1. A disciplina geral da Lei 8.666 adotada pela Lei 14.133
A Lei 8.666 estabelecia, nos arts. 69, 70 e 73, §2º, que o contratado tem responsabilidade pela obra executada – do que decorre a obrigação de corrigir os defeitos identificados e a responsabilização por eventuais danos causados à Administração ou a terceiros. Essa responsabilidade não era afastada pelo recebimento da obra, mas deveria incidir nos limites da lei e do contrato.
A Lei 8.666 não estabelecia prazo específico de garantia, de modo que a solução consistia na aplicação da regra geral do Código Civil.
A Lei 14.133 reitera as regras da Lei 8.666 ao estabelecer a responsabilidade do contratado nessas situações e a obrigação de corrigir defeitos identificados e responder por danos causados. Os arts. 119, 120 e 140, §2º, da Lei 14.133 têm correspondência com os dispositivos da Lei 8.666 acima referidos.
Mas a Lei 14.133 avançou no tema ao estabelecer o prazo de garantia quinquienal. Trata-se da regra do art. 140, §6º, da Lei 14.133.
2. A Lei 8.666 e a aplicação da garantia quinquenal do art. 618 do Código Civil
A Lei 8.666 não estabelecia prazo específico delimitando a responsabilidade do particular executor de obra pública. Por isso, cabia recorrer à disciplina geral do Código Civil.
A disciplina específica atinente à responsabilidade civil do executor de obra está prevista no art. 618 do Código Civil. Ele prevê que, nos “contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo”.
Essa regra é aplicável às contratações administrativas, de acordo com os arts. 54 da Lei 8.666.
2.1. O posicionamento do Tribunal de Contas da União (TCU)
A jurisprudência do TCU já reconhecia que o art. 618 do Código Civil estabelece prazo de cinco anos (garantia quinquenal) durante o qual o contratado tem responsabilidade sobre a obra pública executada. Mais ainda, reconhecia que se tratava de responsabilidade objetiva e que, no período de garantia, a responsabilidade somente pode ser afastada pela existência de alguma excludente (p.ex., fato exclusivo da vítima ou de terceiros, força maior ou caso fortuito). Confiram-se alguns precedentes:
Considerando a responsabilidade civil da contratada disposta no art. 618 do Código Civil, de fato, e empreiteira é objetivamente responsável pela solidez e segurança da obra por um prazo irredutível de cinco anos. (TCU, Acórdão 252/2012, Plenário, rel. Min. Valmir Campelo)
19. Não pode ser acatada a afirmação de que o pavimento foi precocemente deteriorado em virtude do relevo da cidade e do pesado tráfego de veículos. A empresa construtora, ao assumir a execução da obra, por certo tinha, ou deveria, ter pleno conhecimento das condições da localidade, sendo de sua inteira responsabilidade assegurar a solidez e a durabilidade do empreendimento.
20. Outra não é a regra inserta no Código Civil, que, em seu art. 618, preceitua o seguinte: […].
21. A alegação de que a obra foi integralmente concluída e em perfeitas condições e sua deterioração decorreu de ausência de manutenção não foi comprovada. Por isso mesmo, não pode ser acatada.
22. A alegada intempestividade na vistoria não pode ser aceita, uma vez que ocorreu dentro de prazo inferior a dois anos da conclusão das obras, período em que, por força legal, a Construtora ainda era responsável pela qualidade dos serviços prestados. (TCU, Acórdão 3.433/2012, Primeira Câmara, rel. Min. Ana Arraes)
Com efeito, a [empresa] deveria ter refeito os serviços danificados do empreendimento e assumido integralmente todos os prejuízos verificados, visto que o art. 69 da Lei de Licitações e Contratos estatui que o contratado é obrigado a reparar, corrigir, remover, reconstruir ou substituir, às suas expensas, no total ou em parte, o objeto do contrato em que se verificarem vícios, defeitos ou incorreções resultantes da execução ou de materiais empregados. Igualmente o art. 70 dispõe que o contratado é responsável pelos danos causados diretamente à Administração ou a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo na execução do contrato, não excluindo ou reduzindo essa responsabilidade a fiscalização ou o acompanhamento pelo órgão interessado.
Mesmo no caso de danos causados por ocorrências climáticas, em princípio o construtor tem responsabilidade objetiva no tocante à solidez e à segurança da obra durante o prazo irredutível de cinco anos a contar de sua conclusão, nos termos do art. 618 do Código Civil, cabendo exclusivamente a ele o ônus de demonstrar que não possui nenhuma parcela de culpa na consecução dos vícios eventualmente encontrados. (TCU, Acórdão 4711/2020, Primeira Câmara, rel. Min. Benjamin Zymler)
2.2. A orientação técnica do IBRAOP (OT-IBR 03/2011)
Esse entendimento era corroborado pelo Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas (IBRAOP).
O IBRAOP é uma sociedade civil de direito privado sem fins econômicos, de âmbito nacional, constituído por profissionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, de nível superior e que exercem atividades relacionadas à auditoria de obras públicas. Suas Orientações Técnicas têm por objetivo consolidar o entendimento de técnicos dos Tribunais de Contas a respeito de determinado tema e, apesar de não terem efeito vinculante, são usualmente tomadas em consideração como diretrizes por agentes de contratações públicas.
A OT-IBR 03/2011 versa sobre a “Garantia quinquenal de obras públicas”. Prevê que a garantia quinquenal é o “período de 5 anos, definido pelo art. 618 do Código Civil, no qual os executores têm responsabilidade objetiva pelos defeitos verificados nas obras” (subitem 3.1). Nesse período, o executor responde “diretamente pelos danos causados a terceiros, independentemente de dolo ou culpa” (subitem 3.2).
As excludentes de responsabilização mencionadas no documento são “caso fortuito, motivo de força maior, culpa exclusiva de terceiros e inexistência do defeito” (subitem 3.3).
Sob outro ângulo, o subitem 5.2.2 da OT-IBR menciona algumas exceções ao prazo quinquenal das garantias de obras públicas. Trata-se de serviços específicos que se deterioram mais rapidamente, cuja vida útil é inferior a cinco anos. Confira-se:
Determinadas obras ou serviços, por sua natureza ou prazo de validade dos próprios materiais empregados, não são garantidos pelo prazo de cinco anos estabelecidos em lei, devendo ser monitorados durante os períodos próprios de sua vida útil. São eles, exemplificativamente: serviços de capinação, roço/roçada, limpeza e desobstrução de dispositivos de drenagem, pintura (sinalização) de faixas de rodovias ou vias urbanas e pintura de edificações.
2.3. Condições para responsabilização no período posterior aos cinco anos
Sob outro ângulo, também havia o entendimento de que o decurso do prazo de cinco anos fixado no art. 618 do Código Civil não exaure a responsabilidade do contratado. Após os cinco anos da garantia quinquenal, o executor deveria ser responsabilizado pelos defeitos verificados, desde que dentro do período de vida útil da obra e desde que comprovada a existência de dolo ou culpa (imprudência, negligência ou imperícia).
Ou seja, a reponsabilidade perduraria no período posterior aos cinco anos da garantia legal, mas ficaria condicionada ao limite temporal da vida útil da obra e à presença do elemento subjetivo. O ônus da prova da ocorrência de conduta dolosa ou culposa do particular incumbiria à Administração.
No Acórdão 834/2020, por exemplo, a Primeira Câmara do TCU analisou a ocorrência de inexecução parcial do objeto do Convênio 121/2008, celebrado entre a União e o Município de Ibipeba/BA, para implantação de rede de drenagem com pavimentação. O TCU acolheu a defesa da executora dos serviços e afastou a condenação da empresa por irregularidades na obra. A decisão foi tomada em razão da ausência de comprovação do vínculo de responsabilidade com os vícios constatados de modo intempestivo.
O julgado concluiu que “o parecer que confirmou as supostas impropriedades foi emitido […] passados mais de 5 anos do recebimento do objeto”, extrapolando o limite legal de cinco anos estabelecido pelo art. 618 do Código Civil para responsabilidade de serviços de engenharia. (TCU, Acórdão 834/2020, Primeira Câmara, rel. Min. Weder de Oliveira)
Nesse mesmo sentido, confira-se o subitem 5.3 da OT-IBR 03/2011:
5.3 Ainda que ultrapassado o período de garantia quinquenal, a Administração Pública pode notificar os responsáveis pelos defeitos constatados nas obras para que os corrijam sem ônus ao Erário. Para isso, deve averiguar se o empreendimento ainda se encontra dentro do seu período de vida útil e realizar uma inspeção mais detalhada, uma vez que passará a assumir o ônus da prova.
Portanto, para a responsabilização do executor no período posterior a cinco anos do recebimento, a Administração deveria comprovar (i) que a construção ainda se encontra dentro do seu período de vida útil e (ii) que se trata de defeito cometido pelo executor, mediante dolo ou culpa.
Para assegurar a viabilidade de responsabilização nesses casos, os órgãos de controle já ressaltavam a necessidade de haver controle efetivo sobre o desempenho do particular, além de um monitoramento efetivo da deterioração da obra.
A título de exemplo, confira-se o seguinte julgado do TCU:
Além da necessidade de monitoramento da deterioração, outra boa prática da Administração Pública seria a elaboração de um manual de utilização e manutenção preventiva da obra, no qual sejam estipulados os procedimentos a serem executados e a frequência dessas inspeções, principalmente dentro do prazo de garantia quinquenal, conforme prevê a norma ABNT NBR 6118:2007, em seu item 25.4. Desse modo, visando à garantia da vida útil prevista para a estrutura, tendo em vista o porte da construção e a agressividade do meio em que está inserida, entendo adequado emitir recomendação ao Suape para que elabore para o empreendimento em tela um manual de utilização e manutenção preventiva, como proposto pela unidade especializada. (TCU, Acórdão 943/2014, Plenário, rel. Min. Marcos Bemquerer)
3. O art. 140, §6º, da Lei 14.133
O art. 140, §6º, da Lei 14.133 estabelece que:
Em se tratando de obra, o recebimento definitivo pela Administração não eximirá o contratado, pelo prazo mínimo de 5 (cinco) anos, admitida a previsão de prazo de garantia superior no edital e no contrato, da responsabilidade objetiva pela solidez e pela segurança dos materiais e dos serviços executados e pela funcionalidade da construção, da reforma, da recuperação ou da ampliação do bem imóvel, e, em caso de vício, defeito ou incorreção identificados, o contratado ficará responsável pela reparação, pela correção, pela reconstrução ou pela substituição necessárias.
A regra incorporou a disciplina do Código Civil sobre a garantia pela execução de obras, conforme a jurisprudência anterior do TCU.
Previu prazo de cinco anos de garantia, no qual o particular responde por defeitos identificados na obra, em consonância com o prazo geral previsto no Código Civil.
Porém, ressalvou que o edital e o contrato podem prever prazo de garantia superior, o que será cabível em vista das especificidades da obra em questão. Em que pese o silêncio da regra, reputa-se que em relação a serviços específicos que se deterioram mais rapidamente, cuja vida útil é inferior a cinco anos, será cabível a previsão de prazo de garantia inferior.
Em qualquer caso, a definição do prazo de garantia é essencial, porque se vincula diretamente à composição de custos do particular e ao equilíbrio econômico-financeiro da contratação.
Ademais, o dispositivo previu expressamente que a responsabilidade no período de garantia é objetiva, independente da comprovação de dolo ou culpa. Assim, cabe ao particular a demonstração da existência de excludente de responsabilização.
Não foi prevista uma disciplina relativa à responsabilização no período posterior ao prazo de garantia. Reputa-se que se aplica o posicionamento consolidado no período anterior, segundo o qual (i) a responsabilidade do particular depende da demonstração de que (i.1) a construção está dentro do seu prazo de vida útil e (i.2) se trata de defeito cometido pelo executor, em conduta dolosa ou culposa; e (ii) o ônus da prova incumbe à Administração.