Introdução
O Tema 1.199, firmado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Repercussão Geral a partir do julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 843.989/PR, fixou quatro teses acerca do novo regramento da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230/2021). O presente texto se dedicará a expor de forma pormenorizada o conteúdo dessas teses.
1. Confirmação pelo STF da exigência de dolo para a caracterização do ato de improbidade administrativa
“1) A necessidade de comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;”
Para a configuração do ato de improbidade administrativa, é necessária a presença de um elemento subjetivo no agir do agente. O elemento subjetivo pode se apresentar por meio de duas formas: dolo e culpa.
A Lei 14.230/21 trouxe em seu artigo 1°, §2°, o conceito de dolo como sendo “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.”
Ainda, estabeleceu que “o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa”.
A norma, textualmente, estabelece que somente atos dolosos podem configurar improbidade administrativa. Nesse sentido, o Tema 1.199 do STF retira a possibilidade de caracterização de ato de improbidade por mera conduta culposa, conforme constava da redação original do caput do art. 10 da Lei 8.429/92.
A partir da nova LIA, a configuração do ato ímprobo pressupõe a existência do elemento subjetivo dolo. Não se trata meramente de dolo “genérico” (conduta típica e antijurídica sem finalidade específica). É imprescindível a presença do dolo “específico”, assim definido como a “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 na LIA (art. 1º, §2º, da Lei 8.429/92, na redação conferida pela Lei 14.230/21).
Nesse sentido preconiza o STJ:
Não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10 (…)
A LIA navega entre normas e princípios de caráter punitivo e de direito processual civil. Aplica, também, os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 2º, § 4º da Lei 8.429/92, na redação conferida pela Lei 14.230/21).
O dolo para o direito civil é tratado como defeito do negócio jurídico (arts. 145 a 150 do Código Civil), elemento da responsabilidade civil (arts. 927 a 954 do Código Civil). Sua definição consiste na intenção de prejudicar, inadimplir obrigações ou obter vantagem para si ou para outrem.
Na esfera penal, entende-se que o dolo é todo ato antijurídico, típico, imputável e punível. O dolo pode ser (i) direto, quando o autor tem vontade de produzir um determinado resultado, ou (ii) indireto (dolo eventual), quando o autor não tem vontade de produzir um resultado, mas assume e aceita o risco de produzi-lo.
O dolo na improbidade administrativa se assemelha ao dolo estudado no direito penal, em especial, porque ambos os processos são marcados pelo caráter sancionatório.
Diante disso, a partir da fixação da primeira tese, o STF entendeu que, para a configuração dos atos de improbidade, é indispensável o elemento dolo, pois não se trata apenas da intenção do agente de alcançar um resultado específico, mas também da conscientização e aceitação do risco de sua ocorrência (AgInt no AREsp n. 417.981/MG, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, 1ª Turma, j. 04.06.24; REsp n. 1.926.832/TO, Rel. Min. Gurgel de Faria, 1ª Seção, j. 11.05.22; AgInt no AREsp n. 1.125.411/AL, Rel. Des. Conv. TRF5 Manoel Erhardt, 1ª Turma, j. 23.06.22).
2. Retroatividade da norma benéfica ao acusado
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;”
O princípio da (ir)retroatividade da lei mais gravosa e retroatividade da lei mais benéfica dispõe que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5º, XL da Constituição Federal).
Esse princípio tem sua origem no sistema punitivo penal. Contudo, a doutrina e a jurisprudência reconhecem a sua aplicação na esfera da improbidade administrativa – em especial diante do caráter sancionatório das regras contidas na Lei 8.429/92, o que foi reafirmado pelo seu atual art. 1º, § 4º.
A matéria comporta vasta discussão, considerando a divergência de entendimento entre os profissionais do direito. Grande parte das novas disposições da LIA é mais benéfica aos agentes públicos e aos que concorrem para a prática do ato de improbidade.
O Tema 1.199 do STF reconheceu que o princípio da retroatividade da lei penal “não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa”.
Ademais, consignou a possibilidade da aplicação dos novos dispositivos às ações que estejam em andamento, ainda que versem sobre atos de improbidade culposos praticados à luz do regramento anterior, o que deverá ser realizado pelo julgador no caso concreto:
A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente
Com isso, o STF fixou entendimento pela impossibilidade da retroatividade das novas disposições para as condenações já transitadas em julgado, o que vem sendo aplicado de forma pacífica pelo STJ: AgInt no REsp n. 2.082.995/PB, Rel. Min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, j. 11.03.24; AgInt no AREsp n. 2.163.400/MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, j. 16.05.24; EDcl nos EDcl no AgInt no RE nos EDcl no AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.625.377/RS, Rel. Min. Og Fernandes, Corte Especial, j. 10.06.24.
Ao se admitir a constitucionalidade da exclusão da modalidade culposa, o STF reconheceu que as normas da Lei 14.230/21, que forem mais favoráveis ao réu, devem ser aplicadas aos processos em curso (lex mitior). No entanto, entendeu que quando as alterações forem mais gravosas (lex gravior), incidirão apenas para fatos posteriores à entrada em vigor da Lei 14.230/21.
3. Eliminação dos atos de improbidade culposos: exigência de dolo, inclusive para os processos em curso
“3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;”
A redação original do art. 10 da Lei 8.429/92 previa a possibilidade de se imputar o ato ilícito a partir da conduta culposa do agente:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário, qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, mal baratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (…)
Como visto, a Lei 14.230/21 alterou esse dispositivo, impondo que as condenações por improbidade ficassem limitadas aos casos em que esteja presente o dolo específico.
Diante disso, o STF precisou decidir o rumo das ações já em curso que tivessem por objeto a conduta culposa. Por meio do Tema 1.199, determinou-se que as ações com sentença transitada em julgado, ainda que por prática de conduta culposa, devem prevalecer e ser executadas em sua totalidade. Essa orientação foi seguida pelo STJ (AgInt no REsp n. 1.853.626/SP, Rel. Min. Afrânio Vilela, 2ª Turma, j. 14.05.24).
No entanto, aquelas ações ainda em trâmite e sem trânsito em julgado devem ser reanalisadas pelo julgador, a fim de se identificar a presença do elemento subjetivo dolo. Caso contrário, o processo deve ser extinto sem resolução de mérito por manifesta ausência de interesse de agir (art. 17-C, § 1º, da Lei 8.429/92). Esse é o atual entendimento do STJ (AgInt no AREsp n. 2.163.400/MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, j. 16.05.24).
4. Prescrição intercorrente: fixação do termo inicial da contagem do prazo
“4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.”
A nova LIA também estabeleceu alterações nos marcos temporais para incidência do prazo prescricional, bem como recepcionou regras acerca da prescrição intercorrente que não estavam previstas na Lei 8.429/92.
Anteriormente, havia três hipóteses de prazo prescricional para ajuizamento da ação de improbidade administrativa:
(i) até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança; (art. 23, inc. I, Lei nº 8.429/92)
(ii) dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego; (art. 23, inc. II, Lei nº 8.429/92)
(iii) até cinco anos da data da apresentação à administração pública da prestação de contas final pelas entidades referidas no parágrafo único do art. 1º desta Lei. (art. 23, inc. III, Lei nº 8.429/92)
A Lei 14.230/21 alterou a redação do art. 23, passando a fixar o prazo prescricional de oito anos para que os entes legitimados ajuízem ação para a aplicação das penas por improbidade administrativa contra agentes ímprobos (art. 23, caput, da Lei 8.429/92).
Acerca da prescrição intercorrente (art. 23, § 8º, da Lei 8.429/92), o Tema 1.199 estabeleceu a tese de que o termo inicial da contagem do prazo de prescrição intercorrente é a data da publicação do novo diploma legal, ou seja, o dia 26.10.2021.
Essa orientação tem sido seguida pelo STJ (AgInt no AgInt no AREsp n. 1.924.736/RN, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, j. 18.12.23; AgInt no RE nos EDcl no AgInt no REsp n. 1.536.553/PB, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, j. 22/8/2023; AgInt nos EDcl no REsp n. 2.035.643/SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª Turma, j. 29.05.23).
Dessa forma, se uma ação foi proposta em 01.01.2018, e não sobrevier nenhum dos marcos interruptivos do art. 23, §4º, da LIA, caso aplicado de imediato o novo regramento, a prescrição intercorrente ocorreria em 01.01.2022. No entanto, a partir da tese firmada, o termo inicial da contagem do prazo de prescrição intercorrente será 26.10.2021. Assim sendo, o prazo de quatro ano terminará somente em 26.10.2025.
5. Conclusão
O Tema 1.119 do STF estabeleceu relevantes teses acerca da intepretação do novo regramento inserido na LIA pela Lei 14.230/21. Em especial, fixou (i) exigência de comprovação de dolo específico para a configuração do ato de improbidade, de forma retroativa aos processos em curso, e (ii) o termo inicial (26.10.2021) para a contagem do prazo de prescrição intercorrente.
O entendimento formado pelo STF sobre novo regramento inserido na LIA pela Lei 14.230/21 teve em vista proteger as garantias constitucionais do acusado e, ao mesmo tempo, preservar os princípios da segurança jurídica e da estabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado.