1. Introdução
Em 18.08.2022, o Supremo Tribunal Federal decidiu o mérito da repercussão geral suscitada no ARE 843.989, firmando entendimento sobre a a aplicação das disposições da Lei 14.230/21 (que alterou a Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/92), especialmente em relação à necessidade de comprovação do dolo para configuração da improbidade administrativa e à aplicação do novo regime prescricional previsto na norma. .
A tese (Tema 1199) foi fixada no sentido de que a Lei 14.230 (i) é irretroativa com relação aos processos já transitados em julgado; (ii) é retroativa com relação aos processos em andamento que tratem de atos ímprobos em modalidade culposa; e (iii) é irretroativa quanto aos prazos gerais ou intercorrentes.
2. Caso concreto: INSS vs Rosmêry Terezinha Córdova
Na origem, tratou-se de ação civil pública ajuizada pelo INSS em 2006. O propósito era condenar a requerida ao ressarcimento de prejuízos ao erário (art. 10 da Lei 8.429/1992) decorrentes de sua atuação culposa, entre 1994 e 1999, como procuradora do INSS.
As alterações da Lei 14.230 tiveram relevância para o litígio, notadamente aquelas relacionadas à exclusão da modalidade culposa de improbidade administrativa e à fixação de novos prazos para a prescrição da pretensão punitiva do Estado.
Assim, passou-se a questionar se a requerida poderia ser julgada por ato praticado em modalidade que não mais existe e se o prazo prescricional poderia substituir o anterior, devendo ser reconhecida a prescrição intercorrente no caso.
3. Debate quanto à natureza do regime de improbidade administrativa
Diante do conflito de leis no tempo e das duas questões abrangidas pelo Tema 1199, sobreveio o debate quanto à natureza do ato de improbidade administrativa e ao regime jurídico aplicável ao caso concreto.
3.1. Aplicação dos princípios do Direito Penal ao regime da improbidade
Alguns dos ministros afirmaram que o regime da improbidade administrativa se aproxima do Direito Penal e, por essa razão, seriam aplicáveis os princípios deste ramo por simetria. Reconheceram a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benéfica, permitindo que as alterações da Lei 14.230, mais brandas, favoreçam os réus que respondam por atos praticados sob a vigência do texto anterior da Lei 8.429.
O princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica é afirmado no ordenamento jurídico brasileiro como exceção ao princípio da legalidade quando há conflito de leis no tempo. Em regra, no regime de direito penal, uma lei nova desfavorável ao réu não pode retroagir para condutas anteriores a sua vigência. Ela só retroage quando dispuser de modo favorável ao réu, devido ao entendimento de que a sociedade não mais atribui à conduta praticada pelo indivíduo a lesividade que outrora detinha.
Dessa forma, legitima-se a retroatividade, como garantia do indivíduo contra eventuais excessos no exercício do poder punitivo estatal, tornando-se necessário ponderar a medida em que tal princípio pode incidir sem que se viole a legalidade.
3.2. Natureza civil do ato de improbidade
Posicionaram-se de modo diverso os ministros que atribuíram natureza civil aos atos de improbidade administrativa. Sob suas perspectivas, o Direito Administrativo Sancionador, em que pese também ser jus puniendi estatal, não gera automaticidade com relação a aplicação por simetria dos princípios do Direito Penal. Portanto, não se poderia aplicar o princípio da retroatividade da lei mais benéfica, que, de acordo com o art. 5º, XL, da Constituição, seria restrito à lei penal.
Sob essa perspectiva, deveriam ser aplicados os princípios da legalidade e da segurança jurídica, prezando pela coisa julgada, pelo direito adquirido e pelo ato jurídico perfeito (art. 6º, LINDB).
3.3. Configuração dos votos do STF
Os ministros que reconheceram a improbidade administrativa como fenômeno equiparado ao de natureza penal votaram pela retroatividade da Lei 14.230, em prol do princípio da lei mais benéfica e da defesa dos indivíduos contra o poder punitivo do Estado.
Nesse sentido, os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes votaram pela retroatividade da nova lei nos casos de ações – em processamento ou transitadas em julgado – que versassem sobre atos ímprobos em modalidade culposa. Sobre o regime prescricional, apenas Nunes Marques e Dias Toffoli entenderam pela retroação da prescrição geral e intercorrente. Os demais afirmaram ser cabível a retroatividade somente com relação ao prazo da prescrição geral.
Os ministros que, por outro lado, compreenderam a improbidade administrativa como fenômeno de natureza civil votaram pela irretroatividade da Lei 14.230, em prol da legalidade e da segurança jurídica. Entenderam pela irretroatividade em todos os casos Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Luiz Fux votou pela retroação da Lei somente para abolir o ato culposo nas ações ainda não transitadas em julgado, acompanhando integralmente o Relator.
4. Decisão do STF
Ao final da votação, prevaleceu a proposta do Ministro Relator Alexandre de Moraes, que adotou um posicionamento médio, que ele denominou de “irretroatividade parcial”, com fundamento nos princípios da não ultra-atividade e do tempus regit actum.
Segundo a proposta, que se converteu na tese da repercussão geral, a Lei 14.230 (i) não retroage para casos transitados em julgado; (ii) retroage para casos não transitados em julgado quando tratem da improbidade administrativa em modalidade culposa; e (iii) não retroage quanto aos prazos prescricionais gerais e intercorrentes.
Com relação ao caso concreto, deu-se provimento ao ARE 843.989, por unanimidade, para reconhecer a prescrição em cinco anos dos ilícitos civis culposos (Tema 897).
Apesar da prevalência da linha segundo o regime civil, o placar apertado da votação demonstra o quão latente é o debate da questão no ordenamento jurídico brasileiro.