1. Introdução
A CISG (Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias)¹ é aplicável automaticamente sempre que os requisitos dos arts. 1 a 5 são atendidos: ou seja, quando as partes estão localizadas em Estados Contratantes e o contrato envolve compra ou venda internacional de mercadorias.
Contudo, mesmo quando a CISG é aplicável, as partes têm a faculdade de excluir sua aplicação ou modificar suas disposições conforme o art. 6º da Convenção (art. 6º). A forma e os efeitos dessa exclusão ou modificação não são sempre claros, o que gera dúvidas em casos concretos – especialmente quando se trata da aplicação da CISG em contextos de transações internacionais complexas.
2. Aplicabilidade da CISG
A CISG se aplica a contratos de compra e venda de mercadorias entre partes cujos estabelecimentos estão localizados em Estados diferentes, sendo estes Estados Contratantes da Convenção (art. 1º, CISG).
Ainda, a alínea “b” delimita que a CISG pode se aplicar quando as regras de direito internacional privado levarem à aplicação da lei de um Estado Contratante, mesmo que o contrato seja entre partes localizadas em Estados não-Contratantes.
Assim, a Convenção se aplica ainda que as partes não a tenham escolhido expressamente, desde que as normas de direito internacional privado levem à aplicação de um direito de um Estado Contratante, como o Brasil (Leia mais).
O art. 2º estabelece uma série de exclusões da sua aplicação, detalhadas nas alíneas de “a” a “f” (art. 2º, CISG).
O art. 2º estabelece uma série de exclusões da sua aplicação, detalhadas nas alíneas de “a” a “f” (art. 2º, CISG).
A exclusão ou derrogação da CISG é regida pelas próprias regras da Convenção, que define autonomamente sua esfera de aplicação, independentemente da legislação nacional dos Estados Contratantes.
3. Propósitos e efeitos do art. 6º
O art. 6º da CISG estabelece um sistema de “opting out“, conferindo às partes ampla liberdade para excluir a aplicação da Convenção ou modificar suas disposições.² No entanto, essa exclusão ou derrogação só será eficaz se cumprir os requisitos previstos na própria CISG.
3.1. A autonomia das partes
A autonomia das partes é um princípio fundamental da CISG e reflete a liberdade contratual em determinar o conteúdo e a aplicação do contrato. O art. 6º consagra essa autonomia ao permitir que as partes optem por não se submeter à Convenção.³
Assim, a CISG reafirma um princípio geral do direito internacional privado, segundo o qual as partes em um contrato de venda internacional de mercadorias têm o direito de escolher a lei aplicável ao contrato. ⁴
Esse princípio é de grande relevância no contexto da arbitragem internacional, já que as partes frequentemente preferem escolher uma lei que seja mais adequada às suas necessidades específicas, ou até mesmo acordam em não submeter o contrato à CISG.
3.2. Exclusão ou derrogação
O art. 6º permite tanto a exclusão, quanto a derrogação das disposições da CISG (art. 6º, CISG). Enquanto a exclusão da CISG envolve a eliminação total da aplicação da Convenção ao contrato, a derrogação refere-se à modificação de algumas disposições específicas, mantendo outras inalteradas.⁵
A derrogação é limitada, pois a CISG prevê algumas disposições das quais as partes não podem se afastar (v.g. as disposições relacionadas a direito internacional público – arts. 89 a 101).⁶ Assim, as partes têm a flexibilidade de adaptar a CISG às particularidades do contrato, mas dentro de certos limites que garantem a integridade dos princípios fundamentais da Convenção.
4. Formas de exclusão da CISG nos termos do art. 6º
O art. 6º da CISG permite às partes a exclusão da Convenção de forma expressa ou implícita, desde que observadas as disposições da própria Convenção. A exclusão pode ocorrer (i) com a previsão expressa de não incidência da CISG; (ii) com a indicação da lei aplicável de um Estado não signatário; e (iii) caso haja clara incompatibilidade com a CISG.
4.1. Exclusão explícita
A exclusão explícita da CISG ocorre quando as partes fazem uma declaração clara e inequívoca no contrato, indicando que a Convenção não se aplicará.
Importante observar que, para evitar ambiguidades, a cláusula deve ser redigida com precisão, pois uma simples referência à “lei do país A” pode não ser suficiente para excluir a CISG, especialmente se o país escolhido for um Estado Contratante.⁷ Essa opção é a mais clara e direta, sendo menos sujeita a discussões, pois a intenção das partes fica inequívoca – ao contrário da exclusão implícita, que pode gerar dúvidas.
4.2. Exclusão implícita
A CISG não prevê diretamente a exclusão implícita em seu art. 6º. Essa questão foi debatida durante a elaboração da Convenção, pois o texto original da ULIS (Uniform Law on International Sales), que antecedeu a CISG, permitia uma exclusão implícita, mas essa possibilidade foi removida na versão final da CISG.
A exclusão implícita da CISG ocorre quando a escolha da lei aplicável ao contrato indica, de forma indireta, a intenção das partes de excluir a Convenção. Isso pode acontecer, por exemplo, quando as partes escolhem a legislação de um país que não é signatário da CISG. A escolha de uma lei de um Estado não-Contratante é considerada uma clara indicação de que a CISG não se aplicará ao contrato.
Outra forma de exclusão implícita pode ocorrer quando as cláusulas do contrato são contrárias aos princípios da CISG. Nesses casos, mesmo sem uma cláusula expressa de exclusão, a incompatibilidade entre as disposições do contrato e a CISG pode ser interpretada como uma exclusão tácita.
Destaca-se que uma simples referência à lei de um país signatário da CISG, sem mais esclarecimentos, geralmente não é considerada suficiente para excluir a aplicação da Convenção. Isso ocorre porque, ao aderir à CISG, o seu texto passa a fazer parte da legislação interna desses Estados.⁸ A exclusão só será efetiva se for expressamente acordada pelas partes ou se houver uma clara incompatibilidade com as disposições da CISG.
4.2.1. Intenção das Partes de acordo com Artigo 8º CISG
De acordo com o CISG Advisory Council Opinion No 16,⁹ a intenção das partes de excluir a CISG deve ser determinada com base no art. 8º da Convenção. Essa disposição prevê, em geral, os critérios para interpretação da declaração de vontade das partes e das suas condutas (art. 8º, CISG).
Embora a exclusão implícita seja possível, a intenção das partes não deve ser facilmente inferida. Em caso de dúvida, o equilíbrio geralmente deve pender para a aplicação da CISG, já que mesmo em situações de exclusão implícita, a intenção de não aplicar a CISG deve ser manifestada de forma clara e objetiva – durante a celebração do contrato ou posteriormente.¹⁰
A simples escolha da lei de um Estado Contratante da CISG não é suficiente para inferir a exclusão da Convenção, pois essa escolha pode ser considerada como uma referência à legislação interna do Estado, que já incorpora a CISG quando adere a ela. Assim, para que a exclusão implícita seja validada, é necessário um indício claro de que a intenção das partes era, de fato, excluir a aplicação da CISG.
4.2.2. Aplicação prática – Case Law
Em diversos casos, os tribunais têm interpretado a exclusão implícita de maneira cautelosa, levando em consideração a clara intenção das partes, conforme o Art. 8º da CISG. No caso Fertilizantes Tocantins S.A. v. TGO Agric. USA, Inc. (6 de fevereiro de 2023, District Court)¹¹ o tribunal decidiu que a CISG se aplicaria, mesmo sem uma cláusula explícita de exclusão, devido à falta de evidências de que as partes tivessem acordado em exclui-la.
Neste caso, as partes não mencionaram a CISG diretamente, e a escolha da lei aplicável não indicou de maneira inequívoca a intenção de excluí-la. O tribunal analisou o comportamento das partes e concluiu que não havia provas claras de que a exclusão da Convenção fosse parte do acordo, aplicando, portanto, a CISG para resolver a disputa.
Em geral, tribunais¹² tendem a presumir a aplicabilidade da CISG, a menos que haja uma intenção explícita ou uma incompatibilidade clara com a Convenção.
5. Considerações Finais
A CISG faculta às partes a possibilidade de excluir sua aplicação ou modificar suas disposições, conforme o Artigo 6º. Essa exclusão pode ser feita de forma explícita, com cláusulas claras no contrato, ou implícita, quando a escolha da lei aplicável ou a incompatibilidade com os princípios da Convenção indicam a intenção das partes.
Contudo, a exclusão implícita exige mais cautela por parte dos tribunais, devendo-se atentar à intenção das partes conforme os critérios estabelecidos pelo Artigo 8º da CISG. A CISG adota o sistema do opting out, onde sua aplicação é a regra e não do opting in – aplicação da Convenção somente se as partes designarem.
Assim, a autonomia das partes é respeitada, mas dentro de limites estabelecidos pela própria Convenção, assegurando a previsibilidade e a segurança nas transações internacionais.
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¹ CISG BRASIL. A CISG. Disponível em: https://www.cisg-brasil.net/a-cisg-1. Acesso em: 15.12.2024.
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² SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias.
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³ BIANCA, Massimo; BONNEL, Michael; Comentários ao Direito Internacional de Compra e Venda de Mercadorias.
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⁴ FERRARI, Franco. Comentários do Digesto da UNCITRAL sobre o Artigo 6 da CISG no Journal of Law and Commerce (2005-06), v. 25, 1ª Edição.
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⁵ Id. Ibid.
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⁶ Id. Ibid.
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⁷ HONNOLD, John O. Lei Uniforme para Vendas Internacionais sob a Convenção das Nações Unidas de 1980. 3ª ed. (1999).
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⁸ SCHWIND, Rafael. Licitações Internacionais – participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. Belo Horizonte, Fórum, 2022.
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⁹ CISG Advisory Council, Opinião nº 16: Exclusão da CISG conforme o Artigo 6. Disponível em: https://cisgac.com/opinions/cisgac-opinion-no-16/. Acesso em: 15.12.2024.
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¹⁰ PEREIRA, Cesar. Aplicação da CISG às Compras Governamentais em Revija Kopaoničke Škole Prirodnog Prava, v. 2, 2023. Disponível em: https://kopaonikschool.org/wp-content/uploads/2023/11/KOP_Revija_02_2023_WEB.pdf.
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¹¹ Disponível em: https://iicl.law.pace.edu/cisg/case/united-states-february-6-2023-district-court-fertilizantes-tocantins-sa-v-tgo-agric-usa.
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¹² Forestal Guarani, SA v Daros International, Inc. (CISG-online 1779), Easom Automation Systems, Inc v Thyssenkrupp Fabco, Corp (CISG- online 1601), Cedar Petro chemicals, Inc v Dongbu Hannong Chemichal Co, Ltd (CISG-online 1509). Veja mais em: PEREIRA, Cesar. Aplicação da CISG às Compras Governamentais em Revija Kopaoničke Škole Prirodnog Prava, v. 2, 2023. Disponível em: https://kopaonikschool.org/wp-content/uploads/2023/11/KOP_Revija_02_2023_WEB.pdf.