No último dia 15 de outubro aconteceu a 2ª Audiência Pública da Comissão Mista da Medida Provisória nº 1.304/2025. Na ocasião foram ouvidas autoridades setoriais e lideranças de associações de agentes do setor de energia elétrica, cujas apresentações são adiante resumidas:
Rui Altieri, presidente da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia (APINE), classificou o corte de geração (curtailment) como um problema estrutural que não será resolvido no curto prazo, citando dados do ONS que apontam cortes de até 25% da energia solar e eólica disponível em setembro e projeções de que, em 2029, 84% das horas diurnas terão cortes significativos. Apresentando a expansão da GD como uma das causas para o quadro atual, propôs como solução a implementação de um corte contábil ou comercial para a GD, que seria proporcional e operacionalizado mensalmente pela CCEE e distribuidoras, sem custo para o consumidor e sem inviabilizar os projetos, cuja rentabilidade afirma ser superior a 40%. Defendeu ainda que, com base na Lei 14.300, o prossumidor, ao injetar energia na rede, atua como gerador e deve ter as mesmas responsabilidades, sugerindo a inserção de tarifas multipartes, como correta sinalização de preços ao consumidor e mecanismo que concorra para o ressarcimento por cortes por falha na rede, evitando repasses ao consumidor.
Fernanda Delgado, Diretora Executiva da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV), trouxe a perspectiva de um novo polo de consumo, posicionando a indústria de hidrogênio verde como importante instrumento de demanda e solução para o sistema elétrico, capaz de reduzir custos de transmissão e perdas elétricas, principalmente no Nordeste. Argumentou que, sendo uma indústria ultra eletrointensiva, com eletricidade correspondendo a 60% do custo, é muito sensível às mudanças regulatórias. Para viabilizar a carteira de R$ 188 bilhões em investimentos planejados, propôs: 1) a supressão de alterações que limitem a autoprodução com energia existente, garantindo que projetos de hidrogênio, amônia e metanol possam utilizar todas as fontes renováveis, incluindo hidrelétricas; 2) a manutenção do cronograma atual para o fim do desconto no fio (TUST/TUSD) para energias renováveis, opondo-se à sua antecipação; e 3) a harmonização das políticas industriais com a infraestrutura de transmissão, solicitando uma readequação dos prazos das obras para compatibilizá-los com a implantação da nova indústria. Em relação ao curtailment, manifestou apoio à emenda nº 9 apresentada pela ABEÓLICA.
Eduardo Müller Monteiro, Diretor Executivo do Instituto Acende Brasil, apresentou um diagnóstico detalhado sobre o agravamento do curtailment a partir de 2023, que atingiu uma média de 15% de cortes para usinas eólicas e solares nos últimos 12 meses. Argumentou que os cortes não eram previsíveis e apresentou dados de que a Micro e Minigeração Distribuída (MMGD) contribui energeticamente para o excesso de oferta. Como solução para o que classificou como um problema sistêmico, Monteiro propôs um mecanismo de ressarcimento aos geradores com um custo adicional total de 0,85% para o consumidor nos próximos cinco anos. Este valor seria composto por uma parcela de 0,19% ao ano para compensar os cortes passados (de 2021 a 2025) e outra de 0,66% para os cortes futuros, um custo que considerou baixo para evitar a insolvência de projetos e um colapso do setor. Para o futuro, sugeriu conter o problema por meio de soluções como a flexibilidade operativa e o armazenamento de energia, e afirmou que o corte da geração distribuída deixou de ser uma opção, sendo uma necessidade para a segurança do sistema, o que poderia ser gerenciado via precificação horária.
Paulo Sehn, Diretor de Energia da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (ABIAPE), apresentou a necessidade de criar mecanismos de mercado para a contratação de potência e flexibilidade, sem a dependência de encargos e subsídios. Referiu o curtailment como um problema estrutural que afeta não apenas a geração eólica e solar, mas também a hidrelétrica, e que está minando a confiança de financiadores de projetos. Utilizando o exemplo da Califórnia, argumentou que a solução para viabilizar tecnologias como baterias e armazenamento não deve vir de novos encargos sobre o consumidor, mas de um “empilhamento de receita” proveniente de modelos de mercado que permitam preços zero ou negativos e a remuneração de diversos serviços ancilares. Apontou que no modelo brasileiro, apesar de haver grande excedente de geração, os sinais de preço não refletem essa realidade, mantendo preços elevados. Como proposta estrutural, defendeu a melhoria do sinal de preço e a criação de um mercado para serviços ancilares, alertando que, sem isso, encargos futuros para garantir a confiabilidade do sistema, como o Encargo de Potência para Reserva de Capacidade (ERCAP), se tornarão um problema financeiro significativo.
Christiano Vieira da Silva, Diretor de Operação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) apresentou um diagnóstico técnico sobre o curtailment, posicionando-o não como uma causa, mas como consequência da rápida mudança da matriz elétrica brasileira e da inadequação do arcabouço regulatório atual. Detalhou que o principal motivo dos cortes é o excedente de oferta no período diurno, agravado pela perda histórica da capacidade de armazenamento e flexibilidade que as hidrelétricas com reservatório proporcionavam. Apontou o crescimento de 279% das fontes renováveis variáveis (eólica, solar e MMGD) entre 2020 e 2025, contra um aumento de apenas 24% da carga, como a razão matemática do desequilíbrio, afirmando que os cortes de geração são necessários para manutenção do balanço carga-geração e da frequência em 60 Hz, evitando o colapso do sistema.
Apontou dois desafios: o crescimento da MMGD, que hoje soma 42 GW e gera efeitos sistêmicos sem que o ONS tenha supervisão ou controle direto sobre esses recursos, e desempenho da geração centralizada, especialmente no Nordeste, afirmando que a investigação do ONS sobre o blecaute de agosto de 2023 concluiu que os inversores de usinas eólicas e solares não possuíam a capacidade de resposta para controle de tensão necessária à segurança do sistema, levando o ONS a limitar os fluxos de energia para garantir a robustez da rede. Defendeu que a solução envolve investimento em flexibilidade e em armazenamento de energia e apontou a importância de empoderar os centros de operação das distribuidoras para gerenciamento local dos recursos da MMGD e a necessidade de criar elementos que promovam sinais de preço adequados e melhor coordenação da expansão.
José da Costa, Presidente do Conselho da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), citou os 43 GW instalados de MMGD e quase 4 milhões de prossumidores, argumentou que seus participantes não são geradores e submetem-se a regras específicas, não sendo participantes do ONS ou da CCEE, não possuindo outorga e não podendo, portanto, receber o mesmo tratamento os geradores centralizados. Enfatizou a necessidade de preservar a Lei 14.300/22 e refutou a alegação de que a rentabilidade dos projetos de MMGD seria superior a 40%. Apontou a necessidade de investir em armazenamento, inclusive com a participação da geração distribuída. Citou a existência de benefícios da MMGD para as redes de baixa, média e alta tensão, como a melhoria de perdas e o adiamento de investimentos, e afirmou que cortes da MMGD violariam direito do prossumidor.
Elbia Gannoum, Presidente Executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), detalhou que os cortes de geração resultaram em uma perda de R$ 7,1 bilhões para os geradores desde outubro de 2021 e uma perda de 36 TWh de energia. Alertou que o curtailment conduz à inviabilidade financeira dos projetos, que não conseguem honrar seus financiamentos, ao cancelamento de investimentos e à desindustrialização, com fabricantes de turbinas deixando o Brasil. Também ressaltou o impacto socioeconômico negativo no Nordeste, onde a indústria eólica promoveu crescimento do PIB e do IDHM. Como solução principal, defendeu a aprovação da Emenda nº 9 (e nº 40), que propõe uma classificação clara dos diferentes tipos de cortes (energético, elétrico, de segurança) e estabelece que os custos sejam alocados ao sistema e não apenas ao gerador.
Bárbara Rubim, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR), afirmou o impacto do curtailment sobre o setor solar, com cortes de 30% a 70% em algumas usinas nos últimos seis meses, acumulando mais de R$ 1,9 bilhão em prejuízos. Criticou a Resolução 1.030 da ANEEL, que limita o ressarcimento a apenas 10% desses cortes, e defendeu a Emenda nº 9 como uma solução para o problema, que está paralisando mais de R$ 30 bilhões em novos projetos. Defendeu a estabilidade regulatória e a segurança jurídica, pedindo o respeito aos marcos legais já estabelecidos e propôs a criação de um marco legal para o armazenamento de energia, que definiria o agente armazenador, evitaria a dupla cobrança pelo uso da rede e incluiria o armazenamento em mecanismos de incentivo. Apresentou oposição à antecipação do fim do desconto no uso do fio (TUST/TUSD), argumentando que o cronograma da Lei 14.120 deve ser respeitado. Argumentou pelo cumprimento da Lei 14.300/22, criticou o atraso da ANEEL em apresentar o cálculo de custos e benefícios do segmento e diferenciou o prossumidor de MMGD, predominantemente residenciais e comerciais, dos grandes investidores institucionais, afirmando que aplicar a ambos as mesmas regras de corte seria uma política sem equidade que penalizaria cidadãos que acreditaram em uma política pública de Estado.
Sandoval de Araújo Feitosa Neto, Diretor-Geral da ANEEL, posicionou a Agência como uma instituição isenta no debate e afirmou que o cenário atual de elevação de tarifas e perda de sinal de preço é resultado da expansão descoordenada tanto da geração centralizada quanto da distribuída. Questionou a premissa de que o consumidor deva arcar com os custos do curtailment, de que deva pagar por energia não entregue por questões externas, por energia que causa insegurança ao sistema ou por energia que ele não precisa. Informou que a ANEEL está finalizando as Consultas Públicas sobre cortes de energia e armazenamento, e que a agência está pronta para licitar baterias. Reforçou que a ANEEL manifestou ao ONS que a operação segura é inegociável, dando ao operador o respaldo para controlar a geração em situações de emergência, evitando o colapso do sistema. Concluiu afirmando que a solução para o futuro requer a construção de um setor sustentável onde os custos da segurança sejam arcados por todos os usuários.