O art. 20 da Lei 14.133/2021 (a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos) inaugurou, na legislação brasileira, a vedação explícita às compras, pela Administração Pública, de “artigos de luxo”.
Estabeleceu que a Administração, ao adquirir bens de consumo para atendimento das suas necessidades, deverá escolher entre itens “de qualidade comum”, “não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam”. E previu que os três poderes deverão definir, em regulamento, “os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo”.
A redação é a seguinte:
Art. 20. Os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam, vedada a aquisição de artigos de luxo.
§ 1º Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário definirão em regulamento os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo.
§ 2º A partir de 180 (cento e oitenta) dias contados da promulgação desta Lei, novas compras de bens de consumo só poderão ser efetivadas com a edição, pela autoridade competente, do regulamento a que se refere o § 1º deste artigo.2
§ 3º (VETADO).3
A Lei não detalhou o que seriam artigos de luxo, nem o que seriam itens de qualidade comum; atribuiu às Administrações dos três Poderes a competência para detalhamento das duas categorias de bens de consumo. No exercício dessa competência, a Presidência da República editou o Decreto Federal 10.818/2021, em que estabeleceu critérios para distinção entre bens de luxo e bens de qualidade comum no âmbito da Administração Pública federal e para utilização de recursos públicos da União.4
Segundo o art. 2º do Decreto 10.818, bem de luxo é o “bem de consumo com alta elasticidade-renda da demanda”, identificável por meio de características como ostentação, opulência, forte apelo estético e requinte (inciso I, alíneas); bem de qualidade comum, por sua vez, é o “bem de consumo com baixa ou moderada elasticidade-renda da demanda” (inciso II).
O critério de distinção é econômico (econométrico). O Decreto 10.818 utiliza (ou pretende utilizar) o conceito de elasticidade para definir juridicamente o bem de luxo e distingui-lo do bem de qualidade comum.
Em Economia, elasticidade é uma medida para a resposta dos compradores e vendedores às mudanças das condições do mercado.5 Em geral, as pessoas compram mais bens quando seu preço é menor ou quando a sua renda é maior (por exemplo), e à dimensão desse movimento da demanda atribui-se o nome de “elasticidade”.
Por definição, a elasticidade consiste em “uma medida de quão ‘sensível’ é a demanda com relação às variações de preço ou de renda”,6 o que parte da premissa de que as variações na demanda de determinado bem dependem da mudança no preço desse bem, na renda dos consumidores ou no preço de outro bem.7
Com isso, surgem as relações de elasticidade-preço da demanda, que mede a disposição dos consumidores à aquisição de um bem à medida que seu preço aumenta; de elasticidade-renda da demanda, que afere a variação da quantidade demandada de um bem à medida que a renda do consumidor varia; e de elasticidade-cruzada da demanda, que mede quanto a quantidade demandada de um bem responde às alterações no preço de um outro bem.8
O Decreto 10.818 pretendeu utilizar o conceito de elasticidade-renda da demanda (que descreve como a quantidade demandada reage a uma variação na renda do consumidor), conceituando-a, no art. 2º, inciso IV, como a “razão entre a variação percentual da quantidade demandada e a variação percentual da renda média” (também é esta a definição formal em Economia).
Aludiu aos bens de luxo como aqueles “com alta elasticidade-renda da demanda”, na linha dos economistas, que observam que os bens de luxo “tendem a apresentar elevada elasticidade-renda, porque os consumidores sabem que podem passar sem eles se sua renda for baixa demais”.9
Em Economia, bens de luxo são bens supérfluos, não necessários, que respondem intensamente às variações de renda dos consumidores, de modo que o aumento da renda conduz ao aumento ainda maior da demanda, enquanto a diminuição da renda conduz à diminuição, também maior, da demanda.
Assim, para os economistas, os bens de luxo “são bens cuja elasticidade-renda da demanda é maior que 1”, significando que “um aumento de 1% na renda conduz a um aumento de mais de 1% na demanda”.10 São bens que reagem muito bem a variações de renda da população. Bastaria isso para a sua identificação como bens de luxo, para os economistas.
Os bens qualidade comum,11 por sua vez, apresentam menor elasticidade-renda, porque são consumidos mesmo quando a renda do consumidor é baixa. Isto é, um aumento ou diminuição da renda do consumidor não afeta tão intensamente a demanda pelo bem de qualidade comum, e a proporção de aumento da demanda é menor do que a da renda. Logo, esses bens tendem a apresentar elasticidade-renda da demanda menor, mas próxima de 1.
Existem também os bens inferiores, que respondem de forma inversamente proporcional às variações de renda. Quanto a eles, uma renda mais elevada do consumidor diminui a quantidade demandada, e a elasticidade-renda da demanda, nesses casos, é negativa.12 O exemplo é o transporte público brasileiro. A baixa qualidade dos serviços de transporte público conduz à fuga dos usuários que têm condições de arcar com o carro próprio ou compartilhado, de modo que o aumento de renda conduz à redução da demanda específica por esses serviços.
O Decreto 10.818, contudo, vai além. O já referido art. 2º, inc. I, alíneas, prevê que a categoria dos bens de luxo pode ser identificada por características qualitativas tais como ostentação, opulência, forte apelo estético ou requinte. Esses elementos não figuram no conceito econométrico de bem de luxo, que é objetivo. Não obstante, a alusão a essas características é fundamental para delimitar a incidência da vedação à aquisição de bens de luxo pela Administração Pública.
A relevância está em que autorizar a aquisição de determinados bens que, embora apresentem elasticidade-renda da demanda maior do que 1 (o que seria suficiente para defini-los como bens de luxo em Economia – conforme referido acima), são indispensáveis para o atendimento de necessidades básicas da Administração.
É o que pode ocorrer, por exemplo, com automóveis. Um estudo do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada identificou que a elasticidade-renda da demanda de automóveis no Brasil, nos anos de 1990, variava entre 1,1 e 1,5.13 Contudo, ninguém ousaria afirmar que esse valor de elasticidade-renda da demanda, maior do que 1, impediria a aquisição de automóveis pela Administração Pública, diante da vedação à aquisição de bens de luxo. Afinal, a Administração necessita de automóveis. Não necessita de automóveis de luxo, que podem ser identificados por características superiores tais como ostentação, opulência, forte apelo estético ou requinte; mas necessita de automóveis.
A solução, do nosso ponto de vista, está em acentuar um critério simples, que é apresentado pela própria Lei 14.133 e que já poderia ser extraído do nosso ordenamento jurídico. Trata-se do critério da suficiência.
A Lei 14.133, no referido art. 20, previu o critério da suficiência quando aludiu à aquisição de bens de consumo de qualidade “não superior à necessária” para o cumprimento das finalidades da aquisição.
O critério é significativo. Implica a vedação à aquisição de tudo o que for dispensável para a Administração, à luz das suas necessidades específicas. O critério permite compreender, por exemplo, o art. 4º, inciso II, do Decreto 10.818, que não considera bem de luxo aquele bem de consumo que “tenha as características superiores justificadas em face da estrita atividade do órgão ou entidade”. Isto é, um determinado bem de consumo pode apresentar elasticidade-renda da demanda maior que 1, ou mesmo características tais como ostentação, opulência, forte apelo estético ou requinte, mas não se enquadrar na vedação à aquisição de bens de luxo.
O exemplo mais caricato está na aquisição de itens para abastecer um jantar oferecido pelo Itamaraty à comitiva de um governante de país estrangeiro. As circunstâncias do jantar podem justificar a aquisição de itens de qualidade superior, de maior requinte, de preço mais elevado; e essas aquisições serão necessárias para o sucesso daquela recepção e cerimonial específicos.
Cabe uma última digressão. Na vigência da Constituição Federal de 1988, jamais competiu à Administração Pública optar pela aquisição de bens de consumo de qualidade superior àquela indispensável para atendimento das suas necessidades, notadamente a aquisição de artigos de luxo.
Seria (é) incompatível com o princípio republicano o dispêndio de recursos públicos sem o correspondente atendimento a uma necessidade pública. Quer dizer, se há recursos públicos disponíveis, o princípio republicano exige a sua administração em favor do Povo, o que implica não admitir nenhum gasto que não se traduza em um benefício direto ou indireto para o Povo. E seria (é) uma inversão de prioridades, incompatível com a moralidade administrativa, a aquisição de bens de qualidade superior, tais como os artigos de luxo, quando a população brasileira é afligida por enormes carências na prestação dos serviços públicos e na efetivação dos direitos fundamentais.
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1 1 Publicado originalmente no JOTA: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lei-delicitacoes-artigos-de-luxo-administracao-publica-01112021 (acesso em 04.11.21).
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2 Esse prazo se encerrou no dia 28 de setembro de 2021, mesmo dia da publicação do Decreto 10.818.
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3 O art. 20, § 3º, foi vetado; previa que “Os valores de referência dos três Poderes nas esferas federal, estadual, distrital e municipal não poderão ser superiores aos valores de referência do Poder Executivo federal”. Segundo as razões de veto, “em que pese a boa intenção do legislador, o dispositivo, ao limitar a organização administrativa e as peculiaridades dos demais poderes e entes federados, viola o princípio da separação dos poderes, nos termos do art. 2º da Constituição da República, e do pacto federativo, inscrito no art. 18 da Carta Magna.”
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4 O Decreto foi editado com fundamento no art. 84, inc. IV, da Constituição Federal, de modo que se aplica estritamente à Administração Pública Federal e à utilização dos seus recursos. Não obstante, é rotineiro que as demais Administrações (estadual, distrital, municipal) se valham das normas produzidas em âmbito federal para orientar sua conduta.
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5 N. GREGORY MANKIW, Introdução à economia, São Paulo: Cenage, 2020, p. 74.
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6 HAL VARIAN, Microeconomia: uma abordagem moderna, Rio de Janeiro: GEN, 2015, p. 273.
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7 Essa premissa é uma simplificação. Outros elementos podem ser agregados à análise.
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8 GREGORY MANKIW, Introdução à economia, p. 75, 81 e 82.
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9 GREGORY MANKIW, Introdução à economia, p. 82.
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10 HAL VARIAN, Microeconomia, 2015, p. 283, com itálico no original. A propósito, ainda segundo o autor, “se a elasticidade da demanda for maior que 1 em valor absoluto, o bem tem uma demanda elástica; se a elasticidade for menor que 1 em valor absoluto, o bem tem uma demanda inelástica; e se a elasticidade for exatamente igual a 1, trata-se de uma demanda de elasticidade unitária” (p. 275).
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11 Não confundir com o conceito legal de bens (e serviços) comuns, que são “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade podem ser objetivamente definidos pelo edital [de licitação], por meio de especificações usuais de mercado” (art. 6º, XIII, da Lei 14.133/2021; art. 1º, parágrafo único, da Lei 10.520/2002). A utilidade desse outro conceito é estabelecer as hipóteses em que a contratação de bens e serviços deve ser feita por pregão.
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12 GREGORY MANKIW, Introdução à economia, p. 82.
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13 Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0558.pdf (acesso em: 23/10/2021).