1. Introdução
A gestão eficiente das licitações demanda atenção especial à fase de habilitação. A possibilidade de saneamento de erros ou falhas orienta a Administração a evitar a inabilitação prematura do licitante. Este enfoque pragmático reforça a busca pela proposta mais vantajosa, alinhando-se aos objetivos de eficiência e eficácia que regem as licitações.
Nesse contexto, o presente artigo tratará da disciplina legal e da orientação jurisprudencial em torno da apresentação de “documentos novos” na fase de habilitação. A questão será examinada sob a perspectiva da Lei 14.133 e de um paradigmático acórdão do TCU (Acórdão 1.211/2021-Plenário).¹
2. O regime legal anterior e posterior à Lei 14.133
O art. 43, §3°, da Lei 8.666/1993 estabelecia uma vedação clara à inclusão de documentos novos que “deveria[m] constar originariamente da proposta”, mesmo em sede de diligências. Este dispositivo refletia uma postura conservadora que impunha o dever de inabilitação de licitantes para preservar a isonomia do processo licitatório.
A Lei 10.520/2002, que disciplinava o pregão, não possuía disposições específicas sobre a apresentação de novos documentos. No entanto, o Decreto 10.024/2019, que regulamentou o pregão eletrônico, adotou uma previsão mais flexível.
O art. 17, inciso VI, do referido decreto conferiu ao pregoeiro o dever de “sanear erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos de habilitação e sua validade jurídica”.
Tal previsão foi incorporada pela Lei 14.133. O novo diploma de licitações e contratos administrativos continuou vedando a substituição ou apresentação de novos documentos, mas previu diligências excepcionais:
Art. 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:
I – complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;
II – atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.
§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.
Ou seja, segundo a Lei 14.133, é possível a complementação e atualização de documentos nos termos dos dispositivos supracitados.
3. O Acórdão 1.211/2021 e a definição de “documento novo”
O TCU promoveu a interpretação do art. 64 da Lei 14.133 por meio do paradigmático Acórdão 1.211/2021-Plenário. O resultado deu origem ao seguinte enunciado de jurisprudência:
[…] a vedação à inclusão de novo documento novo, prevista no art. 43, §3º, da Lei 8.666/1993 e no art. 64 da Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta, que não foi juntado com os demais comprovantes de habilitação e/ou da proposta, por equívoco ou falha, o qual deverá ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro.
Ou seja, para os fins da vedação contida no art. 64, caput, o TCU não considera documento novo aquele que, ainda que juntado posteriormente, comprova condição preexistente à abertura da sessão pública do certame. Sob essa perspectiva, será admissível a juntada posterior de documento desde que seu conteúdo se refira à condição preexistente.
De acordo com o Ministro Relator:
admitir a juntada de documentos que apenas venham a atestar condição pré-existente à abertura da sessão pública do certame não fere os princípios da isonomia e igualdade entre as licitantes e o oposto, ou seja, a desclassificação do licitante, sem que lhe seja conferida oportunidade para sanear os seus documentos de habilitação, resulta em objetivo dissociado do interesse público, com a prevalência do processo (meio) sobre o resultado almejado (fim).
Essa interpretação reflete uma visão pragmática, que consagra um formalismo moderado com o intuito de evitar a inabilitação de licitante que dispõe, na realidade dos fatos, da documentação necessária para participar da licitação.
4. Outros precedentes do TCU
O Acórdão 1.211/2021-Plenário vem sendo aplicado a diversos casos posteriores. É relevante a identificação desses precedentes, especialmente para aplicação em casos semelhantes.
No Acórdão 2.443/2021², o TCU reconheceu a ilegalidade da inabilitação de licitante que apresentou uma Certidão de Acervo Técnico (CAT) emitida 84 dias após a abertura da licitação. A CAT se referiria à condição preexistente.
No Acórdão 2.528/2021³, o TCU entendeu ilegal a inabilitação de licitante que deixara de apresentar declaração de inexistência de nepotismo. Nesse caso, o TCU reputou cabível a apresentação do documento após o início do certame.
No Acórdão 988/2022⁴, o TCU afastou a inabilitação de empresa que não apresentara o atestado de visita técnica nem a declaração da concordância com as disposições do instrumento convocatório. Nesse caso, o Relator esclareceu que, “Conquanto seja fundamental no Direito Administrativo, o princípio da legalidade não é absoluto. No caso concreto, parece-me claro que sua aplicação irrestrita operou contra a obtenção da melhor proposta e do alcance do interesse público, sendo apropriado ponderar a aplicação da salutar flexibilização do formalismo.”
No Acórdão 117/2024⁵, o TCU qualificou como indevida a inabilitação de empresa decorrente de apresentação de documentação vencida (certidão negativa com prazo exaurido).
5. Precedentes do TCE-PR
O Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE/PR) também adota entendimento similar ao externado no Acórdão 1.211/2021-Plenário do TCU.
Em julgamento realizado em 26.10.2023, o Plenário do TCE/PR permitiu a complementação de informações do documento de Inscrição de Empresário Individual relativas a fatos anteriores à abertura do certame.⁶
6. Conclusão
O entendimento de que haveria uma preclusão temporal e consumativa para a apresentação de documentos de habilitação vem sendo flexibilizado em prol dos princípios da eficiência e do formalismo moderado.
A orientação se funda diretamente no art. 64 da Lei 14.133/2021, que vem merecendo uma interpretação ampliativa por parte dos Tribunais de Contas.
Apesar dessa tendência jurisprudencial, ainda remanescem dúvidas sobre a abrangência da orientação, em vista de situações concretas peculiares. Com isso, tem-se difundido a atuação dos Tribunais de Contas para dirimir dúvidas cada vez mais frequentes.
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¹ TCU, Acórdão 1.211/2021, Plenário, Rel. Ministro Walton Alencar Rodrigues, j. 26.05.2021.
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² TCU, Acórdão 2.443/2021, Plenário, Rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti, j. 6.10.2021
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³ TCU, Acórdão 2.528/2021, Plenário, Rel. Min. Raimundo Carreiro, j. 20.10.2021
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⁴ TCU, Acórdão 988/2022, Plenário, Rel. Min. Antonio Anastasia, j. 1º.12.2021
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⁵ TCU, Acórdão 117/2024, Plenário, Rel. Min. Aroldo Cedraz, j. 31.1.2024
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⁶ TCE/PR, Acórdão 3.409/2023, Plenário, Conselheiro Rel. Ivens Zschoerper Linhares, j. 26.10.2023.