1. Introdução
Em contratos internacionais, a escolha de lei aplicável ao mérito da arbitragem dita as normas jurídicas que deverão ser observadas pelo tribunal arbitral. Em outras palavras, essa definição terá grande relevância para a arbitragem internacional que vier a ser instaurada, na medida em que servirá como fundamento para a decisão do árbitro.1–2 Por outro lado, quando há a ausência de escolha expressa da lei aplicável ao mérito em contrato internacional, dá-se lugar a uma série de questionamentos com relação às normas aplicáveis para a resolução do litígio.
Dessa forma, este comentário trata das situações em que a CISG (Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias) será a lei aplicável diante do silêncio contratual, quando as normas de direito internacional a serem adotadas (também chamadas de normas sobre conflito) forem as do sistema legal brasileiro.
Para tanto, comentam-se brevemente os dispositivos da CISG e o julgado SEC n° 3.035/FR, pelo qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a aplicação da CISG não ofende a ordem pública brasileira (que, àquela época, ainda não havia aderido à Convenção) quando recepcionada pelo direito da parte estrangeira. Uma vez que o Brasil é signatário da CISG, o raciocínio se aplica a contratos com partes oriundas de países não signatários da CISG, como a Índia, o Reino Unido ou os Emirados Árabes Unidos. A CISG atualmente conta com 95 países signatários.
2. A CISG
A Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (“CISG” ou “Convenção”) é um instrumento legal internacional que visa trazer harmonia e uniformidade ao direito comercial internacional.3 Fruto da cooperação entre diversos países de culturas jurídicas distintas, trata-se de uma lei uniforme que reúne, em apenas um instrumento legal, as mais diversas matérias sobre contratos de compra e venda internacional de mercadoria – como, por exemplo, a formação do contrato, sua execução e os remédios disponíveis frente ao inadimplemento contratual.
A CISG apresenta uma série de vantagens ao comércio mundial e às relações jurídicas nas quais as partes contratantes são de diferentes sistemas jurisdicionais. Dentre elas, cita-se que a Convenção traz maior segurança jurídica, pois se adota um regime jurídico único de comércio internacional, sem ofensa às diferentes soberanias nacionais.4
O Brasil se tornou signatário da CISG em 2013, sendo promulgada pelo Decreto n° 8.327/2014. Por ser uma convenção internacional, sua observância é obrigatória pelos Estados aderentes. Nesse sentido, o art. 1º(b) da CISG prevê que a Convenção se aplica aos contratos de compra e venda de mercadorias entre partes que tenham seus estabelecimentos em Estados distintos “quando as regras de direito internacional privado levarem à aplicação da lei de um Estado Contratante”.5
Isto significa que a Convenção poderá ser aplicada em contratos entre países não signatários caso as regras de direito internacional privado contratualmente escolhidas levarem à aplicação do direito de um Estado signatário da CISG, como o Brasil.6
3. A SEC n° 3.035/FR
Tal entendimento se firmou no sistema legal brasileiro também perante o Superior Tribunal de Justiça pela SEC n° 3.035/FR, no qual o contrato objeto do litígio previa a aplicação do direito material suíço.7
O tribunal arbitral do referido caso aplicou a CISG como parte do direito material suíço, tendo em vista que a Suíça é um país signatário da CISG – e, portanto, sua aplicação era obrigatória. A homologação da sentença foi impugnada pela parte perdedora que alegou ofensa à ordem pública brasileira, pois, à época, o Brasil ainda não era signatário da CISG. O pedido de homologação foi deferido a despeito dessa alegação.8
Merece especial atenção o voto-vista da Min. Relatora Nancy Andrighi: O mero juízo de delibação que é possível fazer, em sede de homologação de sentença estrangeira, não permite que o julgador brasileiro decida, em lugar do árbitro estrangeiro, como deve ser interpretado termo direito material suíço. A inclusão de uma convenção recepcionada pelo direito suíço nesse conceito não implica ofensa aos limites da convenção de arbitragem ou mesmo à ordem pública brasileira, para fins de homologação. Ao menos em princípio, analisando a questão à luz do direito brasileiro, é cediço que um tratado ou uma convenção, ao serem recepcionados por um país contratante, passam a ter o mesmo status de lei interna desse país. Não há motivos para pensar que seria diferente na Suíça e mais que isso: não há por que imiscuir-se na sentença arbitral, quanto ao tema. (…) Ao eleger o direito material suíço para a solução da controvérsia, as partes renunciaram à aplicação da lei interna de seu respectivo país, em prol da regulação da matéria por um sistema normativo estrangeiro. Não há, na arbitragem internacional, qualquer restrição a que se faça isso (art. 2º, §1º, da Lei 9.307/99) (STJ, SEC n° 3.035/FR, Corte Especial, Min. Rel. Fernando Gonçalves, J. 19.08.2009 – grifou-se).
Dessa forma, verificou-se que a eleição da Convenção não implica ofensa à ordem pública brasileira ou aos limites da convenção de arbitragem e que, sob o viés do direito brasileiro, a convenção ou tratado recepcionado pelo país contratante passa a ter o status de lei interna do país.
4. Conclusão
Veja-se pelas disposições da CISG e pela SEC n° 3.035/FR que em contratos internacionais nos quais figuram parte brasileira e em que há ausência de escolha da lei aplicável ao mérito de eventual litígio, poderá ser aplicada a CISG, ainda que a parte contrária não seja signatária e desde que não tenha sido expressamente excluída pelas partes.
Contudo, faz-se necessária uma ressalva. Em arbitragens internacionais, na ausência de disposição lei aplicável ao mérito, o árbitro poderá defini-la de duas formas – escolhendo (ou observando, se já houver definição) quais serão as regras de direito internacional aplicáveis ao Contrato para, a partir delas, determinar qual será a lei aplicável ao mérito9 ou definir diretamente a lei aplicável ao mérito da arbitragem com base nos critérios que entender adequados ao caso em questão.
Trata-se de uma tarefa complexa,10 não sendo possível se prever com exatidão o que virá a ser efetivamente decidido. Via de regra, o árbitro deverá se guiar pelas normas as quais a relação entre as partes se submete: as regras da arbitragem (regulamentos institucionais) e pela lei processual da arbitragem (lex arbitri, a qual frequentemente coincide com a lei da sede da arbitragem).
De todo modo, sabe-se que é possível pelo sistema legal brasileiro a incidência da CISG como norma aplicável ao mérito de arbitragem internacional quando houver ausência de previsão contratual.
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1 Sobre o tema, cita-se: TIBURCIO, Carmen. A lei aplicável às arbitragens internacionais. Em: MARTINS, Pedro A. Batista; GARCEZ, José Maria R. Reflexões sobre arbitragem: in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima. São Paulo: LTr, 2002
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2 A definição sobre a (inter)nacionalidade da arbitragem também é particularmente importante, na medida em que (1) determina as regras de direito internacional que regulam a arbitragem; (2) determina qual tribunal estatal terá jurisdição sobre o procedimental arbitral (o qual terá poderes de supervisão e intervenção, quando necessário, do procedimento arbitral); (3) identifica quais procedimentos deverão ser seguidos para a execução da sentença arbitral. Sobre em: TIBURCIO, Carmen. A lei aplicável às arbitragens internacionais. Em: Id. Ibid., p. 92
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3 CISG BRASIL. A CISG. Disponível em: https://www.cisg-brasil.net/a-cisg-1 Acesso em: 26.05.2022
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4 Id. Ibid.
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5 De acordo com o art. 1º(b) da CISG: “(1) This Convention applies to contracts of sale of goods between parties whose places of business are in different States: (a) when the States are Contracting States; or (b) when the rules of private international law lead to the application of the law of a Contracting State”. Disponível em: https://uncitral.un.org/sites/uncitral.un.org/files/media-documents/uncitral/en/19- 09951_e_ebook.pdf Acesso em: 26.05.2022.
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6 Para melhor aprofundamento no tema: SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER Ingeborg. Comentários à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. PEREIRA, Cesar et. al.(coords. trad.) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
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7“SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA. LEGITIMIDADE ATIVA. INTERESSE. CONTRATO DE COMPRA E VENDA. MÉRITO DA DECISÃO ARBITRAL. ANÁLISE NO STJ. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À ORDEM PÚBLICA. 1. O pedido de homologação pode ser proposto por qualquer pessoa interessada nos efeitos da sentença estrangeira. 2. O mérito da sentença estrangeira não pode ser apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça, pois o ato homologatório restringe-se à análise dos seus requisitos formais. Precedentes. 4. O pedido de homologação merece deferimento, uma vez que, a par da ausência de ofensa à ordem pública, reúne os requisitos essenciais e necessários a este desideratum, previstos na Resolução nº 9/2005 do Superior Tribunal de Justiça e dos artigos 38 e 39 da Lei 9.307/96. 4. Pedido de homologação deferido.” (STJ, SEC n° 3.035/FR, Corte Especial, Min. Rel. Fernando Gonçalves, J. 19.08.2009).
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8 Rabih Nasser comenta com maior profundidade o referido julgado em: NASSER, Rabih A. Aplicação da Convenção de Viena sobre Contratos para a Venda Internacional de Mercadorias (CISG) a Contratos Firmados por Empresas Brasileiras. Em: Revista Brasileira de Arbitragem. Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB, Vol. VII, Issue 25, pp. 131-137.
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9 First, the arbitral tribunal must select a conflict of laws rule, from among various possible conflicts systems, to be applied to choose the applicable law. This task arises because the arbitral tribunal differs from a national court (…). Second, after selecting a conflict of laws rule, the arbitrators must then apply that rule to the parties’ dispute and determine what substantive law the relevant conflicts rules select. At this stage, the arbitral tribunal’s task is similar to that of a national court, applying a conflict of laws rule to particular facts and issues, in order to select an applicable system of law.” Mais sobre: BORN, Gary. ‘Chapter 19: Choice of Substantive Law in International Arbitration’, in Gary B. Born, International Commercial Arbitration (Third Edition), 3rd ed., Kluwer Law International; Kluwer Law International 2021) pp. 2817-3000.
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10Cita-se o comentário dos Profs. Carmen Tiburcio e Felipe Albuquerque, autoridades no tema, tratando dos desafios do direito internacional privado em matéria de determinação da lei aplicável: “Não obstante os possíveis exageros, as diferentes e numerosas soluções teóricas e práticas propostas para a determinação da lei aplicável a situações com elementos estrangeiros autorizam a conclusão de que as críticas à excessiva complexidade do direito internacional privado são ao menos em parte procedentes” (TIBURCIO, Carmen; ALBUQUERQUE, Felipe. Convenção de Nova York e a Lei de Arbitragem: algumas considerações sobre a lei aplicável ao consentimento das partes. In: CARMONA, Carlos Alberto; LEMES, Selma Ferreira e MARTINS, Pedro Batista. 20 anos da lei de arbitragem: homenagem a Petrônio R. Muniz.1ª ed. São Paulo, Atlas, 2017, pp. 694-695).