1. Introdução: contexto, âmbito de aplicação e objetivos
No dia 21 de agosto de 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu seu aval, de forma unânime, à Recomendação nº 140. O texto, inicialmente apresentado pela Seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e posteriormente aprimorado, visa a incentivar a adoção de métodos extrajudiciais de resolução de conflitos pelos órgãos do Poder Judiciário, notadamente os consensuais, para lidar com situações envolvendo os contratos administrativos por eles firmados.
Conforme exposto nas considerações iniciais da própria Recomendação, a proposição aprovada alinha-se com a crescente tendência da Administração Pública em abraçar métodos consensuais de resolução de conflitos. Isso pode ser observado, por exemplo, na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, na Lei de Mediação e Autocomposição Administrativa, na Lei de Arbitragem e no Código de Processo Civil, bem como na própria Constituição Federal. Além disso, essa abordagem também ensejou iniciativas como a criação da Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos do Tribunal de Contas da União (TCU), no início de 2023.
O próprio CNJ já vinha defendendo uma aproximação entre o ideal consensual e a Administração Pública. Em 2010, o órgão lançou a Resolução nº 125, que instaurou a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses, buscando aprimorar os mecanismos cooperativos de resolução de disputas dentro do âmbito do Poder Judiciário. Movendo-se nessa mesma direção, o CNJ emitiu a Recomendação nº 100, em 16 de junho de 2021, incentivando a aplicação de métodos consensuais para tratar de questões relacionadas ao direito à saúde, especialmente considerando os desafios derivados da pandemia de Covid-19. Lançou também a Recomendação nº 120, de 28 de outubro de 2021, que aconselha o tratamento apropriado de controvérsias de cunho tributário, sempre que possível recorrendo à via da autocomposição.
Ou seja, com a nova norma, o CNJ leva as diretrizes de autocomposição para a atuação administrativa do Poder Judiciário. Esse movimento reafirma postura em prol do estímulo ao diálogo e à colaboração como meio de solucionar conflitos, trazendo ainda mais sustentação a um movimento que já se mostra presente nas bases legais e diretrizes administrativas do país.
2. Previsões e amplitude do âmbito de aplicação da norma
Em suma, quanto aos sujeitos, é previsto que os órgãos do Poder Judiciário – na atuação administrativa – estão autorizados a empregar métodos de resolução consensual de conflitos, naquelas matérias relativas aos contratos administrativos (art. 1º, caput e § 1º). A norma também possibilita acordos sobre as sanções administrativas citadas nos arts. 156, 162 e 163 da Lei n. 14.133/2021 e nos arts. 86 a 88 da Lei n. 8.666/1993 – admitindo-se, nesses casos, a redução ou a isenção de uma ou mais sanções aplicadas (art. 4º).
Tratando-se de direitos patrimoniais disponíveis, prevê-se a aplicação do parágrafo único do art. 151 da Lei 14.133/2021 (art. 1º, § 4º) – o que incorpora a adoção de métodos como a arbitragem, mediação, conciliação e os comitês de prevenção e resolução de controvérsias (dispute boards). O ato normativo não contém outras referências a tais métodos, mas a remissão ao dispositivo legal é eloquente.
O momento da propositura, por sua vez, pode se dar na fase extrajudicial ou no curso de ação judicial (art. 1º, § 1º), por iniciativa do Poder Judiciário ou do próprio particular.
Em relação ao âmbito do acordo, este é delimitado pelo processo administrativo destinado a apurar a inexecução do contrato ou procedimento administrativo específico para celebração do acordo, no caso de encerramento prévio do primeiro (art. 1º, § 2º). Adicionalmente, é possibilitada a formação de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, seguindo o modelo do art. 32 da Lei de Mediação (art. 1º, § 4º).
O resultado do acordo deve ensejar obrigações certas, líquidas, determinadas e exigíveis, cabendo exceções, desde que devidamente fundamentadas (art. 3º, caput e § 3º). Dentro disso, o particular deverá assumir a responsabilidade pela inexecução do contrato, de forma clara e detalhada, cabendo a estipulação de multa ou outra espécie de cominação no caso de descumprimento contratual (art. 3º, §§ 2º e 3º).
Como efeito, o acordo não exime o particular de reparar integralmente o dano causado, embora se admita composição sobre forma, prazo e modo do respectivo cumprimento obrigacional (art. 5º).
O acordo, no entanto, é condicionado à homologação pela respectiva autoridade máxima do órgão do Poder Judiciário (art. 6º), que deve analisar se foram cumpridos critérios da proporcionalidade, da equanimidade e da eficiência (art. 7º), bem como a vantajosidade ao interesse público em relação ao ajuizamento de ação judicial (art. 2º).
Por fim, ainda é possibilitada a regulamentação do procedimento de adoção dos métodos consensuais de solução de conflitos por meio de ato normativo próprio pelos órgãos do Poder Judiciário (art. 1º, § 5º).
Diante disso, é notável a amplitude de aplicação da norma, que se estende desde o objeto e a matéria até os legitimados para propositura, incluindo o momento de celebração do acordo.
3. Manifesta relação com a LINDB
Como dito anteriormente, a Recomendação nº 140 do CNJ relaciona-se de maneira vicinal com a lógica normativa consolidada na LINDB, referenciando-a diretamente em suas previsões e adotando “a orientação pragmática, consequencialista e efetiva positivada nos arts. 20 a 30”.
Dentre tais dispositivos, o ponto central da Recomendação se apoia no art. 26 da LINDB, que possibilita a celebração de compromissos entre os entes públicos e os interessados, para a eliminação de irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público.
De um lado, a utilização desses meios, além de reaproximar o cidadão da administração pública, consubstancia uma busca pela eficiência administrativa, em consonância ao previsto no art. 37 da Constituição-.
De outro lado, garante ao gestor público maior segurança na sua atividade, especialmente perante órgãos de controle que, por vezes, podem não encarar de maneira favorável a adoção de métodos de solução de conflitos além da esfera judicial.
A consolidação, expressa na Recomendação nº 140 do CNJ, da orientação no sentido de adotar métodos de resolução consensual de conflitos pelos órgãos do Poder Judiciário, é um passo significativo em ambos sentidos. Assim, permite a busca por soluções, nas relações entre a Administração Pública e privados, sob o manto da lei, mas para além do texto da lei.
Ainda, como observado, a Recomendação prevê hipóteses nas quais o gestor público pode, de maneira fundamentada, firmar acordos com cláusulas excepcionais – como a inserção de obrigações incertas ou não determinadas (§ 3º, art. 3º). Nesse aspecto, parece também inspirar-se na LINDB, a qual busca trazer maior espaço de discricionariedade para que autoridades administrativas busquem soluções para problemas concretos, ao passo em que reforça que o exercício dessa discricionariedade deve cumprir com o respetivo ônus argumentativo (art. 20, em especial) – requisito também abordado na Recomendação.
Assim sendo, a Recomendação nº 140 é repleta de remissões à LINDB e a seu espírito. É mais um exemplo do movimento de oxigenação no direito brasileiro promovido pelas alterações da Lei 13.655/2018.
4. Reconhecimento de disponibilidade de interesses patrimoniais ligados à aplicação de sanções em contratos administrativos
O art. 4º da Recomendação nº 140 determina que a possibilidade de acordo abrange todas as sanções previstas nas Leis 8.666/93 e 14.133/21. O texto também faz referência aos artigos das leis de licitações que tratam de procedimentos e de critérios para aplicação e dosimetria de sanções. Assim, seguindo a tendência geral da Recomendação, há amplo espaço para utilização de acordos em matéria sancionatória.
Nesse sentido, a Recomendação auxilia na superação de um dogma que, apesar da reforma da LINDB, ainda é por vezes referido como suposto obstáculo para acordos administrativos: a indisponibilidade do interesse público.
O CNJ demonstra que a consensualidade pode ser o melhor meio para se atingir as finalidades pretendidas pela atuação administrativa. As prerrogativas e pretensões sancionatórias no direito administrativo podem ser percebidas como mecanismos para consecução dos objetivos da atuação pública – e, portanto, podem ser dispensadas ou mitigadas caso a via consensual gere mais benefícios do que a aplicação pura e simples da sanção.
Logo, a Recomendação nega a ideia de que as prerrogativas sancionatórias são decorrência necessária do interesse público – que, por sua suposta indisponibilidade, levaria à indisponibilidade também das pretensões sancionatórias e impediria eventual acordo.
Por remissão ao art. 163 da Lei 14.133, o art. 4º da Recomendação também faz referência à extinção antecipada de sanções de impedimento de contratar ou declaração de inidoneidade – mecanismo que a Lei denominou de reabilitação.
A própria Lei 14.133 definiu, de modo aberto, critérios cumulativos para a reabilitação.
Nessa hipótese, o acordo pode criar procedimentos para reabilitação, baseando-se nos parâmetros definidos no art. 163 da Lei 14.133. A via consensual permite a densificação dos amplos critérios destinados à reabilitação, com a definição de obrigações claras para o contratado que deseja extinguir antecipadamente a sanção.
Essa possibilidade de utilização do acordo não busca substituir a sanção, mas sim criar obrigações e procedimentos que, se devidamente cumpridos, levarão à reabilitação do particular. Trata-se, portanto, de acordo integrativo, destinado a procedimentalizar o provimento administrativo final (a declaração de reabilitação).
5. Considerações finais
A Recomendação nº 140 do CNJ incorpora movimento geral por métodos de resolução extrajudicial de controvérsias, em especial de caráter consensual, e por acordos administrativos no direito brasileiro. Mas vai além da mera previsão de consensualidade: seu texto prevê aplicabilidade ampla, com normas voltadas a garantir segurança jurídica e a discricionariedade do gestor público.
Em síntese, as razões para adoção da consensualidade e de acordos administrativos informam as diversas normas da Recomendação. As referências expressas à LINDB parecem demonstrar que ela se tornou referencial dos valores de consensualismo e de segurança jurídica, assim como ganhou tração no ordenamento.
Por fim, o que se espera a partir de agora é que os órgãos do Poder Judiciário, contemplados pela Recomendação, capitalizem as prerrogativas que lhes foram conferidas e aprofundem a regulamentação do seu conteúdo, adaptando-o às suas próprias particularidades a fim de facilitar a concretização da adoção de métodos adequados de resolução de litígios.