Sumário: 1. O art. 46 da Lei 8.443 (Lei Orgânica do TCU); 2. As preferências das microempresas (MEs) e empresas de pequeno porte (EPPs) em licitações; 3. A jurisprudência tradicional do TCU sobre declaração falsa em licitação; 4. As normas envolvidas na interpretação do TCU; 5. O Acórdão 1466/2024 e a aplicação do arrependimento eficaz; 6. A analogia com o Direito Penal; 7. O debate sobre o Direito Administrativo Sancionador no STF; 8. Conclusão.
1. O art. 46 da Lei 8.443 (Lei Orgânica do TCU
A Lei Orgânica do TCU estabelece que:
Art. 46. Verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, o Tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até 5 anos, de licitação na Administração Pública Federal.”
Esta sanção tem sido tradicionalmente aplicada aos licitantes que apresentam declarações falsas em processos licitatórios.
2. As preferências das microempresas (MEs) e empresas de pequeno porte (EPPs) em licitações
Microempresas e empresas de pequeno porte gozam de uma série de preferências no âmbito das licitações. Tanto a antiga Lei 8.666 quanto a atual Lei 14.133, assim como a Lei Complementar 123, estabelecem diversas previsões neste sentido. As preferências em favor de MEs e EPPs visam a realizar políticas públicas de desenvolvimento nacional por meio da licitação.
A comprovação da condição de empresa como ME ou EPP é feita por meio de declaração complementar no processo licitatório.
3. A jurisprudência tradicional do TCU sobre declaração falsa em licitação
A jurisprudência do TCU tem sido rigorosa ao interpretar o efeito de declaração falsa em licitação. Predominou o entendimento de que a simples autodeclaração falsa configura fraude à licitação, independentemente da obtenção de vantagem ou da demonstração de dolo.
O Acórdão 61/2019-Plenário representou continuidade deste entendimento do TCU, reafirmado em enunciado decorrente do julgamento que:
“A mera participação de licitante como microempresa ou empresa de pequeno porte, ou ainda como cooperativa (art. 34 da Lei 11.488/2007), amparada por declaração com conteúdo falso de enquadramento nas condições da LC 123/2006, configura fraude à licitação e enseja a aplicação da penalidade do art. 46 da Lei 8.443/1992, não sendo necessário, para a configuração do ilícito, que a autora da fraude obtenha a vantagem esperada.”
O Acórdão 1607/2023-Plenário, relatado pelo Min. Vital do Rêgo, reafirmou essa posição:
“Não é necessária a demonstração de dolo ou má-fé para a aplicação da declaração de inidoneidade. Basta a participação com declaração falsa.”
4. As normas envolvidas na interpretação do TCU
O debate conecta-se ao art. 46 da Lei 8.443/1992, que prevê a declaração de inidoneidade em caso de fraude comprovada à licitação.
Ao lado dele, o art. 15 do Código Penal estabelece que quem “voluntariamente desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”.
Já a Lei Complementar 123/2006, em seus arts. 1º e 3º, delineia os limites objetivos do enquadramento de ME/EPP e as situações em que o benefício não é admissível.
5. O Acórdão 1466/2024 e a aplicação do arrependimento eficaz
No recente Acórdão 1466/2024 – Plenário, o TCU analisou o caso de uma empresa que se autodeclarou como de pequeno porte para obter a preferência prevista na Lei Complementar n. 123/2006, em pregões da Câmara dos Deputados e da empresa pública Mútua de Assistência dos Profissionais da Engenharia, Arquitetura e Agronomia. Não obstante, foi constatado que a empresa não poderia se beneficiar das preferências por ter sócio que possuía mais de 10% do capital de outra empresa que não se enquadrava como ME ou EPP (LC 123, art. 3, § 4).
Antes da obtenção de qualquer vantagem, a empresa corrigiu sua declaração e adotou medidas para evitar prejuízo aos certames. Em um dos casos, enviou correspondência ao pregoeiro esclarecendo que não usufruída dos benefícios de ME/EPP ainda antes da abertura da sessão pública. No outro, em que já havia sido realizada a sessão pública e que a empresa estava classificada em 1º lugar, provocou a sua própria desclassificação do certame.
Embora a unidade técnica do TCU tenha proposto a aplicação da sanção de inidoneidade seguindo a jurisprudência da Corte, o Plenário, acompanhando voto do Ministro Relator Benjamin Zymler, reconheceu que a empresa corrigiu sua conduta voluntariamente no curso do processo licitatório.
Essa “retificação da conduta” levou o TCU a afastar a penalidade e a considerar a representação improcedente.
“A representada neutralizou os efeitos de sua conduta no curso das licitações […]. Compreendo que ela não praticou o fato típico descrito no art. 46 da Lei 8.443/1992” (TCU, Acórdão 1466/2024, Min. Benjamin Zymler).
O Boletim de Jurisprudência nº 504 do TCU trouxe síntese expressiva:
Não cabe a aplicação da sanção de inidoneidade para participar de licitação na Administração Pública Federal (art. 46 da Lei 8.443/1992) a licitante que adota voluntariamente as providências necessárias para retificar declaração indevida de beneficiário do tratamento diferenciado previsto na LC 123/2006 ou para neutralizar seus efeitos no curso do certame. Em tal situação, não há prática do fato típico descrito no mencionado artigo da Lei Orgânica do TCU, e sim a ocorrência de desistência voluntária e arrependimento eficaz, sendo aplicável, por analogia, o art. 15 do Código Penal, constituindo causas excludentes de tipicidade.
Embora o TCU tenha estabelecido exceção à linha jurisprudencial que vinha adotando, permanece válido o entendimento de que a simples declaração falsa pode ensejar sanção, conforme o Acórdão 1483/2024-Plenário. Como reconheceu o Relator, “a situação em análise, de fato, distingue-se dos casos analisados pela jurisprudência do Tribunal”.
6. A analogia com o Direito Penal
A tese adotada consistiu no reconhecimento do TCU de que, em situações de correção espontânea e integral dos efeitos de uma declaração indevida, não se configura fraude sancionável.
A decisão do TCU se baseou na aplicação, por analogia, de conceito do Direito Penal: a desistência voluntária que configura arrependimento eficaz. Segundo o art. 15 do Código Penal, “o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”.
O acórdão 1. 466/2024 entendeu que, ao neutralizar os efeitos da falsa declaração antes de causar prejuízo à Administração, a empresa não chegou a praticar o “fato típico” de fraude à licitação. A decisão privilegiou a ausência de dano sobre o ato inicial, demonstrando a relevância do resultado final da conduta.
7. O debate sobre o Direito Administrativo Sancionador no STF
A decisão do TCU alinha-se a um debate mais amplo no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a aplicação de princípios do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador. Em julgamento no ARE 843.989, o Ministro Nunes Marques argumentou que “Em face de uma pretensão punitiva, quer no âmbito penal, quer no campo administrativo, o regime jurídico aplicável é o de direito sancionador, garantindo ao particular os mesmos direitos e garantias fundamentais”. Por outro lado, o Ministro Alexandre de Moraes defendeu a distinção entre ambos.
Para Júlia Venzi Guimarães (InfoJusten 190) “a falta de precisão a respeito das premissas do direito administrativo sancionador gera complicações que transcendem o caso concreto”. A decisão do TCU reflete essa complexidade, mostrando que a aplicação de institutos penais, quando bem ponderada, pode levar a resultados mais proporcionais no campo administrativo.
8. Conclusão
A aplicação do arrependimento eficaz no âmbito das licitações constitui inovação relevante da jurisprudência do TCU. Essa interpretação prestigia a boa-fé, a proporcionalidade e a teleologia das normas sancionatórias.
Não se trata de admitir “erro escusável”, mas de reconhecer que, quando o particular elimina integralmente os efeitos de sua conduta, não se consuma a tipicidade exigida pela lei para a declaração de inidoneidade.
Esse entendimento alinha-se à concepção, já destacada pela doutrina de Marçal Justen Filho, pela qual o direito sancionador deve ser interpretado de modo a preservar o equilíbrio entre repressão à fraude e proteção de condutas corretivas eficazes.
Leia também:
GUIMARÃES, Júlia Venzi. O direito administrativo sancionador aos olhos do STF: uma breve exposição do acórdão do ARE 843.989. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 190, dezembro de 2022, disponível em http://www.justen.com.br, acesso em 22. Ago. 2025.

