1. Os bancos multilaterais de desenvolvimento
Os Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (BMD) são instituições financeiras internacionais criadas por um conjunto de países com o objetivo de fomentar o progresso econômico e social, sobretudo nos países em desenvolvimento.
Seu papel central é oferecer apoio financeiro e técnico a projetos de infraestrutura, políticas públicas e programas estruturantes que contribuam para a redução de desigualdades e o fortalecimento institucional.
Embora os empréstimos de longo prazo sejam a principal ferramenta de atuação desses bancos, suas funções vão muito além disso.
Os BMD também fornecem assistência técnica, compartilham boas práticas de governança, oferecem garantias para atração de capital privado e, em alguns casos, disponibilizam recursos não reembolsáveis para iniciativas com alto impacto social ou ambiental.
Além disso, eles funcionam como plataformas de diálogo e cooperação internacional, especialmente frente a desafios que ultrapassam as fronteiras nacionais, como as mudanças climáticas ou as crises sanitárias.
Tais instituições são formalmente constituídas por acordos internacionais que definem sua governança, estrutura de capital e regras de operação.
Como os países membros são os responsáveis por aportar o capital inicial, os BMD possuem maior solidez e conseguem captar recursos nos mercados financeiros globais com taxas de juros mais baixas do que aquelas disponíveis para muitos de seus membros mutuários. Com isso, tornam-se capazes de oferecer financiamento em condições mais vantajosas e sustentáveis.
A relevância dos BMD se torna ainda maior diante da escassez de recursos disponíveis para investimentos estruturantes nos países em desenvolvimento. Ao atuar de forma anticíclica, oferecendo crédito em momentos de retração econômica, e ao alavancar parcerias entre setor público e privado, essas instituições cumprem um papel essencial na viabilização de projetos transformadores e no fortalecimento da capacidade dos Estados para implementar políticas públicas duradouras.¹
2. As regras aplicadas aos BMD na Lei de Licitações (Lei 14.133/2021)
2.1. Objetivo dos BMDs
Os bancos multilaterais de desenvolvimento (BMD) são instituições voltadas à promoção do desenvolvimento econômico dos países, por meio da concessão de empréstimos ou doações destinados ao financiamento de obras públicas e à aquisição de bens.
2.2. Natureza e personalidade jurídica de direito internacional dos BMDs
Os BMDs são organizações reconhecidas como sujeitos de direito internacional. Embora sejam criadas por acordos entre Estados soberanos, essas instituições gozam de autonomia funcional e organizacional, não sendo meramente reflexos da vontade estatal.
A Corte Internacional de Justiça (CIJ), ao proferir o parecer consultivo no caso Reparation for Injuries, firmou entendimento de que uma organização internacional pode ser considerada sujeito de direito internacional desde que, cumulativamente: (i) os Estados fundadores tenham manifestado a intenção de dotá-la da competência necessária ao exercício autônomo de suas funções; e (ii) a organização efetivamente goze de autonomia e exerça essas competências de forma independente.²
No caso dos BMDs, como o Banco Mundial, essa autonomia é reforçada por sua independência financeira, já que tais instituições não dependem diretamente de contribuições anuais dos Estados-membros para composição de seus orçamentos. Isso lhes confere maior capacidade para definir suas políticas internas e externas, inclusive no que tange à regulamentação de contratações e à imposição de condições em operações de financiamento internacional.
Com base nos critérios da CIJ e na prática internacional, pode-se afirmar que os BMDs são titulares de direitos e obrigações no plano internacional, sendo dotados de personalidade jurídica internacional e capacidade processual, inclusive para apresentar reivindicações internacionais em defesa de seus interesses institucionais.³
2.3. Previsão legal e hipóteses de aplicação
O § 3º do art. 1º da Lei 14.133/2021 trata das licitações regidas pelas normas dos BMD, permitindo sua adoção desde que estejam previstas em acordos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Poder Executivo Federal.⁴
Esse dispositivo contempla duas hipóteses distintas de aplicação. A primeira refere-se às condições estabelecidas em tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro (inciso I). A segunda abrange as regras previstas em contratos de doação ou financiamento celebrados com instituições financeiras estrangeiras (inciso II). Em ambas as situações, admite-se o afastamento das disposições da Lei 14.133/2021.
Tal contratação deve ser precedida de procedimento administrativo específico. Sua execução está condicionada às disposições previamente estabelecidas no contrato de doação ou de financiamento.
O afastamento das normas da Lei 14.133/2021 pressupõe que a adoção de regras específicas seja uma condição expressa e essencial à celebração do contrato de doação ou financiamento com a instituição estrangeira. Somente se admite a inaplicabilidade da legislação nacional de licitações quando tal requisito estiver claramente estabelecido como condição para o aperfeiçoamento do ajuste internacional.⁵
2.4. Requisitos legais para aplicação das regras dos BMDs
A Lei de Licitações admite a aplicação de normas e procedimentos próprios dos BMD nas fases de seleção e contratação, desde que observados os seguintes requisitos:
I. que tais normas sejam exigidas para a obtenção dos recursos externos;
II. que não contrariem os princípios constitucionais;
III. que estejam previstas no respectivo contrato de empréstimo ou de doação; e
IV. que tenham sido objeto de parecer jurídico favorável emitido pelo órgão jurídico do contratante, previamente à celebração do contrato.
2.5. Licitação internacional e sua relação com os BMDs
O § 3º do art. 1º da Lei 14.133/2021 não trata, especificamente, da licitação internacional — esta, definida no art. 6º, inciso XXXV, do mesmo diploma, sendo disciplinada em dispositivos próprios.
Ainda assim, é comum que as instituições multilaterais prevejam, como condição para a liberação dos recursos, a exigência de licitação internacional para a contratação com o setor privado. Essas exigências visam, geralmente, a assegurar a adoção de práticas e procedimentos consagrados no mercado internacional, promovendo maior integridade e concorrência.⁶
A Lei 14.133/2021 estabelece que a exigência de observância às regras licitatórias internacionais deve estar prevista tanto no acordo internacional celebrado com o BMD quanto no contrato de financiamento ou doação firmado com o ente federado beneficiário.
Ressalte-se que essas normas devem respeitar os princípios constitucionais, ainda que não haja imposição de observância integral à legislação nacional de licitações.
Dessa forma, normas e cláusulas contratuais internacionais que se afastem da legislação brasileira de licitações são consideradas válidas, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos na Constituição Federal.
Por fim, a legislação exige que o parecer jurídico favorável do ente contratante anteceda a formalização do certame.⁷
2.6. Aplicação das diretrizes dos BMDs em contratações públicas
Tomando-se como exemplo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) regem os procedimentos de contratação realizados por beneficiários que utilizam recursos oriundos de doações ou empréstimos, ainda que parciais, concedidos por essas instituições.
Nessas condições, a Administração Pública brasileira, enquanto mutuária, deve conduzir os certames licitatórios em conformidade com as diretrizes estabelecidas pelos referidos bancos, como condição para a liberação dos recursos.
A aplicação dessas normas não se restringe a contratações integralmente financiadas por BMDs. Elas também incidem sobre licitações em que apenas parte dos recursos é oriunda de financiamento internacional.
As diretrizes do BID e do BIRD também se aplicam em casos de financiamento retroativo — isto é, quando a licitação é iniciada antes da assinatura do contrato de empréstimo. Em tais casos, as instituições financeiras examinam os atos já praticados e apenas consideram elegíveis os contratos resultantes de certames que tenham observado suas regras. No entanto, mesmo diante do cumprimento das diretrizes, os BMDs não são obrigados a conceder o financiamento, salvo se houver compromisso contratual específico nesse sentido.
O financiamento retroativo pode ser operacionalizado sob a forma de reembolso, hipótese em que o BMD ressarce a Administração Pública pelos valores já pagos ao contratado.⁸
2.7. Restrições à competitividade e exigências de qualificação
As diretrizes dos BMDs, como as do BID e do BIRD, determinam que as exigências de participação nos certames devem limitar-se ao necessário para assegurar a capacidade do licitante de executar o objeto contratado.
Exigências desproporcionais ou desvinculadas da efetiva capacidade técnica e operacional do interessado são vedadas, por comprometerem a competitividade do processo.
Essa diretriz está em conformidade com o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que veda exigências de qualificação técnica e econômica desnecessárias, e com o art. 9º, inciso I, alínea “a”, da Lei 14.133/2021, que proíbe cláusulas ou condições que restrinjam ou frustrem a competitividade do certame.⁹
Os limites e pressupostos de aplicação das normas internacionais, previstos nos incisos I e II do § 3º do art. 1º da Lei 14.133/2021, não se confundem com os padrões da legislação nacional.
A rigor, a exclusão da aplicação da Lei 14.133/2021em licitações subordinadas a tratados internacionais fundamenta-se no art. 3º, inciso II, do próprio diploma, que afasta sua incidência em casos regidos por legislação própria.
Em geral, os tratados internacionais estabelecem normas de caráter geral, que não regulam exaustivamente situações concretas. Isso não significa que sejam inaplicáveis diretamente, inclusive em matéria de licitações. No entanto, sua abstração muitas vezes exige a complementação por normas internas.
Conforme ensina Marçal Justen Filho, nessas situações, a legislação nacional — inclusive a Lei 14.133/2021 — deve ser aplicada subsidiariamente, nos aspectos compatíveis e não conflitantes com os tratados internacionais. Cabe ao intérprete buscar a harmonização entre a norma interna e o tratado, assegurando a prevalência da vontade e dos objetivos pactuados no instrumento internacional sobre disposições específicas da legislação infraconstitucional.¹⁰
3. A atuação dos BMD na infraestrutura brasileira
A atuação dos BMD na infraestrutura brasileira tem sido importante para viabilizar projetos estruturantes, sobretudo em áreas historicamente negligenciadas ou com menor capacidade de captação de recursos.
Além de ofertarem crédito em condições mais vantajosas, essas instituições têm contribuído para o fortalecimento técnico e institucional de entes subnacionais, promovendo melhorias na governança e na execução de políticas públicas.
Em 2025, o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD – Banco Mundial) anunciou aportes relevantes em projetos brasileiros, voltados à mobilidade urbana e à segurança hídrica. No estado de São Paulo, destinou USD 250 milhões à expansão da Linha 2 do Metrô, abrangendo 8,4 quilômetros e oito novas estações.
No Espírito Santo, investiu USD 97,4 milhões na modernização dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, enquanto em Sergipe foram alocados USD 169 milhões para obras de ampliação da capacidade hídrica em regiões sujeitas à escassez. ¹¹
O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB – Banco dos BRICS) vem atuando com foco social. Na Paraíba, aportou cerca de US 61 milhões em um sistema de abastecimento de água que atenderá 16 municípios do semiárido, beneficiando diretamente mais de 128 mil pessoas.¹² No Distrito Federal, financiou com EUR 94 milhões o projeto Brasília Capital da Iluminação Solar, que visa substituir a iluminação pública por lâmpadas LED e construir uma usina solar de 100 MW para abastecimento do setor público.¹³
Já o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tem mantido sua posição como parceiro estratégico do país. Em 2024, firmou acordo com o BNDES no valor de USD 800 mil para estruturar Parcerias Público-Privadas (PPPs) voltadas ao reflorestamento da Amazônia e geração de créditos de carbono.¹⁴ Além disso, assessorou tecnicamente os estudos de viabilidade da concessão do túnel submerso Santos–Guarujá.¹⁵
Outro exemplo diz respeito a atuação do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) como provedor de garantias parciais de crédito, fundamentais para viabilizar grandes empreendimentos. Exemplo disso é sua participação na Linha 6 do Metrô de São Paulo, com 15,3 km e 15 estações, projeto orçado em USD 4 bilhões.¹⁶ O banco também investiu USD 150 milhões no Sistema Viário Integrado da Bahia, que inclui a ponte Salvador–Ilha de Itaparica, com custo estimado em USD 1,5 bilhão.¹⁷
Tais exemplos evidenciam o papel multifuncional dos BMD no Brasil, que vão desde o financiamento direto à assistência técnica e mitigação de riscos, atuando conforme os princípios constitucionais da administração pública e em consonância com a legislação federal sobre contratações e gestão de recursos públicos.
4. Conclusão
A atuação dos bancos multilaterais de desenvolvimento nos projetos analisados demonstra seu papel como instrumentos relevantes no apoio a empreendimentos de infraestrutura no Brasil.
Ao viabilizar financiamento e apoio técnico, essas instituições contribuem para tirar do papel iniciativas em áreas estratégicas, como mobilidade urbana, saneamento, energia e meio ambiente, articulando diferentes níveis de governo e agentes privados na execução de políticas públicas.
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¹ Atuação do Brasil em Bancos Multilaterais de Desenvolvimento. Governo Federal. Secretaria de Assuntos Internacionais, Planejamento, Desenvolvimento e Orçamento. dez. 2024. p. 10-11.
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² Reparation for Injuries Suffered in the Service of the United Nations, Advisory Opinion of 11 April 1949, ICJ Reports 1949, p. 174, 179.
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³ WILLIAMS-ELEGBE, Sope. Public Procurement and Multilateral Development Banks: Law, Practice and Problems. Oxford and Portland, Oregon: Hart Publishing, 2017, p. 32.
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⁴ ALMEIDA, Thiago Ferreira. A Nova Lei de Licitações e as regras dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento. JOTA, 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/a-nova-lei-de-licitacoes-e-as-regras-dos-bancos-multilaterais-de-desenvolvimento. Acesso em: 14 maio 2025
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⁵ JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 55.
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⁶ JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 59.
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⁷ SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 208.
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⁸ SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 205-206.
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⁹ SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 208.
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¹⁰ JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 58.
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¹¹ World Bank. World Bank and Brazil announce $1 billion initiative to enhance productivity, sustainability, social inclusion. Disponível em: https://www.worldbank.org/pt/news/pressrelease/2025/03/18/world-bank-and-brazil-announce-1-billion-initiative-to-enhance-productivitysustainability-social-inclusion. Acesso em: 10 mai. 2025.
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¹² New Development Bank. Paraiba Water Supply Infrastructure Project. Disponível em: https://www.ndb.int/project/paraiba-water-supply-infrastructure-project/. Acesso em: 19 abr. 2025.
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¹³ New Development Bank. Brasilia Capital of Solar Lighting Project. Disponível em: https://www.ndb.int/project/brasilia-capital-of-solar-lighting-project/. Acesso em: 19 abr. 2025.
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¹⁴ Banco Interamericano de Desenvolvimento. Structuring of Public-Private Partnerships for the recovery of the national forests in the Amazon Basin (BR-T1572). Disponível em: https://www.iadb.org/en/project/BR-T1572. Acesso em: 19 abr. 2025.
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¹⁵ Túnel Submerso Santos-Guarujá – Governo do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.parceriaseminvestimentos.sp.gov.br/projeto-qualificado/tunel-submerso-santosguaruja/. Acesso em: 19 abr. 2025.
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¹⁶ CAF – Banco de Desarrollo de América Latina y el Caribe. Línea 6 del metro de São Paulo (CFC011765). Disponível em: https://www.caf.com/es/quienes-somos/proyectos/cfc011765-linea-6-del-metro-de-sao-paulo/. Acesso em: 19 abr. 2025.
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¹⁷ CAF – Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe. Projeto Sistema Viário Integrado do Estado da Bahia – Ponte Salvador – Ilha de Itaparica (CFA012460). Disponível em: https://www.caf.com/es/quienes-somos/proyectos/cfa012460-proyecto-sistema-vial-integradodel-estado-de-bahia-puente-salvador-isla-de-itaparica/. Acesso em: 19 abr. 2025.