Informativo Eletrônico - Edição 194 - Abril / 2023

AS MUDANÇAS NO SETOR DE SANEAMENTO BÁSICO: AS PRINCIPAIS NOVIDADES TRAZIDAS PELOS DECRETOS 11.466 E 11.467 DE 2023

Guilherme Dias Reisdorfer
Nicole Mendes Müller

1. O contexto para a edição dos Decretos 11.466 e 11.467 de 2023

No dia 5 de abril de 2023 foram publicados os Decretos 11.466 e 11.467, que disciplinam as regras relacionadas aos serviços públicos de saneamento básico.

O Decreto 11.466/2023 regulamentou o art. 10-B da Lei 11.445/2007, estabelecendo a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores do serviço público de saneamento.

Já o Decreto 11.467/2023 regulamentou a prestação regionalizada dos serviços, o apoio técnico e financeiro da União e a alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União.

Ambos foram justificados a partir do objetivo anunciado de universalização dos serviços de saneamento até 31 de dezembro de 2033 – meta estabelecida pela Lei 14.026/2020 (art. 10-B).

Algumas das inovações traduzem não apenas uma mutação regulatória, mas um redirecionamento de política de governo. Como tal, vêm causando controvérsias e já se encontram sob discussão no Supremo Tribunal Federal (ADPF 1055) e em ambas as casas do Poder Legislativo, onde tramitam diversas Propostas de Decretos Legislativos para sustar os efeitos das novas regras (PDLs 106, 107 e 110/2023 no Senado e 98, 114 e 115/2023 na Câmara).

Destacam-se a seguir aspectos práticos derivados das inovações trazidas.

2. O Decreto 11.466/2023

O art. 10-B da Lei 11.445/2007 prevê a necessidade de comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviço público e indica que tal questão deverá ser disciplinada por meio de decreto.

Até a publicação do Decreto 11.466/2023, a capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviço público (art. 10-B da Lei 11.445/2007) era disciplinada pelo Decreto 10.710/2021. A redação dos dois decretos é muito semelhante, mas apresenta algumas inovações que merecem destaque.

2.1. Comprovação da capacidade econômico-financeira

O novo decreto inova com a possibilidade de o prestador comprovar capacidade econômico-financeira a partir da receita de contratos provisórios ainda não formalizados ou mesmo contratos irregulares, desde que sejam devidamente formalizados ou regulados até 31 de dezembro de 2025 (art. 1º, § 2º).

Há também nova previsão de que as regras de comprovação da capacidade econômico-financeira também serão aplicadas aos prestadores contratados por concessão, com a ressalva de que nestes casos a comprovação será necessária somente para fins de aditamento dos contratos, com a finalidade de inclusão das metas de universalização (art. 1º, § 5º).

O procedimento segue sendo o mesmo, dividido em duas etapas, sendo a primeira dedicada à análise pela entidade reguladora do cumprimento de referenciais mínimos dos indicadores econômico-financeiros, especificados no art. 5º. A segunda é dedicada à análise da adequação dos estudos de viabilidade e do plano de capacitação (art. 4º).

A inovação está na possibilidade de os prestadores apresentarem um plano de metas atingíveis no prazo de cinco anos quando não alcançarem os referenciais mínimos exigidos para sua aprovação na primeira etapa (§ 4º, art. 5º). O cumprimento desse plano será verificado anualmente pela entidade reguladora competente (§ 5º, art. 5º).

2.2. A questão da ineficácia da decisão sobre a capacidade econômico-financeiras para avaliação

No decreto anterior, o art. 18 previa um mecanismo de ineficácia automática da decisão sobre a capacidade econômico-financeira, aplicável a um rol taxativo de situações que geravam a perda de efeitos automática da decisão:

(i) requerimentos que descumprissem o atendimento à exigência do valor presente líquido igual ou superior a zero – incisos I e II;

(ii) descumprimento da captação de recursos – inciso III;

(iii) no caso de prestação regionalizada, a falta de constituição de sociedade de propósito específico, ou a falta de correspondência da estrutura de receitas e despesas efetivamente transferidos à sociedade de propósito específico com àquela estimada no fluxo de caixa regionalizado – inciso IV; e

(iv) a falta de comprovação do encerramento da prestação de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário com base em relações precárias – inciso V.

Já no decreto atual, o rol foi mantido, com a inclusão de apenas mais um inciso (art. 14, inciso IV – não atingimento dos referenciais mínimos previstos no plano de metas do prestador). Contudo, a decisão agora não perderá os seus efeitos de forma automática. O caput do art. 14 apresenta redação indeterminada ao afirmar que a decisão “poderá ser revista”. Constatada a incidência de alguma das hipóteses acima, será realizado um procedimento de revisão pela entidade reguladora, com a posterior comunicação de eventual decisão negativa da capacidade do prestador à ANA (parágrafo único, art. 14).

2.3. Alterações sobre a necessidade e prazos para comprovação da capacidade econômico-financeira

Um dos pontos mais significativos das alterações, que é objeto de discussão na ADPF 1055, está relacionado à ampliação dos prazos para a comprovação da capacidade econômico-financeira.

De acordo com o decreto anterior, as empresas públicas ou sociedades estatais sujeitas a processo de desestatização teriam sua capacidade econômico-financeira presumida, desde que atendidas as condições previstas nos incisos do art. 22, incluindo a observância do prazo de apresentação de requerimento até 31 de janeiro de 2022.

O novo decreto ampliou o prazo anteriormente estipulado para 31 de dezembro de 2023 (art. 18, inciso I, Decreto 11.466/2023).

A ampliação do prazo se deu também para os demais prestadores apresentarem o requerimento. Na verdade, há aqui duas situações distintas: para os prestadores que se submeteram à aferição da capacidade econômico-financeira previsto no Decreto 10.710, é facultado o aproveitamento dessa avaliação (art. 22); o requerimento para novas avaliações, por outro lado, teve o prazo ampliado para 31 de dezembro de 2023 (art. 10, Decreto 11.466/2023).

Contudo, os prazos não foram todos ampliados. Em relação ao plano de captação de recursos, o prestador deve indicar devidamente dos financiadores e vias de financiamento. Essa indicação será acompanhada de carta de intenções, emitida por instituição financeira que indique a viabilidade do crédito, ou viabilidade de emissão de debêntures, em medida suficiente para obtenção dos recursos até 31 de dezembro de 2024 (art. 8º, inc. II, Decreto 11.466). Nesse caso, o prazo foi reduzido, visto que antes a viabilidade do crédito ou da emissão deveria ser suficiente para obtenção dos recursos de terceiros previstos no plano até 31 de dezembro de 2026 (art. 8º, inc. II, Decreto 10.710/2021).

3. O Decreto 11.467/2023

O conteúdo do Decreto 11.467/2023 pode ser dividido em três principais blocos: (i) a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico; (ii) apoio técnico e financeiro da União; e (iii) alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União.

3.1. A prestação regionalizada

A prestação regionalizada envolve a integração de um ou mais componentes do serviço público de saneamento em região composta por mais de um Município, sendo permitida a prestação dos serviços integrados por mais de um prestador para obtenção de ganhos de escala e sustentabilidade econômico-financeira (art. 49, inc. XIV, da Lei 11.445/2007). Ela poderá ser estruturada das seguintes formas:

(i) Região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião: agrupamento de Municípios necessariamente limítrofes. A estrutura será instituída por lei complementar estadual (inciso I do art. 6º);

(ii) Unidade regional: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes. A estrutura será instituída por Lei ordinária estadual (inciso II do art. 6º);

(iii) Bloco de referência: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes. Como regra, a estrutura será estabelecida por meio de resoluções do Comitê Interministerial de Saneamento Básico (CISB). Mas na falta de resolução, a União terá competência subsidiária para regular a estrutura. Ainda, enquanto a resolução não for editada, convênios de cooperação e consórcios intermunicipais, formalizados na forma da Lei 11.107/2005, serão considerados estruturas de prestação regionalizada, desde que o Estado não tenha aprovado lei instituindo “região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião” e “unidade regional” (inciso III e §§ 4º e 5º do art. 6º);

(iv) Região integrada de desenvolvimento (Ride): essa estrutura será análoga à região metropolitana, porém estará situada em mais de uma unidade federativa e será instituída por lei complementar federal (inciso IV do art. 6º).

Prevê-se que a gestão associada dos chefes dos Poderes Executivos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em caso de convênio de cooperação, dispensa autorização legal (§ 8º, art. 6º) e a criação de órgãos colegiados e outras estruturas de governança federativa pelos convênios, mesmo sem a constituição de pessoa jurídica (§ 9º, art. 6º).

Importante destacar a vedação à adesão de outros Municípios ao mesmo procedimento licitatório quando homologada a licitação para concessão dos serviços de saneamento, ainda que integrem a mesma estrutura de prestação regionalizada (§ 18, art. 6º).

Por fim, o ponto que tem gerado mais discussão está relacionado à possibilidade de entidades que integrem a administração de estado que envolva um dos municípios da estrutura de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, prestarem diretamente o serviço, sem a necessidade de prévia licitação. Segundo o decreto, a entidade dependeria apenas de autorização da entidade de governança interfederativa, de anuência da entidade reguladora e de comprovação da capacidade econômico-financeira (inciso I e §§ 16 e 17 do art. 6º). A discussão gira em torno da possível ausência de adequação do dispositivo às diretrizes estabelecidas pela Lei 14.026/2020, que incentivam o investimento da iniciativa privada no setor de saneamento, enquanto o dispositivo propicia a manutenção da situação atual, em que os serviços são prestados predominantemente por empresas estaudais.

3.2. O apoio técnico federal

O art. 10 do Decreto 11.467 estabelece um rol exemplificativo de possibilidades da União prestar apoio técnico e financeiro aos serviços de abastecimento de água potável, de esgotamento sanitário, de limpeza e manejo de resíduos sólidos e de drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.

O apoio poderá alcançar titulares dos serviços públicos de saneamento básico, bem como respectivos Estados, com contratos irregulares, incluindo a possibilidade de utilizarem os recursos/financiamentos para investimentos nos serviços durante o período de transição para prestação regular, desde que comprovem a regularização até o dia 31 de dezembro de 2025 (art. 11). Em caso de descumprimento do prazo, o titular terá de ressarcir o capital utilizado para o investimento.

O novo decreto incentiva a modicidade tarifária, visto que para escolha da alocação dos recursos, serão priorizados os projetos de licitações que adotem como critério de seleção a modicidade tarifária e a antecipação da universalização do serviço de saneamento (art. 16).

3.3. Regras para financiamentos e alocação de recursos públicos federais

O Decreto 11.467 traz disposições de incentivo à prestação regionalizada. O art. 7º reitera as condições para alocação de recursos públicos federais e dos financiamentos já estabelecidas no art. 50 da Lei 11.445/2007. Contudo, o decreto afasta algumas das condições nos casos em que a alocação dos recursos ou financiamento seja realizada até 31 de dezembro de 2025.

Conforme o art. 15, as condições que foram excluídas são aos dos incisos VII, VIII e IX do art. 50 da Lei 11.445: (i) a necessidade de estruturação da prestação regionalizada; (ii) a necessidade de adesão pelos titulares dos serviços públicos de saneamento básico à estrutura de governança, nos casos de unidade regional de saneamento básico, blocos de referência e gestão associada; e (iii) a necessidade de constituir entidade de governança federativa.

Além disso, o parágrafo único do art. 15 do decreto criou mais uma exceção à regra do art. 50, nesse caso sem a especificação de prazo limite para sua aplicação. Os casos que envolverem municípios que tenham prestação delegada por meio de contratos de programa (firmados até a publicação do decreto), contratos de concessão ou contratos de parcerias público-privadas (firmados até a publicação do decreto ou cuja concessão ou parceria público-privada tenha sido licitada, ou submetida à consulta pública ou seja objeto de estudos já contratados por instituições financeiras federais) não precisarão cumprir as condições dos incisos VII, VIII e IX do art. 50, independente da data em que os recursos/financiamentos sejam alocados.

Ainda em relação aos recursos/investimentos destinados às prestações regionalizadas, o § 1º do art. 7º confere prioridade à destinação dos recursos não onerosos da União para investimentos:

(i) que viabilizem a prestação de serviços regionalizada, por meio de blocos regionais, quando não for possível apenas com recursos oriundos de tarifas ou taxas, mesmo após o agrupamento com outros Municípios do Estado; e

(ii) que atendam Municípios com maiores déficits de saneamento cuja população não tenha capacidade de pagamento compatível com a viabilidade econômico-financiera dos serviços.

3.4. O incentivo às PPPs

Uma última mudança que merece destaque está relacionada ao limite de 25% do valor do contrato como limite para as subdelegações dos serviços de saneamento a terceiros. Diante das dúvidas suscitadas em relação ao conteúdo do art. 11-A da Lei 11.445/2007, o Decreto 11.467, no art. 5º, § 4º, afasta o limite em referência das PPPs, admitindo a utilização mais ampla dessas modalidades concessórias.

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Guilherme Reisdorfer
Guilherme Dias Reisdorfer
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela USP. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Nicole Mendes Müller
Nicole Mendes Müller
Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Guilherme Reisdorfer
Guilherme Dias Reisdorfer
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela USP. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Nicole Mendes Müller
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Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.