Informativo Eletrônico - Edição 195 - Maio / 2023

ADPF 896 E OS CRITÉRIOS PARA A CONCESSÃO DE PRIVILÉGIOS ÀS ESTATAIS PRESTADORAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS

Mayara Gasparoto Tonin
Jolivê Alves da Rocha Filho

1. Introdução

Recentemente, em mais uma decisão envolvendo a discussão entre  prestação de serviço público e exercício de atividade econômica por estatal, o  STF decidiu que estatal mineira prestadora de serviços de apoio aos órgãos e  entidades da Administração Pública não está sujeita ao regime constitucional  de precatórios.

A decisão colegiada, de relatoria da Min. Rosa Weber, foi proferida no  âmbito da ADPF 896, proposta pelo Governador do Estado de Minas Gerais,  com o objetivo de encerrar constrições patrimoniais à empresa pública. O  requerente sustentou que tais constrições violariam os preceitos constitucionais  fundamentais de igualdade, independência entre os poderes, independência do  Poder Executivo para exercer a direção superior da Administração Pública, sistema orçamentário, eficiência, garantia de pagamento de precatórios por  ordem cronológica e continuidade dos serviços públicos.

A decisão tentou sistematizar a jurisprudência da Corte, reunindo e  apontando critérios objetivos a serem preenchidos pelas empresas estatais que  pretendem se beneficiar de privilégios típicos da Administração Pública direta. A  tentativa, contudo, não cria soluções suficientemente concretas para a  controvérsia que já se arrasta há mais de 20 anos.

2. Atividade econômica e serviço público

A diferença conceitual entre atividades econômicas em sentido estrito e  serviços públicos é conhecida e difundida na doutrina brasileira. Afirma-se que  haveria dois regimes jurídicos distintos estabelecidos na Constituição: um  privado, fundado no art. 173, destinado à atuação do Estado no exercício de  atividade econômica em sentido estrito; e outro público, previsto no art. 175,  destinado à prestação de serviços públicos.1

Assim, as empresas estatais que exploram atividade econômica em  sentido estrito estariam sujeitas ao regime privado do art. 173. Já as estatais  que prestam serviços públicos se enquadrariam no regime público do art. 175.

3. O caso paradigma e a jurisprudência do STF

Com base nessa distinção doutrinária, o STF julgou em 2000,  conjuntamente, quatro Recursos Extraordinários interpostos pelos Correios (RE  220.906/DF, RE 230.072/RS, RE 225.011/MG e RE 229.696/PE), concluindo  que era possível conceder-lhe privilégios típicos da Administração Pública, com  fundamento direto na Constituição. 

Muito embora no caso concreto houvesse previsão legal expressa  acerca da extensão de prerrogativas públicas aos Correios (art. 12 do Decreto Lei 509/1969), o STF entendeu que tais privilégios derivariam do art. 175 da  Constituição. Consolidou a tese de que as estatais prestadoras de serviço  público estariam sujeitas às prerrogativas da Administração Pública direta.2

Diversas empresas estatais recorreram ao STF e pleitearam a  concessão de privilégios fiscais, tributários, processuais. Muitas ganharam,  outras perderam. A jurisprudência do STF dividiu-se em variadas linhas  argumentativas: atuação em ambiente concorrencial, participação de  particulares no quadro societário, dependência de recursos do tesouro, entre  outros.3 Mas não foram estabelecidos critérios objetivos que deveriam ser  observados para a obtenção dessas vantagens em relação às empresas  privadas.  

Nesses mais de 20 anos não se chegou a uma solução única, com a  definição de critérios objetivos. A clareza sobre o assunto diminuiu com o  tempo, dando lugar a decisões casuísticas e pouca segurança jurídica.

4. O julgamento da ADPF 896 e os critérios fixados

No julgamento da ADPF envolvendo empresa pública mineira que presta  “serviços técnicos, administrativos e gerais aos órgãos e entidades da  administração pública direta e indireta” (art. 126 da Lei Estadual 11.406/1994),  o STF concluiu pela inaplicabilidade do regime público de precatórios à estatal.

Além disso, asseverou que, “nos termos da jurisprudência desta Casa,  para se submeterem ao regime constitucional dos precatórios (CF, art. 100), as  empresas públicas e sociedades de economia mista devem preencher três requisitos cumulativos, quais sejam: (i) prestar serviços públicos de caráter  essencial, (ii) em regime não concorrencial e (iii) não ter a finalidade primária  de distribuir lucros”.

O STF consolidou (rectius, estabeleceu) três critérios aparentemente  objetivos para a concessão às empresas estatais de privilégios típicos do  regime de direito público aplicáveis à Administração Pública direta. 

4.1 O primeiro critério: prestação exclusiva de serviço público essencial

Segundo o acórdão, “para uma empresa pública se submeter,  legitimamente, ao regime constitucional dos precatórios, imprescindível que  desenvolva apenas serviços públicos”. Ou seja, não pode haver concomitante  exploração de atividade econômica em sentido estrito pela estatal que pretende  se valer dos privilégios. 

Contudo, por mais objetivo que o critério possa parecer, a dicotomia  entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito é complexa e  mutável. A noção de serviço público é constantemente sujeita a revisões, considerando as transformações fáticas e jurídicas das atividades prestadas  pelo Estado.4

Tanto é assim que, o requisito, se aplicado irrestritamente, excluiria  justamente os Correios do regime jurídico de precatórios ou de qualquer outra  prerrogativa de direito público. Afinal, conforme a própria jurisprudência do STF  (ADPF 46), os Correios possuem dupla atuação: prestam serviço público  (serviço postal) e exploram atividade econômica em sentido estrito (entrega de  encomendas).

4.2 O segundo critério: exercício de atividade em regime de  exclusividade

Ainda segundo o acórdão, “a indevida submissão de empresas públicas  e sociedades de economia mista ao regime constitucional dos precatórios (CF,  art. 100) tem o inequívoco potencial de causar grave desiquilíbrio num mercado  em que vigora a livre concorrência”. Ou seja, a prestação do serviço público  deve se dar em regime não concorrencial.

Não obstante a atuação em regime não concorrencial já ser uma espécie  de privilégio ao agente econômico (seja ele natural, decorrente de poder  econômico ou de arranjo jurídico), o critério também não é objetivamente aferível e depende de parâmetros. No caso, não fica claro se a concorrência  deve ser perfeita, imperfeita, se um oligopólio seria aceitável, nem como a  exclusividade será definida ou diferenciada do regime de competição. A própria  definição de mercado é um conceito econômico, não jurídico – e, portanto, condicionado a diversas e complexas questões de fato.

Por exemplo, o próprio STF já entendeu que o Metrô de São Paulo  possui exclusividade sobre os trilhos, mas atua em ambiente concorrencial,  pois existem outros modais de transporte que competem com ele.5 Posteriormente, entendeu que inexiste concorrência entre diferentes modais e  que o Metrô, portanto, atuaria com exclusividade naquele mercado.6

Nota-se que faltam critérios jurídicos e uniformidade de tratamento para  esses fenômenos econômicos e mercadológicos, de modo que o requisito de  atuação em ambiente não-concorrencial também não é objetivo.

4.3 O terceiro critério: inexistência de finalidade primária lucrativa

Por fim, o acórdão consignou ser “inconciliável com a livre iniciativa e  com o regime concorrencial a submissão de empresas públicas e sociedades  de economia mista ao regime de precatórios quando a finalidade primária das  atividades econômicas desenvolvidas é o lucro”.

Com isso, o STF pretendeu ordenar os fins de determinada sociedade  empresária, conferindo à lucratividade e à distribuição de lucros um tom  negativo – quando, na verdade, a lucratividade é pressuposto de existência da  empresa (mesmo estatal) e a distribuição de dividendos é direito essencial do  acionista (mesmo público).

As estatais precisam ser lucrativas para serem sustentáveis e  alcançarem os seus objetivos sociais. Caso contrário, causarão prejuízos ao  próprio Estado. A finalidade lucrativa é um desenho institucional, é um meio na  consecução dos valores aos quais a estatal se destina.7 A própria forma  empresarial pressupõe a existência de atividade organizada destinada à  obtenção de ganho econômico. 

Além da discussão sobre a necessidade de as estatais serem lucrativas  e distribuírem lucros inclusive ao Poder Público, o terceiro critério também não  possui objetividade. O acórdão não fornece subsídios para a gradação da  importância do lucro. Não se sabe sequer como serão identificadas e muito  menos classificadas as finalidades das estatais.

5. Considerações finais

O STF buscou destrinchar e definir os três critérios que estabeleceu (ou  consolidou, para usar a lógica do acórdão). Mas, apesar de indicar requisitos  (supostamente) objetivos, a decisão não encerra a controvérsia sobre as situações em que as estatais estão sujeitas, de fato, ao regime jurídico de direito público. 

Os critérios fixados no julgamento da ADPF 896 possuem nuances  subjetivas, sem bases normativas nem limitações claras. São desafiados pelo  próprio dinamismo da atuação das estatais, cada vez mais exploradoras de  atividades econômicas e inseridas em ambientes concorrenciais. 

A decisão não garante necessariamente segurança jurídica às estatais.  Eventualmente, o STF terá de enfrentar os problemas derivados dos critérios  adotados. É provável que os requisitos precisem ser adequados, ou ao menos  detalhados, a cada caso concreto, como ocorre há mais de 20 anos.

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1 EROS GRAU, A ordem econômica na Constituição de 1988, São Paulo: Malheiros, 2010, p.  103-109.

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2 RE 220.906/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, j. 16.11.2000, DJ 14.11.2002; ADI  1.642/MG, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 03.4.2008, DJe 19.9.2008; ADPF 513/MA,  Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. 28.9.2020, DJe 06.10.2020.

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3 VERA MONTEIRO; JOLIVÊ ROCHA, Empresas estatais prestadoras de serviços públicos  versus exploradoras de atividades econômicas: uma dicotomia que não tem respaldo no direito  positivo, em MARIO ENGLER PINTO JR.; CRISTINA M. WAGNER MASTROBUONO; BRUNO  LOPES MEGNA (Org.), Empresas estatais. Regime jurídico e experiência prática na vigência  da Lei 13.303/2016, São Paulo: Almedina, 2022, p. 331-355.

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4 Os reflexos da superação da dicotomia entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito para estatais são apresentados em MARÇAL JUSTEN FILHO, A constitucionalidade da Lei 13.303/2016: a distinção entre sociedades estatais “empresárias” e “não empresárias”. Revista Eletrônica da PGE-RJ, vol. 1, n. 1, 2018. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/10.

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5 AgR na RCL 29.637, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 30.06.2020, DJe 23.10.2020.

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6 Referendo da Medida Cautelar na ADPF 524, Rel. Min. Edson Fachin, Relator para o Acórdão  Min. Alexandre de Moraes, j. 13.10.2020, DJe 23.11.2020.

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7 A publicização do regime das estatais ainda desvirtuaria sua legítima finalidade empresarial, como exposto por RAFAEL SCHWIND, O Estado Acionista: Empresas Estatais e Empresas Privadas com Participação Estatal, São Paulo, Almedina, 2017, p. 76.

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8 FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO; MARIANA FONTÃO ZAGO, Limites da Atuação  do Acionista Controlador nas Empresas Estatais: Entre a Busca do Resultado Econômico e a  Consagração das Suas Finalidades Públicas. RDPE – Revista de Direito Público da Economia,  v. 49, ano 13, Belo Horizonte, Fórum, jan./mar. 2015, pp. 79-94.

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Mayara Gasparoto Tonin
Mayara Gasparoto Tonin
Mestre em Direito Comercial pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Jolivê Rocha
Jolivê Alves da Rocha Filho
Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.                                                                                              
Mayara Gasparoto Tonin
Mayara Gasparoto Tonin
Mestre em Direito Comercial pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Jolivê Rocha
Jolivê Alves da Rocha Filho
Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.