1. Introdução
A Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, institui novo pressuposto para a admissibilidade do recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Trata-se da exigência de que o recorrente demonstre, na petição de interposição do recurso, “a relevância das questões de direito federal infraconstitucional” nela discutidas (§ 2º do art. 105 da CF, na redação dada pela EC 125).
2. Antecedentes: a antiga arguição de relevância e a repercussão geral
Não se trata de absoluta novidade no direito brasileiro. Antes da Constituição de 1988, quando o recurso extraordinário perante o STF versava também sobre questões de direito federal infraconstitucional, vigorou entre nós a “arguição de relevância”. Foi instituída pela Emenda 3/1975 ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, constitucionalizada pela Emenda Constitucional 7/1977 e extinta pela Constituição de 1988, quando essa instituiu o STJ e o recurso especial – reservando-se o recurso extraordinário perante o STF exclusivamente para as questões constitucionais.
Há diferenças significativas em relação ao pressuposto ora estabelecido – notadamente duas, que conferem à norma atual legitimidade que a antiga arguição de relevância não tinha:
(1ª) a arguição de relevância era o mecanismo utilizável para permitir que fossem admitidos recursos que, em princípio, não seriam cabíveis. Ou seja, no âmbito específico de sua incidência, o princípio geral era o da ausência de relevância. Durante o período em que vigorou a arguição de relevância houve alterações no regime de cabimento do recurso extraordinário sobre questão de lei federal. Mas a relevância sempre foi a exceção à regra, e sua arguição, um mecanismo de inclusão de cabimento. Já com o atual instituto da demonstração de relevância, as coisas se passam no sentido oposto: vigora o princípio da presença de tal repercussão e a constatação de sua ausência, mediante o voto de dois terços dos membros do órgão competente para julgamento, é um meio de exclusão do cabimento recursal;
(2ª) a deliberação sobre a arguição de relevância era feita em sessão secreta (reunião do Plenário sob a forma de “Conselho”) – e a conclusão ali atingida era tornada pública sem nenhuma fundamentação. Sustentava-se até um suposto caráter não-jurisdicional dessa atividade, a fim de justificar a desnecessidade de fundamentação. Já a deliberação sobre a presença da atual relevância deverá ser pública e fundamentada. E para tal conclusão é até desnecessário debater a natureza dessa atividade deliberativa, pois as duas garantias são impostas para toda a atividade do Poder Judiciário, seja ela jurisdicional (CF, art. 93, IX) ou não (CF, art. 93, X).
Outro é o instituto mais próximo da atual demonstração de relevância do recurso especial. Trata-se da demonstração de repercussão geral da questão constitucional objeto de recurso extraordinário (instituída pela EC 45/2004 e regulamentada inicialmente pela Lei 11.418/2016 e agora pela CPC de 2015). Tanto quanto a nova relevância no recurso especial, a repercussão geral é a regra: exige-se o mesmo quórum, de dois terços dos julgadores, para que o recurso extraordinário não seja conhecido por tal fundamento. Além disso, a deliberação sobre o tema no STF também é obrigatoriamente pública e fundamentada (ainda que possa fazer-se mediante julgamento virtual). Os parâmetros já aplicados à repercussão geral certamente serão relevantes para a demonstração de relevância no recurso especial.
3. A noção de relevância da questão
Uma lei infraconstitucional irá regulamentar precisamente a configuração da relevância. De todo modo, há um núcleo conceitual essencial já extraível da Constituição. Relevante será a questão de direito federal infraconstitucional que transcenda o mero interesse das partes envolvidas no caso concreto, seja por sua dimensão econômica, política, social, ética ou jurídica. A própria lei que vier a regulamentar o tema não conseguirá fugir do emprego de conceitos indeterminados, como esses ora usados. Basta ver a definição que o legislador infraconstitucional buscou dar à repercussão geral do recurso extraordinário: “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (art. 543-A do CPC de 1973, instituído pela Lei 11.418, e art. 1.035, § 1º, do atual CPC).
Tal como se dá na repercussão geral do recurso extraordinário, a relevância da questão federal não deverá ser aferida apenas pela perspectiva de que a matéria abranja um grande número de jurisdicionados. A possibilidade de a questão repetir-se em grande número de processos é, sem dúvida, uma das hipóteses de configuração da relevância. Mas não é a única. A relevância igualmente estará presente em questões que, embora sem a tendência de reproduzir-se em significativa quantidade de litígios, versem sobre temas fundamentais para a ordem jurídico-constitucional. Vale dizer, questões cuja solução, apesar de não vir a ser aplicada em termos idênticos em casos repetitivos, poderá constituir um importante vetor na adequada definição do sentido de preceitos normativos federais fundamentais, que repercutem, ainda que de modo indireto, sob os mais variados aspectos na dinâmica das instituições ou mesmo na vida dos jurisdicionados. Em síntese: não se pode aceitar apenas uma relevância quantitativa (o alcance numérico); é também admissível a relevância qualitativa (a profundidade da questão). Sob esse específico aspecto, a retomada do antigo termo “relevância” é até mais adequada do que “repercussão”.
4. Hipóteses de presunção absoluta de relevância (dispensa de demonstração de relevância)
Há hipóteses em que a própria norma constitucional já estabelece a existência da relevância: ações penais; ações de improbidade administrativa; ações cujo valor da causa ultrapasse quinhentos salários-mínimos; ações que possam gerar inelegibilidade; hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, § 3º, I a V, na redação dada pela EC 125).
Além disso, a Constituição prevê que outras hipóteses podem ser estabelecidas pela lei infraconstitucional (art. 105, § 3º, VI, na redação dada pela EC 125).
Em todos esses casos, há presunção absoluta de que a questão federal infraconstitucional é relevante. Ou, em outros termos: nesses casos, não se põe a exigência de demonstração relevância e não cabe negar conhecimento ao recurso especial por falta de tal pressuposto. Ele está dispensado.
Quanto às hipóteses já estabelecidas de dispensa de demonstração de relevância, cabem nesse breve texto apenas três observações entre muitas pertinentes:
(1º) a dispensa aplica-se a todos os recursos especiais interpostos nos processos indicados nos incisos I a IV do § 3º do art. 105, sejam eles dirigidos contra acórdãos com valor de decisão interlocutória ou contra acórdãos com valor de sentença final. A norma constitucional não fez distinções nem limitou a hipótese. Reputou que são relevantes todas as questões discutidas em tais processos;
(2º) o conceito de “jurisprudência dominante”, a que alude o inciso V do § 3º do art. 105, é problemático. Já foi utilizado em textos normativos anteriores e sempre gerou controvérsias. Ele se refere apenas aos pronunciamentos que o STJ tiver emitido com força vinculante ultra partes em julgamentos de casos repetitivos e incidentes de assunção de competência? Ou pode estender-se a outras orientações que, embora não tendo sido objeto de decisões-quadro nesses incidentes, têm sido reiteradamente adotadas? E, nessa segunda hipótese, bastaria a reiteração de pronunciamentos de uma única turma do STJ ou seria necessário mais do que isso? Eis um tema que merece melhor regulamentação em lei infraconstitucional;
(3º) para a hipótese de dispensa do pressuposto da relevância nas causas de valor superior a quinhentos salários-mínimos, permite-se que o recorrente corrija o valor da causa no momento da interposição do recurso (EC 125, art. 2º, parte final). Tal autorização apenas se aplicará aos casos em que, de modo demonstrado, o valor antes atribuído à causa estiver incorreto, de modo a justificar-se a sua correção. Não se trata de permissão para que arbitrariamente se amplie o valor da causa com o exclusivo fito de se obter a dispensa do pressuposto da relevância.
5. Enquadramento como pressuposto processual
Quando aplicável a relevância, por um lado, haverá o ônus de que o litigante demonstre na petição de recurso especial a sua configuração. Esse é um pressuposto de regularidade formal do recurso.
Por outro lado, a própria configuração da relevância da questão infraconstitucional federal também constitui ela mesma um pressuposto da admissibilidade recursal. Concerne ao pressuposto de cabimento recursal: o recurso especial para versar sobre questões relevantes.
A distinção dos dois aspectos é muito importante. A inobservância da simples exigência formal de demonstração é defeito suprível. Aplica-se-lhe o dever de prevenção recursal (CPC, arts. 932, par. ún., e 1.029, § 3º). Já a efetiva falta da relevância é defeito que não comporta correção.
6. Necessidade de regulamentação legislativa
A regra do novo § 2º do art. 105 da CF é expressa ao afirmar que a demonstração da relevância da questão será feita “nos termos da lei”. Portanto, é imprescindível lei que regulamente o instituto. Enquanto não existir essa lei, a relevância da questão não pode ser exigida como pressuposto de admissibilidade do recurso especial.
7. Direito intertemporal
Portanto, é preciso interpretar adequadamente a regra do art. 2º da EC 125, no ponto em que ela afirma que a relevância “será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional”. Isso poderia sugerir que desde 15 de julho de 2022 o novo pressuposto já seria aplicável. Mas não é assim. A exigência só se porá depois que houver a lei regulamentadora dos exatos termos da relevância, conforme o § 2º do art. 105 da CF. Antes disso, é impossível ao jurisdicionado saber qual sua exata dimensão e como deve demonstrá-la.
De resto, é noção assente inclusive no STF e no STJ que novos pressupostos recursais só podem ser aplicados às decisões prolatadas após o início de vigência da nova lei – sob pena de ofensa à segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI). Portanto, o novo pressuposto só será aplicável aos recursos especiais interpostos contra acórdãos prolatados após o início de vigência da lei infraconstitucional que venha a regulamentar o instituto da relevância do recurso especial.