Informativo Eletrônico - Edição 212 - Outubro / 2024

STJ DECIDE SOBRE A APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CPC À REVELIA DAS NORMAS PROCEDIMENTAIS ELEITAS PELAS PARTES NA ARBITRAGEM

Gabriela Sasson Rassi
Eduardo Haas Blume

1. O Recurso Especial n° 1.851.324/RS 

O debate sobre a aplicação do Código de Processo Civil ao procedimento arbitral e a primazia das normas eleitas consensualmente pelas partes é objeto de amplos debates doutrinários. 

No dia 23 de agosto de 2024, foi publicado relevante acórdão de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, da 3° turma do Superior Tribunal de Justiça, que trata da aplicação do direito processual civil à arbitragem.

O caso decorreu de uma ação anulatória de sentença arbitral, em que se pretendia a declaração de vício procedimental em decorrência de suposto descumprimento de regra presente no CPC/73, que trata da imparcialidade dos intérpretes no processo (art. 138, IV). 

Durante o procedimento arbitral, uma das partes se valeu de tradutor para oitiva de duas testemunhas chinesas, em que o profissional contratado era preposto da Requerida. “No silêncio e subsidiariamente, ao procedimento arbitral”, nos termos do acórdão, a parte pretendia a aplicação do CPC para que fosse constatada hipótese de impedimento ou suspeição.

Em primeiro grau, o pedido foi julgado improcedente, constatando-se a indiscutibilidade do mérito decidido pelo Tribunal arbitral, que aplicou o direito conforme a livre escolha das partes. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, reformou a sentença e declarou a nulidade do procedimento arbitral por suposta violação à garantia da imparcialidade.

Em sede de Recurso Especial, o STJ observou que, na Ata de Missão, as partes elegeram que o procedimento fosse regido pelas normas do Regulamento da Câmara Internacional de Comércio (CCI). No caso de omissão, entendeu-se que seriam aplicáveis as normas posteriormente ajustadas pelos contratantes e, na ausência de acordo, deliberadas pelo árbitro. Quanto ao mérito, o direito brasileiro foi convencionado como aplicável.

De maneira pragmática, a decisão se fundamenta no fato de que as partes não convencionaram em momento algum a aplicação do Código de Processo Civil para resolução da disputa. Entendeu-se, portanto, que a normativa seria completamente inaplicável no caso, mesmo no silêncio da cláusula compromissória e do termo de arbitragem. 

Isso porque o árbitro não estaria vinculado automaticamente às normas do CPC, nem mesmo de forma subsidiária, sendo a Lei de Arbitragem expressa quando é o caso de sua aplicação, a exemplo das hipóteses de impedimento e suspeição do árbitro.

Por essas razões, decidiu-se pelo provimento do recurso especial com o fim de reformar as decisões das instâncias inferiores, afastando a anulação e confirmando a higidez da sentença arbitral e a inaplicabilidade do CPC/73 ao caso. 

2. Autonomia da vontade

Pode-se extrair da ratio decidendi do acórdão supracitado o princípio basilar e norteador do procedimento arbitral: a autonomia da vontade. 

A autonomia da vontade das partes é exercida em diversos momentos na arbitragem, cabendo destacar, no presente caso, a possibilidade de convenção acerca da normativa aplicável ao procedimento.

A positivação do referido princípio se dá no art. 2° da Lei de Arbitragem, que, em seu §1°, limita o direito de escolha das partes aos bons costumes e à ordem pública. Trata-se de previsão essencial à segurança jurídica e à previsibilidade, sobretudo em contratações internacionais.¹

A eleição das normas de direito exerce verdadeira limitação à jurisdição dos árbitros. Não é possível cogitar que a conclusão do tribunal arbitral decorra de norma que não foi diretamente eleita pelas partes, visto que a autonomia da vontade é o fundamento de seu poder jurisdicional. Diante desse cenário, a aplicação subsidiária do CPC, sem que essa possibilidade tenha sido aventada pelas partes, viola o princípio da autonomia da vontade e macula a essência do procedimento arbitral.

Não se olvida a possibilidade de que os árbitros considerem outros elementos e parâmetros de aplicação e interpretação das normas eleitas, tais como diretrizes de soft laws, mas defende-se que o elemento norteador e definidor da conclusão do tribunal deve ser calcado no arcabouço legal convencionado pelas partes.

3. Embate doutrinário

A aplicação subsidiária do CPC à arbitragem é questão controvertida não apenas na jurisprudência, mas também na doutrina especializada. De forma resumida, a doutrina pode ser dividida entre aqueles que são favoráveis à aplicação subsidiária e a parcela contrária.

O primeiro grupo fundamenta seu pensamento essencialmente no art. 3°, §1° do CPC/15², que consolidou a jurisdicionalidade da arbitragem no Brasil e, através de um hermenêutica ostensiva, poder-se-ia determinar que o procedimento arbitral deve ter o Código de Processo Civil como diploma de aplicação subsidiária.²

Por outro lado, há aqueles que apresentam forte resistência à possibilidade de aplicação subsidiária do CPC à arbitragem³. Baseados na autonomia da vontade e seu reflexo na ampla flexibilidade do procedimento arbitral, defende-se que o campo arbitral deve estar completamente deslocado de formalismos próprios do sistema do CPC. Isso se dá em razão da ampla outorga de poderes instrutórios concedidos aos árbitros, o que geraria contraditoriedade ao submetê-los, ainda que subsidiariamente, às amarras do CPC, conforme ensinam José Antônio Fichtner e Rodrigo Salton.

É nessa segunda orientação que parece se alinhar a posição do STJ. Não se pode extrair, no entanto, que tal posição abandona a garantia de princípios como o devido processo legal ou outros pilares fundamentais do processo, que são aplicáveis ao procedimento arbitral. Na linhas dos ensinamentos de RICARDO APRIGLIANO, o STJ parece indicar unicamente que os diálogos entre os sistemas devem ser adequados às respectivas particularidades, respeitando-se o caráter flexível da arbitragem e a autonomia das partes ao elegerem o regramento aplicável para resolução da controvérsia (Fundamentos Processuais da Arbitragem. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2023).

4. Conclusões

A despeito dos amplos debates acerca do tema, a defesa da inaplicabilidade automática do CPC à arbitragem, ainda que de reforma subsidiária, não significa em nenhuma medida negar a existência de diálogos essenciais entre a arbitragem e o processo. Pelo contrário, significa dizer que tal relação deve ser lida à luz da independência do campo da arbitragem de excessivos formalismos advindos do processo estatal, justamente para que seja preservada a essência e a estrutura do referido método de solução de disputas.

_____________________________
¹ CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n° 9.307/1996. 4 ed. Barueri, SP: Atlas, 2023. p. 86-87.

_____________________________
² DIDIER JR, Fredie. A arbitragem no novo código de processo civil (versão da câmara dos deputados–dep. Paulo Teixeira). Revista Eletrônica Ad Judicia (REAJ). Ano 1 – Vol. 1. Out/Nov/Dez. p. 73-81. 2013. p. 74.

_____________________________
³ CARMONA, Carlos Alberto. O processo arbitral. Lei da arbitragem comentada artigo por artigo. Revista da arbitragem e mediação. São Paulo, ano 1, jan.-abr. 2004, n. 9, p. 48-49.

Compartilhe:

LinkedIn
WhatsApp
Gabriela Sasson Rassi
Gabriela Sasson Rassi
Pós-graduanda em Processo Civil pela ESMAFE. Advogada na Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Eduardo Haas Blume
Graduando em Direito UFPR. Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Gabriela Sasson Rassi
Gabriela Sasson Rassi
Pós-graduanda em Processo Civil pela ESMAFE. Advogada na Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Eduardo Haas Blume
Graduando em Direito UFPR. Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.