Informativo Eletrônico - Edição 213 - Novembro / 2024

A REFORMA TRIBUTÁRIA E O FUTURO DO SANEAMENTO BÁSICO

Cesar Pereira
Guilherme Dias Reisdorfer
Isabella Rossito

1. Introdução

A reforma tributária iniciada pela Proposta de Emenda à Constituição nº 45/2019, que resultou na Emenda Constitucional nº 132/2023, representa uma das mudanças mais significativas no sistema tributário das últimas décadas, com impactos diretos em setores essenciais, como o saneamento básico.

Nesse contexto, o presente artigo objetiva analisar como as alterações propostas podem afetar a sustentabilidade econômica das concessionárias, os investimentos necessários para a universalização e o equilíbrio contratual. Expõe uma alternativa para a preservação da modicidade tarifária e da capacidade de investimento do setor.

O tema foi objeto de painel no 9º Encontro Nacional das Águas, realizado em novembro de 2024, em que os impactos da reforma e possíveis mecanismos para sua mitigação foram debatidos.¹

2. O tratamento tributário atual do setor

No regime vigente, incidem sobre o setor de saneamento as contribuições ao Programa de Integração Social (PIS) e ao Financiamento da Seguridade Social (COFINS), não havendo previsão de incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) nem do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). 

Inicialmente, o texto aprovado que resultou na Lei Complementar nº 116/2003, que disciplinou o ISS, previa a incidência sobre serviços de saneamento básico. No entanto, a previsão foi vetada pela Presidência da República, sob a justificativa de que a cobrança não atenderia ao interesse público e poderia comprometer o objetivo de universalização do acesso a tais serviços:

A incidência do imposto sobre serviços de saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitários e congêneres, bem como sobre serviços de tratamento e purificação de água, não atende ao interesse público. A tributação poderia comprometer o objetivo do Governo em universalizar o acesso a tais serviços básicos. O desincentivo que a tributação acarretaria ao setor teria como consequência de longo prazo aumento nas despesas no atendimento da população atingida pela falta de acesso a saneamento básico e água tratada […].²

Contudo, a despeito da não incidência de outros tributos, um estudo da GO Associados apurou a existência de impactos de “resíduos tributários” embutidos nos preços dos insumos, mercadorias e serviços utilizados. Considerando tal fator, o estudo concluiu que a carga tributária efetiva incidente sobre o setor de saneamento básico é de 9,74% sobre a receita bruta das empresas (5,47% de PIS/COFINS e 4,27% de resíduo tributário).³

3. Os impactos da reforma tributária

A proposta de reforma tributária abandonou a diretriz que orientou a não incidência do ISS sobre o setor de saneamento básico, potencialmente acarretando significativo aumento da carga tributária sobre o setor.

O setor de saneamento foi enquadrado na regra geral de incidência do chamado Imposto sobre Valor Agregado Dual (IVA Dual), que será composto por dois tributos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Com isso, a carga tributária suportada pelas empresas de saneamento básico aumentaria de 9,74% para 26,50%.⁴

A elevação ocorre principalmente porque o IVA Dual é um imposto criado pela unificação do ISS e do ICMS, que não incidiam sobre o setor anteriormente. 

4. A necessidade de reequilíbrio dos contratos de concessão em andamento

Para a elaboração da proposta em um processo licitatório, os licitantes devem levar em conta todos os custos envolvidos na contratação. Isso inclui também os tributos indiretos, aqueles em que a estrutura do tributo permite que o impacto financeiro seja suportado pelo adquirente ou pelo próximo da cadeia econômica, não necessariamente pelo responsável por efetuar o recolhimento do tributo ao Estado.⁵

Conforme Marçal Justen Filho, eventual variação do valor dos tributos indiretos (considerados na proposta) não pode afetar o patrimônio do particular contratado, uma vez que esse valor não é por ele apropriado, sendo recolhido aos cofres públicos. Assim, o autor defende que, em caso de variação na carga tributária, deve ser adotado mecanismo que propicie o integral repasse para o preço contratual, sob pena de caracterização de confisco inconstitucional do patrimônio do contratado.⁶

A legislação é justamente nesse sentido. Os art. 65, § 5º, da Lei nº 8.666/1993, e o art. 134, da Lei 14.133/2021, determinam o reequilíbrio econômico-financeiro (para mais ou para menos) se houver, após a data da apresentação da proposta, variação da carga tributária incidente sobre a contratação.

No âmbito das concessões, especificamente, a Lei nº 8.987/1995 prevê em seu art. 9º, § 3º, que a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa (ressalvados os impostos sobre a renda). O art. 38, § 4º, da Lei 11.445/07 prevê o repasse aos usuários dos custos e encargos tributários não previstos originalmente e não passíveis de administração pelo prestador de serviços.

Além disso, a imputação à Administração Pública do risco pela alteração da carga tributária também é fundamentada pelos preceitos da teoria do fato do príncipe, conforme reconhecido em âmbito doutrinário.⁷ Fato do príncipe é toda determinação estatal positiva ou negativa, geral, imprevista e imprevisível, que onera a execução do contrato administrativo.⁸ Sua caracterização deve ensejar reequilíbrio do contrato, conforme o art. 65, inciso II, “d”, da Lei 8.666/1993, e o art. 124, inciso II, “d”, da Lei nº 14.133/2021. Consiste em risco que o contratado não tem condições de gerir. A alteração da carga tributária é um exemplo claro.

No momento de celebração dos contratos de concessão do setor de saneamento atuais ou futuros, mas anteriores à implementação da reforma, não existirão ainda os novos impostos sobre os serviços concedidos. Desse modo, se e quando vierem a ser efetivamente criados os tributos previstos pela Emenda Constitucional nº 132/2023, estará configurada alteração superveniente da carga tributária que se enquadra perfeitamente no comando dos arts. 65, § 5º, da Lei 8.666/1993, e art. 134 da Lei 14.133/2021. Portanto, os impactos da reforma tributária deverão ser objeto de reequilíbrio econômico-financeiro em favor das concessionárias, considerando que a execução contratual será inevitavelmente onerada pelo aumento da carga tributária. 

Com isso, será necessária a instauração de processos de revisão tarifária e adoção de providências regulatórias específicas para absorver os novos custos tributários, que deverão assegurar a sustentabilidade econômica e a continuidade dos serviços prestados.

Destaca-se que o reequilíbrio deve alcançar mesmo contratos celebrados após a publicação da Emenda Constitucional nº 132/2023, uma vez que o momento relevante para a configuração da variação (e do evento de desequilíbrio, portanto) é o da efetiva edição da norma tributária apta a criar o tributo – o que ainda não ocorreu e pode nem acontecer efetivamente. Ainda, o direito ao reequilíbrio não é afastado pela expectativa de que o tributo possa vir a ser criado.

A mera previsão constitucional da competência tributária não implica a criação do tributo. A nova redação do art. 156-A da Constituição Federal determina expressamente que os impostos deverão ser instituídos por lei complementar, que ainda não foi editada.

O estudo elaborado pela GO Associados estima que a tarifa dos serviços de água e esgoto deverá ser reajustada, na média, em 18% para viabilizar o repasse da mudança da estrutura tributária ao consumidor.⁹

O aumento necessário nas tarifas para dar conta do aumento da carga tributária não é condizente com a busca pela modicidade tarifária, onerando os usuários de um serviço essencial, em relação ao qual há comando legislativo expresso de universalização. Além disso, prejudica a capacidade das concessionárias de realizar os vultosos investimentos necessários para o atingimento das metas estabelecidas pela Lei 14.026/2020.

5. A proposta de enquadramento do saneamento como saúde

É notório que os tributos possuem uma função indutora, afetando o comportamento dos agentes econômicos, podendo deliberadamente direcioná-los para fins específicos.¹⁰ Desse modo, as externalidades negativas geradas pelo aumento da carga tributária sobre o setor de saneamento, que incluem desde o aumento da tarifa para os usuários até o comprometimento dos investimentos para universalização do serviço, devem ser cuidadosamente sopesadas.

Além disso, é imprescindível considerar que o investimento em saneamento gera externalidades positivas diretas na saúde pública, como a redução de internações por doenças de veiculação hídrica. Pesquisa elaborada pelo Instituto Trata Brasil constatou que a falta de saneamento básico ocasionou mais de 273 mil internações por doenças de veiculação hídrica no Brasil em 2019, gerando gastos com hospitalizações na ordem de R$ 108 milhões.¹¹ Segundo estudo elaborado pela Organização Mundial da Saúde, cada U$$1,00 investido em saneamento economiza U$$ 4,30 dólares em saúde no mundo.¹² O contraponto é que a ampliação da disponibilidade de serviços de saneamento – fornecimento de água, coleta de esgoto e seu tratamento – tem impacto direto sobre a saúde pública.

Por esses motivos, há tempos a doutrina aponta a necessidade de desoneração do setor, com o objetivo de reduzir o valor das tarifas e permitir o alcance das metas de universalização no menor prazo possível.¹³

Considerando a íntima relação entre saneamento e saúde pública, uma forma de evitar o desequilíbrio em massa dos contratos de concessão de serviços de saneamento básico em vigor, preservando os investimentos necessários para a universalização, é a equiparação do saneamento básico ao setor de saúde, para o qual as alíquotas de CBS e IBS serão reduzidas em 60%, conforme previsto pelo art. 9º, § 1º, “ii”, da Emenda Constitucional nº 132/2023.¹⁴

A redução das alíquotas de CBS e IBS no setor de saneamento pode evitar aumentos tarifários que comprometeriam a modicidade tarifária e a universalização dos serviços. 

O reconhecimento da importância do tema levou à criação de uma petição, pela ABCON SINDCON (Associação e Sindicado Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços de Água e Esgoto), para o reconhecimento da equivalência do setor do saneamento ao setor da saúde, que conta com milhares de assinaturas e demonstra o empenho do setor em reduzir a conta para o consumidor final.¹⁵

6. Considerações finais

A reforma tributária traz desafios significativos ao setor de saneamento básico, especialmente pela majoração da carga tributária. Para mitigar os impactos negativos, é essencial adotar medidas como a equiparação ao setor de saúde, com redução das alíquotas incidentes, de modo a preservar a modicidade tarifária e garantir os investimentos necessários para a universalização dos serviços. Caso contrário, será imprescindível o imediato e concomitante reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos em vigor quando da instituição ou majoração dos tributos objeto da reforma.

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¹ Universalização e o novo modelo tributário brasileiro. 9º Encontro Nacional das Águas, nov. 2024. Palestrantes: Douglas Casagrande, Beatriz Nobrega, Marilene Ramos e Andrea Häggsträm. Moderador: Gesner Oliveira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gBFOgvqX6BY.

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² BRASIL. Mensagem de veto nº 362, de 19 de dezembro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/Mensagem_Veto/2003/Mv362-03.htm. Acesso em: 19 nov. 2024.

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³ GO ASSOCIADOS. Estudo de Impactos da Reforma Tributária sobre o Setor de Saneamento. 2023. Disponível em: https://abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2023/09/estudos_abcon_impactos_reforma.pdf. Acesso em: 19 nov. 2024. p. 16-17.

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FREITAS, Neuri. Reforma tributária e os desafios para o federalismo fiscal brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE), 2024. Disponível em: https://ibre.fgv.br/sites/ibre.fgv.br/files/arquivos/u65/09ce2024_neuri_freitas.pdf. Acesso em: 18 nov. 2024.

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PEREIRA, Cesar; ROSSITO, Isabella. Reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos por variação na carga tributária. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da; ARRUDA, Carmen Silvia L. de; PICCELLI, Roberto Ricomini. Lei de licitações e contratos comentada – Lei 14.133/2021 (vol. III). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 124.

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JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 1487.

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Cf:  FERRAZ, Luciano. Contratos na nova lei de licitações e contratos. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Licitações e contratos administrativos – inovações da Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 203; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Nova lei de licitações e contratos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 318.

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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo. 43ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 274/275.

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GO ASSOCIADOS. Estudo de Impactos da Reforma Tributária sobre o Setor de Saneamento. 2023. Disponível em: https://abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2023/09/estudos_abcon_impactos_reforma.pdf. Acesso em: 19 nov. 2024. p. 31.

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¹⁰ SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 12ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 23/26.

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¹¹ INSTITUTO TRATA BRASIL. Saneamento e doenças de veiculação hídrica. São Paulo: Instituto Trata Brasil, set. 2021. Disponível em: https://tratabrasil.org.br/saneamento-e-doencas-de-veiculacao-hidrica-ano-base-2019/. Acesso em: 19 nov. 2024.

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¹² ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. OMS: para cada dólar investido em água e saneamento, economiza-se 4,3 dólares em saúde global. 2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/55290-oms-para-cada-d%C3%B3lar-investido-em-%C3%A1gua-e-saneamento-economiza-se-43-d%C3%B3lares-em-sa%C3%BAde-global. Acesso em: 22 nov. 2024.

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¹³ AMARAL, Léo Meirelles do; ZAGO, Marina Fontão. Alguns aspectos tributários para os serviços de saneamento básico. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 27, pp. 155-169, jan./jun. 2011.

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¹⁴ Art. 9º A lei complementar que instituir o imposto de que trata o art. 156-A e a contribuição de que trata o art. 195, V, ambos da Constituição Federal, poderá prever os regimes diferenciados de tributação de que trata este artigo, desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa.

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¹⁵ Disponível em: https://www.change.org/p/contra-o-aumento-da-conta-de-%C3%A1gua. Acesso em: 22 nov. 2024.

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Cesar Pereira
Cesar Pereira
Doutor em Direito Administrativo pela PUC. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Guilherme Reisdorfer
Guilherme Dias Reisdorfer
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela USP. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Isabella Rossito
Isabella Rossito
Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FDRP-USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Cesar Pereira
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Doutor em Direito Administrativo pela PUC. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
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Guilherme Dias Reisdorfer
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela USP. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
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Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FDRP-USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.