1. Introdução
A privatização ocorre quando atividades sociais e econômicas atribuídas ao Poder Público passam a ser materialmente executadas por estruturas predominantemente privadas.
Uma das modalidades de privatização é a desestatização de empresas estatais, que ocorre por alienação do controle acionário da sociedade empresarial aos sujeitos privados que atuam no mercado (art. 2º, §1º, alínea “a”, do Decreto 9.491/1997).
Disso surgiu desafio de interpretação sobre o controle externo de contratos firmados originalmente com empresas estatais e que permanecem vigentes após a desestatização.
2. O contrato administrativo firmado com a empresa estatal permanece vigente após a desestatização?
A desestatização não interfere na vigência do contrato. Embora existam outros efeitos, a desestatização não extingue automaticamente os contratos firmados anteriormente.
O TCU já confirmou a vigência dos contratos firmados por dispensa de licitação com empresas estatais desestatizadas. Os incisos VIII e XVI do art. 24 da Lei 8.666/1993, dispensavam a licitação para determinadas contratações a partir de atributos subjetivos ligados à natureza estatal. Ao TCU competiu definir se a perda desses atributos, pela desestatização, implicava a rescisão do contrato.
O TCU entendeu que “podem permanecer em execução até o término de sua vigência, desde que ausente a situação de prejudicialidade especificada na parte final do inciso XI do art. 78 da referida lei“. O precedente também assegurou a possibilidade de prorrogação desde que presente a vantajosidade de existente previsão no contrato e no instrumento convocatório.
No Acórdão 58/2024 o TCU também arquivou representação por entender que a desestatização faz deixar “de existir os pressupostos de constituição e de desenvolvimento desta tomada de contas especial no intuito de obter reparação de dano, seja daquele diretamente sofrido pela sociedade empresária, seja daquele direta ou indiretamente sofrido pelo acionista estatal federal, razão pela qual, não obstante a qualidade das análises anteriores nestes autos, entendo desnecessário o aprofundamento da apreciação da existência do débito (Acórdão 58/2024, Plenário, rel. Min. Bruno Dantas, j. 24.01.2024).
3. O tribunal de contas permanece com competência para fiscalizar contrato com empresa desestatizada?
Segundo o STF, “deve-se proceder à análise acerca da natureza jurídica do recurso, se pública ou eminentemente privada, a considerar sua origem, para que se possa aferir, com exatidão, a necessidade de submissão aos princípios norteadores da gestão pública e, consequentemente, ao crivo do controle externo” (STF, MS 32.703, 2ª T, rel. Min. Dias Toffoli, j. 10.04.2018).
Considerando que a desestatização transforma a natureza jurídica da sociedade empresária, e consequentemente de seus recursos, não subsistirá a competência dos tribunais de contas para o controle externo. Esse é o entendimento da jurisprudência.
No Acórdão 2383/2022, o TCU arquivou representação em desfavor de empresa estatal por conta da desestatização superveniente, “uma vez que a Chesf deixou de integrar o rol de unidades jurisdicionadas desta Corte de Contas, e tendo em vista a natureza da matéria discutida nos autos, há de se reconhecer, nesta oportunidade, a perda de objeto da representação, com a consequente revogação da cautelar anteriormente concedida e o arquivamento dos autos” (TCU, Acórdão 2383/2022-Plenário, rel. Min. Benjamin Zymler, 26.10.202).
Existem precedentes judiciais que reconhecem a perda de objeto de ação de improbidade em virtude da desestatização. O fundamento adotado considera que o eventual prejuízo, sofrido pelos cofres públicos, são incorporados pelos acionistas no momento da desestatização. Isso retira a natureza pública da relação e impede a propositura da ação:
o dano porventura decorrente da irregular contratação não pode corresponder ao valor nela expresso, ou em qualquer parcela deste, visto que, se algum prejuízo disso resultou, ele veio a ser absorvido pelos particulares que adquiriram o controle acionário da Eletropaulo, por isso que incidente sobre o patrimônio daquela então paraestatal. (TJSP, AC 0167866-29.2006.8.26.0000, 11ª CDP, rel. Des. Aroldo Viott, j. 25.02.2014).
Portanto, a desestatização retira a competência do controle externo dos tribunais de contas sobre o contrato.
4. O sancionamento administrativo previsto no contrato permanece aplicável?
O regime sancionatório de cunho imperativo do contrato é incompatível com a desestatização. Porém, as cláusulas penais, de cunho pecuniário, podem ser aplicadas desde que compatibilizadas com os princípios de direito privado.
As empresas estatais consagram regime jurídico híbrido, com elementos tanto de direito público quanto de direito privado.
Essa simbiose faz com que os contratos firmados com empresas estatais contemplem cláusulas penais que visam a assegurar o adimplemento (de caráter privado) e sanções tipicamente de direito administrativo sancionatório, previstas no art. 83 da Lei 13.303.
A desestatização é incompatível com a disciplina sancionatória pública, pois a empresa estatal perde a competência legal conferida pelo art. 83 da Lei 13.303 para sancionar o contratado. Porém, as cláusulas penais meramente pecuniárias, previstas para assegurar o adimplemento, não se tornam incompatíveis com o novo regime, visto que o art. 408 do Código Civil garante ao credor a exigibilidade de cláusula da penal prevista no contrato.
A exigência das cláusulas penais depende de um exame de razoabilidade e compatibilização às peculiaridades do caso concreto. As cláusulas penais de direito civil são convencionadas, mas nos contratos administrativos de estatais as cláusulas penais são impostas de forma unilateral. Por isso que será indispensável uma prévia compatibilização, observando a razoabilidade e a boa-fé, conforme estabelece o art. 413 do Código Civil.
Ocorreu no Estado do Rio Grande do Sul de determinada empresa pleitear sua reabilitação perante a estatal sancionadora após ser sancionada com pena de inidoneidade em multa. Uma das condições para a reabilitação era o pagamento integral da multa. Porém, nesse interim, a empresa estatal foi desestatizada, surgindo impasse sobre o cabimento da reabilitação, ainda que sem a recomposição integral do dano.
A questão foi submetida à Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, que exarou o Parecer 19841/2023, opinando pela reabilitação sem a recomposição do dano, em virtude da desestatização, mas assegurando à empresa desestatizada o direito ao crédito advindo da multa pecuniária.
5. O necessário regime de transição
O regime de transição é alternativa que encontra amparo nos deveres de razoabilidade e proporcionalidade e segurança jurídica. O art. 23 da LINDB prevê a necessidade de estabelecer tal regime quanto a alteração de norma de natureza administrativa, controladora ou judicial estabelecer nova interpretação ou orientação, impondo novo dever ou direito:
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
A normatização do regime de transição deve disciplinar a hipótese de a desestatização ser judicialmente anulada. Afinal, tendo os contratos administrativos transitado por uma fase estritamente privada (desestatização), será necessária uma nova compatibilização sobretudo em respeito à boa-fé e à confiança legítima depositada na continuidade da relação.