas estatais, Revista de Direito Administrativo, v. 239, Rio de Janeiro, jan. 2015, pp. 215-216.
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2 Id. Ibid., pp. 215-216.
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3 Por todos, JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 13. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 675.
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4 Id. Ibid., p. 675.
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5 Id. Ibid., p. 677.
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6 Id. Ibid., p. 678.