1. Introdução
Recentemente, em mais uma decisão envolvendo a discussão entre prestação de serviço público e exercício de atividade econômica por estatal, o STF decidiu que estatal mineira prestadora de serviços de apoio aos órgãos e entidades da Administração Pública não está sujeita ao regime constitucional de precatórios.
A decisão colegiada, de relatoria da Min. Rosa Weber, foi proferida no âmbito da ADPF 896, proposta pelo Governador do Estado de Minas Gerais, com o objetivo de encerrar constrições patrimoniais à empresa pública. O requerente sustentou que tais constrições violariam os preceitos constitucionais fundamentais de igualdade, independência entre os poderes, independência do Poder Executivo para exercer a direção superior da Administração Pública, sistema orçamentário, eficiência, garantia de pagamento de precatórios por ordem cronológica e continuidade dos serviços públicos.
A decisão tentou sistematizar a jurisprudência da Corte, reunindo e apontando critérios objetivos a serem preenchidos pelas empresas estatais que pretendem se beneficiar de privilégios típicos da Administração Pública direta. A tentativa, contudo, não cria soluções suficientemente concretas para a controvérsia que já se arrasta há mais de 20 anos.
2. Atividade econômica e serviço público
A diferença conceitual entre atividades econômicas em sentido estrito e serviços públicos é conhecida e difundida na doutrina brasileira. Afirma-se que haveria dois regimes jurídicos distintos estabelecidos na Constituição: um privado, fundado no art. 173, destinado à atuação do Estado no exercício de atividade econômica em sentido estrito; e outro público, previsto no art. 175, destinado à prestação de serviços públicos.1
Assim, as empresas estatais que exploram atividade econômica em sentido estrito estariam sujeitas ao regime privado do art. 173. Já as estatais que prestam serviços públicos se enquadrariam no regime público do art. 175.
3. O caso paradigma e a jurisprudência do STF
Com base nessa distinção doutrinária, o STF julgou em 2000, conjuntamente, quatro Recursos Extraordinários interpostos pelos Correios (RE 220.906/DF, RE 230.072/RS, RE 225.011/MG e RE 229.696/PE), concluindo que era possível conceder-lhe privilégios típicos da Administração Pública, com fundamento direto na Constituição.
Muito embora no caso concreto houvesse previsão legal expressa acerca da extensão de prerrogativas públicas aos Correios (art. 12 do Decreto Lei 509/1969), o STF entendeu que tais privilégios derivariam do art. 175 da Constituição. Consolidou a tese de que as estatais prestadoras de serviço público estariam sujeitas às prerrogativas da Administração Pública direta.2
Diversas empresas estatais recorreram ao STF e pleitearam a concessão de privilégios fiscais, tributários, processuais. Muitas ganharam, outras perderam. A jurisprudência do STF dividiu-se em variadas linhas argumentativas: atuação em ambiente concorrencial, participação de particulares no quadro societário, dependência de recursos do tesouro, entre outros.3 Mas não foram estabelecidos critérios objetivos que deveriam ser observados para a obtenção dessas vantagens em relação às empresas privadas.
Nesses mais de 20 anos não se chegou a uma solução única, com a definição de critérios objetivos. A clareza sobre o assunto diminuiu com o tempo, dando lugar a decisões casuísticas e pouca segurança jurídica.
4. O julgamento da ADPF 896 e os critérios fixados
No julgamento da ADPF envolvendo empresa pública mineira que presta “serviços técnicos, administrativos e gerais aos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta” (art. 126 da Lei Estadual 11.406/1994), o STF concluiu pela inaplicabilidade do regime público de precatórios à estatal.
Além disso, asseverou que, “nos termos da jurisprudência desta Casa, para se submeterem ao regime constitucional dos precatórios (CF, art. 100), as empresas públicas e sociedades de economia mista devem preencher três requisitos cumulativos, quais sejam: (i) prestar serviços públicos de caráter essencial, (ii) em regime não concorrencial e (iii) não ter a finalidade primária de distribuir lucros”.
O STF consolidou (rectius, estabeleceu) três critérios aparentemente objetivos para a concessão às empresas estatais de privilégios típicos do regime de direito público aplicáveis à Administração Pública direta.
4.1 O primeiro critério: prestação exclusiva de serviço público essencial
Segundo o acórdão, “para uma empresa pública se submeter, legitimamente, ao regime constitucional dos precatórios, imprescindível que desenvolva apenas serviços públicos”. Ou seja, não pode haver concomitante exploração de atividade econômica em sentido estrito pela estatal que pretende se valer dos privilégios.
Contudo, por mais objetivo que o critério possa parecer, a dicotomia entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito é complexa e mutável. A noção de serviço público é constantemente sujeita a revisões, considerando as transformações fáticas e jurídicas das atividades prestadas pelo Estado.4
Tanto é assim que, o requisito, se aplicado irrestritamente, excluiria justamente os Correios do regime jurídico de precatórios ou de qualquer outra prerrogativa de direito público. Afinal, conforme a própria jurisprudência do STF (ADPF 46), os Correios possuem dupla atuação: prestam serviço público (serviço postal) e exploram atividade econômica em sentido estrito (entrega de encomendas).
4.2 O segundo critério: exercício de atividade em regime de exclusividade
Ainda segundo o acórdão, “a indevida submissão de empresas públicas e sociedades de economia mista ao regime constitucional dos precatórios (CF, art. 100) tem o inequívoco potencial de causar grave desiquilíbrio num mercado em que vigora a livre concorrência”. Ou seja, a prestação do serviço público deve se dar em regime não concorrencial.
Não obstante a atuação em regime não concorrencial já ser uma espécie de privilégio ao agente econômico (seja ele natural, decorrente de poder econômico ou de arranjo jurídico), o critério também não é objetivamente aferível e depende de parâmetros. No caso, não fica claro se a concorrência deve ser perfeita, imperfeita, se um oligopólio seria aceitável, nem como a exclusividade será definida ou diferenciada do regime de competição. A própria definição de mercado é um conceito econômico, não jurídico – e, portanto, condicionado a diversas e complexas questões de fato.
Por exemplo, o próprio STF já entendeu que o Metrô de São Paulo possui exclusividade sobre os trilhos, mas atua em ambiente concorrencial, pois existem outros modais de transporte que competem com ele.5 Posteriormente, entendeu que inexiste concorrência entre diferentes modais e que o Metrô, portanto, atuaria com exclusividade naquele mercado.6
Nota-se que faltam critérios jurídicos e uniformidade de tratamento para esses fenômenos econômicos e mercadológicos, de modo que o requisito de atuação em ambiente não-concorrencial também não é objetivo.
4.3 O terceiro critério: inexistência de finalidade primária lucrativa
Por fim, o acórdão consignou ser “inconciliável com a livre iniciativa e com o regime concorrencial a submissão de empresas públicas e sociedades de economia mista ao regime de precatórios quando a finalidade primária das atividades econômicas desenvolvidas é o lucro”.
Com isso, o STF pretendeu ordenar os fins de determinada sociedade empresária, conferindo à lucratividade e à distribuição de lucros um tom negativo – quando, na verdade, a lucratividade é pressuposto de existência da empresa (mesmo estatal) e a distribuição de dividendos é direito essencial do acionista (mesmo público).
As estatais precisam ser lucrativas para serem sustentáveis e alcançarem os seus objetivos sociais. Caso contrário, causarão prejuízos ao próprio Estado. A finalidade lucrativa é um desenho institucional, é um meio na consecução dos valores aos quais a estatal se destina.7 A própria forma empresarial pressupõe a existência de atividade organizada destinada à obtenção de ganho econômico.8
Além da discussão sobre a necessidade de as estatais serem lucrativas e distribuírem lucros inclusive ao Poder Público, o terceiro critério também não possui objetividade. O acórdão não fornece subsídios para a gradação da importância do lucro. Não se sabe sequer como serão identificadas e muito menos classificadas as finalidades das estatais.
5. Considerações finais
O STF buscou destrinchar e definir os três critérios que estabeleceu (ou consolidou, para usar a lógica do acórdão). Mas, apesar de indicar requisitos (supostamente) objetivos, a decisão não encerra a controvérsia sobre as situações em que as estatais estão sujeitas, de fato, ao regime jurídico de direito público.
Os critérios fixados no julgamento da ADPF 896 possuem nuances subjetivas, sem bases normativas nem limitações claras. São desafiados pelo próprio dinamismo da atuação das estatais, cada vez mais exploradoras de atividades econômicas e inseridas em ambientes concorrenciais.
A decisão não garante necessariamente segurança jurídica às estatais. Eventualmente, o STF terá de enfrentar os problemas derivados dos critérios adotados. É provável que os requisitos precisem ser adequados, ou ao menos detalhados, a cada caso concreto, como ocorre há mais de 20 anos.
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1 EROS GRAU, A ordem econômica na Constituição de 1988, São Paulo: Malheiros, 2010, p. 103-109.
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2 RE 220.906/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, j. 16.11.2000, DJ 14.11.2002; ADI 1.642/MG, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 03.4.2008, DJe 19.9.2008; ADPF 513/MA, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. 28.9.2020, DJe 06.10.2020.
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3 VERA MONTEIRO; JOLIVÊ ROCHA, Empresas estatais prestadoras de serviços públicos versus exploradoras de atividades econômicas: uma dicotomia que não tem respaldo no direito positivo, em MARIO ENGLER PINTO JR.; CRISTINA M. WAGNER MASTROBUONO; BRUNO LOPES MEGNA (Org.), Empresas estatais. Regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei 13.303/2016, São Paulo: Almedina, 2022, p. 331-355.
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4 Os reflexos da superação da dicotomia entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito para estatais são apresentados em MARÇAL JUSTEN FILHO, A constitucionalidade da Lei 13.303/2016: a distinção entre sociedades estatais “empresárias” e “não empresárias”. Revista Eletrônica da PGE-RJ, vol. 1, n. 1, 2018. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/10.
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5 AgR na RCL 29.637, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 30.06.2020, DJe 23.10.2020.
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6 Referendo da Medida Cautelar na ADPF 524, Rel. Min. Edson Fachin, Relator para o Acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 13.10.2020, DJe 23.11.2020.
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7 A publicização do regime das estatais ainda desvirtuaria sua legítima finalidade empresarial, como exposto por RAFAEL SCHWIND, O Estado Acionista: Empresas Estatais e Empresas Privadas com Participação Estatal, São Paulo, Almedina, 2017, p. 76.
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8 FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO; MARIANA FONTÃO ZAGO, Limites da Atuação do Acionista Controlador nas Empresas Estatais: Entre a Busca do Resultado Econômico e a Consagração das Suas Finalidades Públicas. RDPE – Revista de Direito Público da Economia, v. 49, ano 13, Belo Horizonte, Fórum, jan./mar. 2015, pp. 79-94.