Informativo Eletrônico - Edição 186 - Agosto / 2022

O JULGAMENTO DO ARE 843.989 E AS DISCUSSÕES EM TORNO DO REGIME JURÍDICO APLICÁVEL AOS ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Júlia Venzi Gonçalves Guimarães
João Pedro Lima de Vasconcellos

1. Introdução

Em 18.08.2022, o Supremo Tribunal Federal decidiu o mérito da repercussão geral suscitada no ARE 843.989, firmando entendimento sobre a a  aplicação das disposições da Lei 14.230/21 (que alterou a Lei de Improbidade  Administrativa – Lei 8.429/92), especialmente em relação à necessidade de  comprovação do dolo para configuração da improbidade administrativa e à  aplicação do novo regime prescricional previsto na norma. .

A tese (Tema 1199) foi fixada no sentido de que a Lei 14.230 (i) é  irretroativa com relação aos processos já transitados em julgado; (ii) é  retroativa com relação aos processos em andamento que tratem de atos  ímprobos em modalidade culposa; e (iii) é irretroativa quanto aos prazos gerais  ou intercorrentes. 

2. Caso concreto: INSS vs Rosmêry Terezinha Córdova

Na origem, tratou-se de ação civil pública ajuizada pelo INSS em 2006.  O propósito era condenar a requerida ao ressarcimento de prejuízos ao erário  (art. 10 da Lei 8.429/1992) decorrentes de sua atuação culposa, entre 1994 e  1999, como procuradora do INSS.

As alterações da Lei 14.230 tiveram relevância para o litígio,  notadamente aquelas relacionadas à exclusão da modalidade culposa de  improbidade administrativa e à fixação de novos prazos para a prescrição da pretensão punitiva do Estado. 

Assim, passou-se a questionar se a requerida poderia ser julgada por  ato praticado em modalidade que não mais existe e se o prazo prescricional  poderia substituir o anterior, devendo ser reconhecida a prescrição  intercorrente no caso. 

3. Debate quanto à natureza do regime de improbidade administrativa

Diante do conflito de leis no tempo e das duas questões abrangidas pelo  Tema 1199, sobreveio o debate quanto à natureza do ato de improbidade  administrativa e ao regime jurídico aplicável ao caso concreto.

3.1. Aplicação dos princípios do Direito Penal ao regime da improbidade

Alguns dos ministros afirmaram que o regime da improbidade  administrativa se aproxima do Direito Penal e, por essa razão, seriam  aplicáveis os princípios deste ramo por simetria. Reconheceram a aplicação do  princípio da retroatividade da lei mais benéfica, permitindo que as alterações da  Lei 14.230, mais brandas, favoreçam os réus que respondam por atos  praticados sob a vigência do texto anterior da Lei 8.429.

O princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica é afirmado no  ordenamento jurídico brasileiro como exceção ao princípio da legalidade  quando há conflito de leis no tempo. Em regra, no regime de direito penal, uma  lei nova desfavorável ao réu não pode retroagir para condutas anteriores a sua  vigência. Ela só retroage quando dispuser de modo favorável ao réu, devido ao  entendimento de que a sociedade não mais atribui à conduta praticada pelo  indivíduo a lesividade que outrora detinha.

Dessa forma, legitima-se a retroatividade, como garantia do indivíduo  contra eventuais excessos no exercício do poder punitivo estatal, tornando-se necessário ponderar a medida em que tal princípio pode incidir sem que se  viole a legalidade.

3.2. Natureza civil do ato de improbidade

Posicionaram-se de modo diverso os ministros que atribuíram natureza  civil aos atos de improbidade administrativa. Sob suas perspectivas, o Direito  Administrativo Sancionador, em que pese também ser jus puniendi estatal, não  gera automaticidade com relação a aplicação por simetria dos princípios do  Direito Penal. Portanto, não se poderia aplicar o princípio da retroatividade da  lei mais benéfica, que, de acordo com o art. 5º, XL, da Constituição, seria  restrito à lei penal.

Sob essa perspectiva, deveriam ser aplicados os princípios da  legalidade e da segurança jurídica, prezando pela coisa julgada, pelo direito  adquirido e pelo ato jurídico perfeito (art. 6º, LINDB).

3.3. Configuração dos votos do STF 

Os ministros que reconheceram a improbidade administrativa como  fenômeno equiparado ao de natureza penal votaram pela retroatividade da Lei  14.230, em prol do princípio da lei mais benéfica e da defesa dos indivíduos  contra o poder punitivo do Estado.

Nesse sentido, os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Ricardo  Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes votaram pela retroatividade da  nova lei nos casos de ações – em processamento ou transitadas em julgado – que versassem sobre atos ímprobos em modalidade culposa. Sobre o regime  prescricional, apenas Nunes Marques e Dias Toffoli entenderam pela retroação  da prescrição geral e intercorrente. Os demais afirmaram ser cabível a  retroatividade somente com relação ao prazo da prescrição geral. 

Os ministros que, por outro lado, compreenderam a improbidade  administrativa como fenômeno de natureza civil votaram pela irretroatividade da Lei 14.230, em prol da legalidade e da segurança jurídica. Entenderam pela  irretroatividade em todos os casos Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa  Weber e Cármen Lúcia. Luiz Fux votou pela retroação da Lei somente para  abolir o ato culposo nas ações ainda não transitadas em julgado,  acompanhando integralmente o Relator.

4. Decisão do STF

Ao final da votação, prevaleceu a proposta do Ministro Relator Alexandre  de Moraes, que adotou um posicionamento médio, que ele denominou de “irretroatividade parcial”, com fundamento nos princípios da não ultra-atividade  e do tempus regit actum

Segundo a proposta, que se converteu na tese da repercussão geral, a  Lei 14.230 (i) não retroage para casos transitados em julgado; (ii) retroage para  casos não transitados em julgado quando tratem da improbidade administrativa  em modalidade culposa; e (iii) não retroage quanto aos prazos prescricionais  gerais e intercorrentes.

Com relação ao caso concreto, deu-se provimento ao ARE 843.989, por  unanimidade, para reconhecer a prescrição em cinco anos dos ilícitos civis  culposos (Tema 897).

Apesar da prevalência da linha segundo o regime civil, o placar apertado  da votação demonstra o quão latente é o debate da questão no ordenamento  jurídico brasileiro.

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Júlia Venzi Gonçalves Guimarães
Júlia Venzi Gonçalves Guimarães
Pós-graduada em Direito Administrativo pelo IDP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
João Pedro Lima de Vasconcellos
Acadêmico de Direito da UnB. Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Júlia Venzi Gonçalves Guimarães
Júlia Venzi Gonçalves Guimarães
Pós-graduada em Direito Administrativo pelo IDP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
João Pedro Lima de Vasconcellos
Acadêmico de Direito da UnB. Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.