Informativo Eletrônico - Edição 161 - Julho / 2020

MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO E AS EMPRESAS ESTATAIS

Lucas de Moura Rodrigues

1. Um novo marco legal do saneamento básico  

Recentemente, foi promulgada lei federal que altera a sistemática de  exploração dos serviços de saneamento (Lei 14.026/2020). 

O chamado “marco legal do saneamento básico” proíbe que os titulares  dos serviços de saneamento celebrem novos contratos de programa com  entidades (empresas estatais) da Administração Indireta de outros entes da Federação para organização e prestação daqueles serviços e condiciona o  recebimento de apoio financeiro da União pelos titulares à conclusão das  etapas de transição para o modelo previsto no novo marco legal.  

A vedação à celebração de contratos de programa está na nova redação  que os arts. 7º e 9º da Lei 14.026/2020 deram aos arts. 8º e 10 da Lei  11.445/2007 e ao art. 13 da Lei 11.107/2005. Por sua vez, o condicionamento  para o apoio financeiro da União à transição para o novo modelo tem  fundamento no art. 13 da Lei 14.026/2020. Tal apoio foi previsto para ser  regulamentado por decreto que observe, entre as suas etapas, a adesão a  mecanismo de prestação regionalizada distinto do existente pelo ente  competente para prestar os serviços de saneamento básico; a estruturação da  governança de gestão da prestação regionalizada; a elaboração ou atualização  dos planos regionais de saneamento básico; a modelagem da prestação dos  serviços com base em estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental  (EVTEA); e, por fim, a alteração (substituição) dos contratos de programa  vigentes, com licitação para alienação do controle acionário das estatais  prestadoras dos serviços de saneamento e (ou) para a concessão desses  serviços.

Diante dessas mudanças, uma das questões que se colocam é a forma  pela qual as empresas estatais podem manter-se atuantes segundo o novo  marco legal. 

2. Primeira alternativa: contratos de programa vigentes no momento  da promulgação da lei

Uma das modalidades de delegação da prestação dos serviços de  saneamento que existiam até a edição da nova Lei era o contrato de programa.  A modalidade tinha (tem) fundamento no art. 241 da Constituição. Foi  regulamentada pela Lei federal 11.107/2005 e, desde a edição deste diploma,  amplamente empregada pelos titulares dos serviços de saneamento para  delegar a prestação desses serviços para entidades que não integram sua  própria Administração Pública (art. 13 da Lei 11.107/2005).

O art. 9º da Lei 14.026/2020 alterou a redação do art. 13 da Lei  11.107/2005 e proibiu a celebração de novos contratos de programa com  entidades da Administração Indireta de outros entes da Federação (empresas  estatais), para a prestação de serviços de saneamento. Porém, ao fazê-lo,  criou exceção para os contratos que estavam vigentes no momento da  promulgação da lei (art. 17 da Lei 14.026/2020).  

Tais contratos permanecerão em vigor até o advento do termo contratual  – o qual, se revertido o veto ao art. 16 da Lei 14.026/2020, poderá ser  postergado mediante renovação contratual. Não obstante, a Lei 14.026/2020  estabelece um claro incentivo financeiro aos entes que adotarem desde logo o  modelo de concessão ou privatização nela previsto (art. 13, §§ 2º, 3º e 4º).

3.  Segunda alternativa: contrato de concessão de serviços públicos

De um modo ou de outro, a delegação da prestação dos serviços de  saneamento para a iniciativa privada ou para entidades da Administração Indireta de outros entes da Federação passará a ser feita mediante concessão  e precedida de licitação. 

O controle acionário das estatais prestadoras de serviços de  saneamento poderá ser alienado para a iniciativa privada, em face dos arts. 13,  VI, e 14 da Lei 14.026/2020. A alienação pressupõe a realização de licitação – inclusive para o fim de conceder os serviços de saneamento à iniciativa privada (art. 7º da 9.491/1997). 

Porém, a Lei 14.026/2020 pode ser interpretada como não  necessariamente impondo a privatização das estatais de saneamento.  Alternativamente à alienação do controle acionário dessas estatais, a Lei  permite a adoção do modelo de concessão previsto no art. 13, VI, da Lei  14.026/2020, sob o qual as estatais podem manter-se atuantes. 

Tal entendimento tem respaldo doutrinário. Há pelo menos duas  concepções de concessão de serviços públicos cuja análise é fundamental  para confirmar esse raciocínio.

3.1. Primeira concepção: possibilidade de concessão de serviços  públicos para entidades que não integram a Administração do titular  desses serviços

Conforme será exposto mais adiante, as disposições da Lei 14.026/2020  relacionadas à delegação da prestação dos serviços para entidades que não  integrem a Administração do titular desses serviços se aplicam apenas quando  o próprio titular não queira prestá-los diretamente (v. tópico V, abaixo).

Parte da doutrina entende que basta a entidade não integrar a  Administração do titular do serviço para que possa existir concessão em  sentido próprio desse serviço para aquela entidade. Isso abrange as situações  em que o titular do serviço contrata empresa estatal de outro ente da Federação, vez que tais empresas não integram a Administração do titular (e,  com isso, satisfazem a condição mencionada previamente).1 

Em apoio a esse entendimento, costuma-se invocar o art. 17, § 1º, da  Lei 8.987/1995, segundo o qual, nas licitações para concessão de serviços  públicos, serão desclassificadas as propostas de empresas estatais  controladas por ente federativo alheio à esfera político-administrativa do poder  concedente que necessitem de vantagens e subsídios de seu controlador.  Considera-se que tal dispositivo confirma a possibilidade de existir relação de  concessão entre o titular do serviço público e eventual empresa estatal  controlada por outro ente da Federação.2

Diante da permissão contida no art. 13, § 3º, da Lei 14.026/2020 para  que os titulares dos serviços de saneamento adotem modelo de concessão de  serviços públicos, a estatal controlada por ente da Federação distinto desse  titular poderá ainda assim continuar prestando aqueles serviços (sob regime de  concessão).

3.2. Segunda concepção: possibilidade de concessão de serviços  públicos apenas para particulares

Outra parte da doutrina entende que, como regra, a delegação da  prestação de determinado serviço para entidade da Administração Direta e  Indireta de outros entes da Federação não tem natureza própria de concessão  e, quando muito, configura “concessão imprópria”.3

Essa parte da doutrina costuma aludir à disciplina legal do contrato de  programa como evidência de que a orientação acima foi legislativamente  recebida (Lei 11.107/2005). Considera-se que mesmo os contratos anteriores à  vigência da Lei 11.107/2005 que foram denominados concessão de serviços  públicos não têm natureza própria de concessão – de modo que a revogação  do contrato de programa pela Lei 14.026/2020 não altera tal conclusão.  Especificamente nesse caso, a prática adotada envolveria espécie de  concessão imprópria designada como “concessão-convênio”.4

A figura designa situações em que existem interesses comuns a  diversos entes federativos e a prestação é atribuída à entidade da  Administração Indireta de um deles. Considera-se que, embora não haja  vínculo de controle entre o titular do serviço e a entidade que o desempenha, o  fato de tal entidade ainda pertencer à Administração Pública afasta o regime  próprio da concessão, incompatível com aquela condição. O serviço continuaria sendo prestado com recursos estatais, por pessoa administrativa que estaria  sob controle público e que poderia ser extinta a qualquer tempo.5

Contudo, para essa parte da doutrina, a afirmação de que a delegação  da prestação do serviço para uma entidade sob controle estatal não caracteriza  concessão é apenas a regra. Considera-se que, excepcionalmente, pode existir  concessão de serviço público em sentido próprio tendo como delegatária uma  entidade administrativa. Menciona-se precisamente o exemplo das companhias  de saneamento que disputem a outorga de concessão dos serviços de  saneamento de outro ente da Federação com o qual seu controlador não tenha  celebrado qualquer convênio ou acordo. A companhia estadual estaria atuando  “tal como se fosse uma empresa privada” e isso a subordinaria ao mesmo  regime do concessionário privado.6

Assim, mesmo para essa parte da doutrina, em determinadas situações, as companhias de saneamento controladas por entes federativos distintos do  titular desse serviço podem manter-se atuantes sob o regime de concessão de  serviços públicos da Lei 14.026/2020. 

4. Terceira alternativa: outorga de recursos hídricos para produção de  água e venda para a operadora dos serviços de distribuição de  água

Tanto no caso de se optar pelo modelo de concessão, quanto pelo modelo de privatização previstos no art. 13, VI, da Lei 14.026/2020, há ainda  outra função que poderá remanescer com as estatais que hoje prestam  serviços de saneamento: os serviços públicos de produção da água.

Os serviços de produção de água são objeto de outorga, normalmente  detida pelas operadoras da distribuição de água. Conforme o art. 10-A da Lei  11.445/2007, incluído pelo art. 7º da Lei 14.026/2020, haverá a possibilidade de  as outorgas atualmente detidas por empresas estatais serem segregadas ou  transferidas das operações de distribuição de água a serem concedidas, para  permitir que aquelas empresas continuem prestando os serviços de produção  de água mesmo após a privatização e (ou) a concessão dos serviços de  distribuição (discutidas nos tópicos precedentes).

A água produzida poderá então ser objeto de contrato de compra e  venda entre as estatais detentoras da outorga dos recursos hídricos  (produtoras de água) e as empresas operadoras da distribuição de água para o usuário final.

5. Quarta alternativa: empresa estatal integrante da Administração  Indireta do próprio titular dos serviços de saneamento

Por fim, resta ao titular dos serviços de saneamento a possibilidade de  explorar esses serviços por meio de empresa estatal integrante da sua própria  Administração. Tal hipótese tem fundamento nos arts. 37, caput e XIX, e 175  da Constituição e não é atingida pelas alterações da Lei 14.026/2020 – as  quais se voltam apenas para a contratação de entidades que não integrem a  Administração do titular dos serviços. 

Tais alterações, dirigidas às hipóteses de delegação da prestação dos  serviços de saneamento para pessoa jurídica externa à estrutura do titular  desses serviços, não podem ser interpretadas como sendo aptas a produzir  algum efeito sobre a prerrogativa do titular dos serviços de organizar as  atividades que são de sua competência da forma que entender melhor. Além  da possibilidade de explorar tais serviços indiretamente, mediante delegação, o  titular pode escolher prestá-los diretamente – tanto de forma centralizada, por  meio de órgão da Administração Direta, quanto descentralizada, por meio de  empresa estatal (arts. 37, caput e XIX, e 175 da Constituição).

6. Conclusão

Pelo exposto, segundo o novo marco legal do saneamento, as empresas  estatais do setor que forem controladas por entes federativos distintos dos titulares desses serviços podem manter-se atuantes (1) mediante contratos de  programa que estavam vigentes no momento da promulgação da Lei  14.026/2020 – até o advento do termo contratual – e também (2) mediante  contrato de concessão de serviços públicos celebrado com os titulares dos  serviços.

Mesmo na hipótese de os serviços de saneamento não serem  concedidos para as empresas estatais, (3) haverá a possibilidade de as  outorgas de recursos hídricos que tais empresas detêm serem segregadas ou transferidas dos serviços concedidos, para permitir que aquelas empresas  continuem prestando os serviços públicos de produção de água. A água produzida poderá ser objeto de contrato de compra e venda entra as empresas  estatais e as operadoras dos serviços de saneamento concedidos.

Além disso, (4) empresas estatais que integrem ou venham a integrar a  Administração dos titulares dos serviços de saneamento não são afetadas  pelas alterações da Lei 14.026/2020 e podem explorar esses serviços  normalmente.  

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1 Por todos, SCHIRATO, Vitor Rhein. Novas anotações sobre as empresas estatais, Revista de  Direito Administrativo, v. 239, Rio de Janeiro, jan. 2015, pp. 215-216.

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2 Id. Ibid., pp. 215-216. 

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3 Por todos, JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 13. ed. rev., atual. e  ampl., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 675. 

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4 Id. Ibid., p. 675.

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5 Id. Ibid., p. 677.

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6 Id. Ibid., p. 678.

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