1. A fase interna do processo de contratação
Embora o processo de contratação seja uno e indivisível, para fins didáticos pode ser dividido em duas fases: a fase interna e a fase externa.
As exceções estão previstas nos incisos do art. 57. Dentre elas estão os projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas do plano plurianual, que poderão ser prorrogados (totalizando até 5 anos), conforme previsto no art. 57, inc. I.
A fase interna (ou fase de planejamento), como o próprio nome diz, se desenvolve no âmbito interno da Administração Pública, sem a exteriorização perante terceiros – o que não significa que não deva ser formalizada em autos.
Esta fase é caracterizada pelo planejamento estratégico da contratação, cujo primeiro documento oficial será o Estudo Técnico Preliminar (ETP), que consolidará as informações e conclusões obtidas nas etapas iniciais da contratação pública.
Ou seja, a atividade de planejamento é ampla e não se resume à elaboração de um documento denominado Estudo Técnico Preliminar. Embora este documento seja altamente relevante, o planejamento da contratação pública envolve uma série de atividades preliminares destinadas a: (i) identificar a necessidade pública a ser atendida, (ii) identificar as soluções disponíveis para atender à necessidade inicialmente identificada e (iii) obter as informações disponíveis no mercado a respeito dessas soluções.1
2. O Estudo Técnico Preliminar antes da Lei 14.133/21
A Lei 8.666 possui diversas lacunas quanto à fase de planejamento. Não obstante, a interpretação sistemática (com outras leis, jurisprudência e a própria Constituição)2já vedava a realização de contratações públicas sem o devido planejamento prévio.
Desde o Decreto-lei 200/1967, o planejamento é considerado princípio fundamental da Administração Pública. A própria Lei 8.666 dispõe que o projeto básico da contratação deverá ser “elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares” (art. 6º, inc. IX).
Ainda, a valorização do planejamento no ambiente de contratações públicas vinha sendo constatada em diversos diplomas legais, ao exemplo da Lei 12.462 (Lei do RDC)3 e da Lei 13.303 (Lei das Estatais).4
Porém, foi especialmente com o advento da Instrução Normativa 05/2017 do Ministério do Planejamento (que regulamenta a disciplina da Lei 8.666 em âmbito federal) que o ETP passou a ganhar destaque como um documento específico da fase de planejamento.
O art. 20 da IN 05/2017 determina que o planejamento da contratação (tanto em processos licitatórios quanto em contratações diretas) consistirá em Estudos Preliminares, Gerenciamento de Riscos e Termo de Referência ou Projeto Básico.
Já o art. 24, §1º dispõe que o documento que materializa os Estudos Preliminares deverá conter:
I – necessidade da contratação;
II – referência a outros instrumentos de planejamento do órgão ou entidade, se houver;
III – requisitos da contratação;
IV – estimativa das quantidades, acompanhadas das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte;
V – levantamento de mercado e justificativa da escolha do tipo de solução a contratar;
VI – estimativas de preços ou preços referenciais;
VII – descrição da solução como um todo;
VIII – justificativas para o parcelamento ou não da solução quando necessária para individualização do objeto;
IX – demonstrativo dos resultados pretendidos em termos de economicidade e de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais ou financeiros disponíveis;
X – providências para adequação do ambiente do órgão;
XI – contratações correlatas e/ou interdependentes; e
XII – declaração da viabilidade ou não da contratação.
Além disso, há o Decreto 10.024/19 (que regulamenta o pregão na forma eletrônica), cujo art. 3º, inc. IV, definiu o ETP como “documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação, que caracteriza o interesse público envolvido e a melhor solução ao problema a ser resolvido e que, na hipótese de conclusão pela viabilidade da contratação, fundamenta o termo de referência”.
3. O Estudo Técnico Preliminar na nova Lei de Licitações
Com a edição da Lei 14.133, operou-se a centralização normativa dos conceitos, da documentação e das etapas do planejamento em contratações públicas, além da consagração do planejamento como princípio básico (art. 5º).
Nessa linha, os elementos do ETP foram esclarecidos e o documento teve sua importância evidenciada, notadamente pelo fato de a Lei 14.133 possuir normas gerais e nacionais – e não somente especiais (como o Decreto 10.024/19) ou federais (como a IN 05/2017).
O art. 6º, inc. XX, da nova Lei trouxe um conceito muito semelhante ao adotado pelo Decreto 10.024/19:
XX – estudo técnico preliminar: documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução e dá base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação.
Com isso, tornou-se inequívoca a existência do dever de elaborar o ETP em qualquer contratação pública em âmbito nacional.
4. A finalidade e os elementos do Estudo Técnico Preliminar
O ETP é essencialmente exploratório e tem por objetivo delimitar a melhor solução para a necessidade pública identificada pela Administração
Deve consolidar as informações e conclusões obtidas na fase de planejamento, servindo de esboço para a elaboração do anteprojeto (quando couber), além do termo de referência ou do projeto básico e do projeto executivo (quando couberem), que darão forma à contratação pública.5
Mais especificamente, nos termos do art. 18, §1º, da Lei 14.133, o ETP caracteriza-se por:
1) demonstrar a necessidade de contratação, a partir do interesse público;
2) demostrar a previsão da contratação no Plano de Contratações Anual, em conformidade com o planejamento estratégico do ente público em questão;
3) apresentar os requisitos de contratação;
4) demonstrar estimativas de quantidades para a contratação, com memórias de cálculo e documentos comprobatório;
5) apresentar levantamento de mercado, com as possíveis alternativas e justificativas técnicas e econômicas da solução escolhida;
6) justificar o parcelamento (ou não) da solução escolhida;
7) estimar o valor da solução;
8) demonstrar os resultados pretendidos com a solução;
9) estimar as providências a serem adotadas para a contratação, como a capacitação dos servidores públicos encarregados da fiscalização e da gestão contratual;
10) indicar eventual necessidade de contratações correlatas ou interdependentes; e
11) realizar um posicionamento conclusivo em relação à contratação pretendida e a necessidade visada.
O documento deverá ser elaborado pela equipe de planejamento da contratação,6 composta por servidores responsáveis por nortear a fase interna do certame e que possuem a competência técnica necessária – isto é, conhecimentos sobre aspectos técnicos do objeto a ser contratado, sobre licitações e contratos, e assim por diante.7
5. A jurisprudência do Tribunal de Contas da União
O TCU já reconheceu o dever de confeccção substancial, tempestiva e suficiente do ETP:
A elaboração açodada, pró-forma e a posteriori dos artefatos essenciais ao planejamento da contratação – Estudo Técnico Preliminar e Projeto Básico – apenas com o fito de cumprir o rito processual, em subversão da sequência processual prevista (…) desrespeita o princípio fundamental do planejamento e do controle insculpidos nos incisos I e V, do art. 6º, do Decreto-Lei 200/1967.8
Ou seja, como regra, a falta de ETP acarreta a nulidade do certame. Caso a ausência do ETP torne inviável a execução contratual ou ocasione dano ao erário (p.ex., por sobrepreço derivado da deficiência de estudo de mercado), caberá o desfazimento da contratação e a responsabilização dos envolvidos, inclusive para o devido ressarcimento dos cofres públicos.
Mas também existem precedentes do TCU admitindo o saneamento de defeitos na elaboração do ETP, mediante plano de ação adequado, caso o defeito tenha sido constatado supervenientemente:
9.3.4.1. analisem a conformidade dos termos do contrato e do projeto básico e verifiquem se:
9.3.4.1.1. foi realizado o adequado planejamento da contratação, consistindo na execução do processo de planejamento previsto na IN – SLTI/MP 4/2010 se for integrante do Sisp (IN – SLTI/MP 4/2010, art. 18, inciso II) ou, caso não o seja, se foram realizados os devidos estudos técnicos preliminares (Lei 8.666/1993, art. 6º, inciso IX);
(…) 9.3.4.2. caso a análise realizada de acordo com orientação acima indique desconformidade, elaborem plano de ação para providenciar as adequações contratuais necessárias, que deverão ser realizadas no prazo de 180 dias;9
Nesse caso, sem deixar de considerar a ilegalidade da elaboração deficiente do ETP, o TCU reputou que a irregularidade poderia ser sanada em vista das circunstâncias concretas.
Essa lógica foi fortificada com a nova Lei de Licitações, que visa a previnir impactos negativos decorrentes da anulação da contratação:
Art. 147. Constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento, a decisão sobre a suspensão da execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público.
No mesmo sentido, Marçal Justen Filho salienta que a “infração às determinações do art. 18”, que elenca elementos necessários à fase preparatória da licitação, “acarreta a invalidade dos atos infringentes. No entanto, é indispensável assinalar que o regime jurídico da invalidação adotado pela Lei 14.133/2021 não implica o automático desfazimento, com efeitos retroativos, dos atos defeituosos”.10
6. Considerações finais
O novo regime legal das licitações e contratações administrativas conferiu especial ênfase para a fase de planejamento da licitação (fase interna) e para os Estudos Técnicos Preliminares (ETPs) que são produzidos durante esta etapa do processo de contratação.
O planejamento estratégico da contratação previne erros grosseiros e prejuízos aos recursos públicos – que poderiam advir de eventuais sobrepreços ou da necessidade de anular procedimento viciado para o qual já foram despendidos tempo e trabalho de diversos servidores públicos.
Nesse cenário, a adequada elaboração do ETP é extremamente relevante para o sucesso e a eficiência da contratação, uma vez que o documento servirá de base para a elaboração de todos os documentos subsequentes (anteprojeto, termo de referência, projeto básico, projeto executivo, edital e contrato).
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1 Assim, “o estudo técnico preliminar não se constitui em ato que desencadeia o procedimento da licitação, mas é antecedido de atividades diversas que podem demandar um longo período de tempo” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 355).
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2 O princípio da eficiência (art. 37, caput, da CF/88) decorre da República e consagra o entendimento de que todas as competências estatais têm de ser exercitadas do modo mais satisfatório possível. Quanto melhor planejada uma contratação, potencialmente maior será a sua eficiência.
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3“(…) projeto básico: conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para, observado o disposto no parágrafo único deste artigo: a) caracterizar a obra ou serviço de engenharia, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares” (art. 2º, IV, al. ‘a’, Lei 12.462).
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4“(…) projeto básico: conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para, observado o disposto no § 3º, caracterizar a obra ou o serviço, ou o complexo de obras ou de serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegure a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução (…)” (art. 42, VIII, Lei 13.303).
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5 Esses documentos poderão inclusive destoar do ETP, haja vista a atualização e o amadurecimento das informações nele descritas.
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6“Com base no documento que formaliza a demanda, a equipe de Planejamento da contratação deve realizar os Estudos Preliminares” (art. 24, IN 05/2017).
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7“A equipe de Planejamento da Contratação é o conjunto de servidores, que reúnem as competências necessárias à completa execução das etapas de Planejamento da Contratação, o que inclui conhecimentos sobre aspectos técnicos e de uso do objeto, licitações e contratos, dentre outros” (art. 22, §1º, IN 05/2017).
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8“TCU, Acórdão 122/2020, Plenário, Min. rel. Raimundo Carreiro, sessão de 29/01/20.
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9 TCU, Acórdão 1233/2012, Plenário, Min. rel. Aroldo Cedraz, sessão de 23/05/21.
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10 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 359.