1. Introdução
O novo marco legal das ferrovias, instituído pela Lei 14.273, de 21 de dezembro de 2021, trouxe modificações relevantes no que diz respeito à organização e exploração do serviço de transporte ferroviário. A chamada Lei das Ferrovias busca atender a reconhecida necessidade de ampliação de investimentos privados no setor, na tentativa de facilitar a entrada de novos operadores e estimular a criação de um ambiente mais competitivo, que permita a otimização e expansão da capacidade ferroviária nacional.
Ressalte-se que uma das principais inovações consiste na possibilidade de exploração de ferrovias por meio da outorga de autorizações.
Não obstante, é inegável que alguns aspectos das autorizações ferroviárias demandam regulamentação (como já previam, por exemplo, os arts. 21, 25 e 28 da Lei 14.273/2021). Nesse contexto, as audiências públicas recentemente convocadas pela ANTT (de n.os 4/2022 e 5/2022) destinam-se precisamente a colher contribuições voltadas ao aprimoramento do processo de outorga das autorizações e dos respectivos contratos.
2. A exploração das ferrovias
As ferrovias podem ser exploradas diretamente (pela União, Distrito Federal, Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências) ou indiretamente, mediante a outorga de concessão ou autorização a agentes privados.
A exploração direta somente pode ser admitida nas hipóteses previstas no art. 173 da Constituição, quando revelar-se necessária aos imperativos de segurança nacional ou estiver vinculada à consecução de relevante interesse coletivo. Nesse caso, deve ser exercida por entidades estatais especializadas1.
A exploração indireta das ferrovias poderá ser exercida pelos operadores ferroviários a partir de dois regimes distintos.
O regime de direito público (previsto no art. 10 da Lei 14.273/2021) contempla as tradicionais concessões de serviço público, outorgadas aos particulares mediante licitação, na forma da Lei 8.987/1995. Por sua vez, o regime privado (instituído pelo art. 19 da Lei 14.273/2021) é operacionalizado por meio das autorizações ferroviárias, que se constituem como instrumentos mais maleáveis, destituídos de algumas das obrigações e garantias típicas dos contratos de concessão (como, por exemplo, o dever de reversão dos bens ao patrimônio público e a garantia de intangibilidade da equação econômico financeira originalmente estabelecida).
Cumpre ressalvar que a coexistência de diferentes regimes, dotados de características e especificidades que lhes são próprias, pressupõe a existência de intensa fiscalização e regulamentação das atividades. Disso decorre a previsão expressa no sentido de que cabe “aos órgãos de defesa da concorrência, concorrentemente com o regulador ferroviário, a repressão a práticas anticompetitivas e ao abuso do poder econômico na exploração indireta de ferrovias” (nos termos do § 3º do art. 7º da Lei 14.273/2021).
É evidente que não seria possível admitir que a expansão da malha ferroviária e o incremento de investimentos privados no setor se dessem às custas dos contratos de concessão já celebrados. E é precisamente por isso que a Lei 14.273/2021 demonstra preocupação em garantir a harmônica convivência entre os diferentes modelos de exploração legalmente previstos.
3. As autorizações ferroviárias2
As autorizações constituem, em tese, instrumentos mais flexíveis, se comparados às concessões e permissões3 de serviço público. O risco da operação e dos investimentos é essencialmente privado, sem que se assegure o equilíbrio econômico-financeiro do contrato ou que se admita a imposição unilateral de eventuais obrigações ou modificações contratuais – o que, por consequência, tende a resultar na incidência de uma regulação estatal menos intensa.
Caberá ao ente regulador examinar e processar os requerimentos, realizar eventual chamamento público (quando cabível), celebrar os respectivos contratos e fiscalizar as atividades dos autorizatários, especialmente sob a perspectiva da sua adequação e da defesa da concorrência. Porém, a margem de atuação administrativa é significativamente mais reduzida do que aquela que se verifica no âmbito das ferrovias exploradas sob o regime público (no bojo das quais se admite a modificação dos encargos dos concessionários, desde que mantido o equilíbrio contratual)4.
3.1. O procedimento legalmente estabelecido para a outorga das autorizações5
A outorga de autorização para exploração de novas ferrovias, pátios e demais instalações acessórias pressupõe a apresentação de requerimento dirigido ao ente regulador (ANTT) ou a participação do particular interessado em processo de chamamento público conduzido pelo Poder Executivo.
3.1.1. Os requerimentos de autorização ferroviária
Nos termos do § 1º do art. 25 da Lei 14.273/2021, o interessado em obter a autorização deverá apresentar requerimento instruído com (i) a minuta do contrato de adesão e o memorial com a descrição do empreendimento e das fontes de financiamento pretendidas, (ii) o relatório técnico descritivo (contendo, no mínimo, as informações relevantes sobre o georreferenciamento, a configuração logística e os aspectos urbanísticos, as características e especificações operacionais e o cronograma de implantação ou recapacitação da infraestrutura ferroviária) e (iii) as certidões de regularidade fiscal do requerente.
O ente regulador6 analisará a convergência do pleito com as políticas públicas do setor ferroviário e dará publicidade ao extrato do referido requerimento. Em seguida, incumbe-lhe a análise dos estudos e projetos apresentados, considerando inclusive a viabilidade do empreendimento proposto frente às demais ferrovias já implantadas ou outorgadas, com a consequente prolação e publicação de decisão fundamentada sobre a outorga da autorização (§§ 3º e 4º).
Conforme expressa previsão legal, “nenhuma autorização deve ser negada, exceto por incompatibilidade com a política nacional de transporte ferroviário ou por motivo técnico-operacional relevante, devidamente justificado” (§ 6º).
Trata-se, portanto, de decisão administrativa vinculada. Uma vez cumpridas as exigências legalmente estabelecidas, as autorizações ferroviárias devem ser outorgadas ao requerente.
3.1.2. O chamamento público
O processo de chamamento público pode ser realizado, a qualquer tempo, pelo Poder Executivo com vistas a identificar a existência de potenciais interessados na obtenção de autorização para a exploração de ferrovias (i) não implantadas, (ii) ociosas (em malhas com contratos de concessão em vigor) ou (iii) em processo de devolução ou desativação (art. 26 da Lei 14.273/2021).
Ao que se infere, a realização de tal processo não configura uma imposição legal. O legislador não previu a sua obrigatoriedade, pelo que nada impede que os trechos em questão sejam outorgados aos particulares mediante a análise e deferimento de requerimentos de autorização formulados nos termos do art. 25 (v. tópico anterior).
As ferrovias não implantadas abrangem eventuais trechos cuja operação é relevante aos interesses coletivos e às políticas públicas do setor, mas que ainda não são objeto de exploração.
Já os trechos ociosos são caracterizados pela existência, em ferrovias outorgadas em regime público, de bens reversíveis não explorados pela então concessionária, abarcando também os trechos que não contam com tráfego comercial há mais de 2 (dois) anos ou aqueles retomados pelo regulador em decorrência do descumprimento das metas de desempenho contratualmente definidas, também por mais de 2 (dois) anos (§ 2º do art. 26).
A desativação e devolução, por sua vez, são disciplinadas pelo art. 15 do referido diploma normativo, podendo ser requerida pelas concessionárias no que diz respeito aos trechos outorgados previamente à edição da Lei 13.448/20177, desde que não apresentem tráfego comercial nos 4 (quatro) anos que antecedem o pedido ou sejam de operação comprovadamente antieconômica no âmbito do respectivo contrato de concessão, em razão da extinção ou do exaurimento das fontes de carga. Preenchidos os requisitos necessários para o deferimento do pedido, que incluem o pagamento de indenização pela concessionária e a apresentação de estudo técnico que indique as alternativas de destinação dos bens vinculados ao referido trecho (nos termos dos §§ 2º e 3º do art. 15), o traçado em questão poderá ser outorgado a um novo particular no bojo do processo de chamamento público.
Cumpre ressalvar que, se houver interessado na exploração dos trechos ociosos ou em processo de devolução/desativação, será promovida a cisão da malha da atual concessionária em favor da nova autorização a ser outorgada, sem prejuízo de eventuais ressarcimentos por ela devidos (os quais devem ser pagos no momento da cisão ou por ocasião da extinção do contrato de concessão) e da necessidade de celebração de aditivo contratual.
O chamamento público deve obrigatoriamente indicar (i) o trecho ferroviário a ser outorgado; (ii) o perfil de cargas e passageiros transportados, quando aplicável, (iii) o rol de bens que constituem a infraestrutura ferroviária, quando for o caso e (iv) o valor mínimo exigido pela outorga, o qual deve ser pago no ato de assinatura do referido contrato. Além disso, o correspondente edital pode ou não ser instruído com eventuais estudos, projetos e licenças já obtidos pelo Poder Executivo (art. 27 e par. único).
Ao final do processo, o ente regulador deve examinar as propostas e tomar a sua decisão. Em havendo uma única proposta, a autorização deverá ser expedida ao particular que a apresentou. Por outro lado, verificando-se a existência de mais de uma proposta (i.e., mais de um interessado pelo mesmo trecho), caberá ao regulador “promover processo seletivo público, na forma do regulamento”, tendo como um dos critérios de julgamento a maior oferta de pagamento pela outorga (art. 28 e par. único).
Ressalve-se que a expressa menção à necessidade de regulamentação adquire especial relevância diante da hipótese legalmente prevista.
A redação normativa poderia ter aludido aos procedimentos estabelecidos em outros diplomas normativos (como, por exemplo, os das Leis 8.987/1995 ou Lei 14.133/2021), mas não o fez. A tendência é que se estabeleça um regime de seleção simplificado, mais compatível com o espírito da Lei 14.273/2021 e com a flexibilidade que caracteriza as autorizações ferroviárias. Em todo caso, deverão ser observados os princípios que regem a Administração Pública, tais como a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
3.2. Os contratos de autorização
3.2.1. A disciplina normativa
O regramento legalmente estabelecido no que se refere aos contratos de autorização é bastante simples.
O art. 29 da Lei 14.273/2021 limita-se a prever que tais contratos devem conter: (i) o objeto da autorização; (ii) o prazo de vigência (que pode ser de 25 a 99 anos); (iii) o cronograma de implantação dos investimentos; (iv) os direitos e deveres dos usuários; (v) as hipóteses de responsabilização pela inexecução ou pela execução deficiente do contrato; (vi) as hipóteses de extinção contratual; (vii) a previsão atinente à obrigatoriedade da prestação de informações de interesse do poder público; (viii) as penalidades cabíveis e sua forma de aplicação; (ix) o foro e forma de solução extrajudicial de divergências; e (x) as condições para promoção de desapropriações.
A disciplina prevista reafirma a responsabilidade do autorizatário pelos investimentos a serem realizados, “por sua conta e risco”, bem como pelos ônus relativos à fase executória dos procedimentos de desapropriação necessários à criação, expansão e modernização das instalações ferroviárias (§§ 1º a 3º).
Por fim, o § 6º veda expressamente a inclusão de eventuais cláusulas contratuais que atribuam o direito à manutenção do equilíbrio econômico financeiro ou legitimem a imposição unilateral de vontades.
3.2.2. Os contratos de adesão submetidos à audiência pública
Como será examinado a seguir, a minuta dos contratos de adesão que vinham sendo considerados pelo Ministério da Infraestrutura e pela ANTT vai muito além daquilo que prevê a Lei8.
Verifica-se, por exemplo, o estabelecimento de previsões que tratam da possibilidade de ampliação ou atualização dos traçados das ferrovias autorizadas, bem como do aumento da capacidade de transporte ou de armazenagem e da diversificação do uso da infraestrutura (itens 1.2 a 1.4).
O contrato prevê também o cabimento da transferência de titularidade da autorização a terceiros e fixa algumas das premissas para tanto, impondo a obrigatoriedade de preservação do objeto outorgado e das demais condições originalmente verificadas por ocasião da formulação do requerimento pelo titular original (item 2.3 e seguintes).
Além disso, fixa o prazo a ser observado para fins de manifestação do interesse na prorrogação contratual, indicando que a autorizatária deverá apresentar o seu pedido com antecedência mínima de 1 (um) ano do término da vigência do contrato (item 3.3).
No mais, disciplina questões atinentes ao cronograma de implantação dos investimentos e ao início da operação da ferrovia, tratando também das prerrogativas da ANTT e dos direitos e deveres da autorizatária e dos usuários do serviço (itens 4 a 8), da responsabilização da autorizatária pela inexecução ou execução deficiente do contrato (itens 9 e 12), das condições a serem observadas para promoção de desapropriações e para o início da execução das obras (itens 10 e 11), das hipóteses de extinção da autorização (item 13), da irreversibilidade dos bens (item 14) e de aspectos relativos à solução de eventuais controvérsias (itens 16 e 17).
3.3. A extinção da autorização ferroviária
Os arts. 30 e seguintes da Lei 14.273/2021 preveem as seguintes hipóteses de extinção da outorga: (i) decurso do prazo contratual; (ii) cassação, pela perda das condições indispensáveis à continuidade da autorização (por negligência, imperícia ou abandono); (iii) caducidade, provocada pela prática de infrações graves; (iv) decaimento, nas hipóteses em que eventual alteração normativa superveniente vier a vedar o tipo de atividade da autorização ou a suprimir a exploração em regime privado9; (v) renúncia pela autorizatária; (vi) anulação derivada de irregularidade insanável no ato de outorga; e (vii) falência.
Admite-se ainda uma espécie de “extinção parcial” da autorização, nos termos do art. 36, uma vez que a autorizatária poderá desativar determinados trechos ferroviários que lhe haviam sido outorgados, mediante prévia comunicação ao ente regulador, com antecedência mínima de 180 (cento e oitenta) dias – comunicação esta que deverá ser tornada pública. Tais trechos poderão ser posteriormente alienados a novo investidor (conforme o § 1º).
3.4. A possibilidade de adaptação dos contratos de concessão
Admite-se que os concessionários com contratos vigentes requeiram a adaptação para o regime de autorização caso uma nova ferrovia venha a ser construída por pessoa jurídica concorrente ou integrante do mesmo grupo econômico do particular contratado, conforme prevê o art. 64 da Lei 14.273/2021.
Em linhas gerais, o concessionário poderá optar pelo regime de autorização, promovendo os necessários ajustes em seu contrato, caso repute conveniente competir com o autorizatário no eventual atendimento de determinado mercado logístico (inc. I) ou ainda caso tenha interesse em expandir a extensão ou a capacidade ferroviária, desde que abrangendo o mesmo mercado relevante e em percentual não inferior a 50 % (inc. II).
A referida adaptação deverá ter como parâmetro a busca pela eficiência econômica, estando condicionada à (i) oitiva dos órgãos de defesa da concorrência e de planejamento setorial, (ii) inexistência de multas ou encargos setoriais não pagos à União, (iii) manutenção das obrigações financeiras, de investimento e de transporte anteriormente estabelecidas, (iv) prestação de serviço adequado e (v) manutenção do serviço de transporte de passageiros caso o concessionário já opere eventual linha regular.
4. As audiências públicas recentemente realizadas pela ANTT
Em 19 de julho de 2022, encerrou-se o prazo para apresentação de contribuições voltadas a colher subsídios para o aprimoramento do contrato de adesão e do procedimento a ser observado para o requerimento de autorizações (conforme Audiências Públicas n.os 04 e 05/2022, respectivamente).
A despeito da inequívoca relevância da iniciativa adotada pela Agência, que representa mais um importante passo para a efetiva implantação de um regime mais competitivo e flexível para o transporte ferroviário, as preocupações manifestadas pelo setor demonstram que alguns assuntos ainda precisam ser mais bem debatidos e (ou) amadurecidos.
A seguir elencam-se alguns dos principais pontos de discussão levados à ANTT por contribuições de interessados na regulamentação que está sendo discutida.
4.1. Subjetividade de critérios e exigência de celeridade e transparência
Algumas das contribuições apresentadas pretendem discutir a falta de objetividade de definições constantes da minuta de resolução que tratará dos requerimentos de autorização a serem submetidos à Agência Reguladora.
Questões relacionadas à aferição da compatibilidade locacional dos empreendimentos e dos aspectos técnico-operacionais (arts. 5º e 6º da minuta), por exemplo, não estão bem delineadas e não detalham clara e precisamente os conceitos abertos colocados pela Lei 14.273/2021. Diante disso, as contribuições ressalvam a necessidade de aprofundamento desses conceitos, de modo a garantir uma maior agilidade na apreciação dos requerimentos e evitar eventuais divergências quanto ao cumprimento das condições necessárias à outorga de autorizações.
Outra indefinição, apontada pelos agentes do setor, diz respeito aos critérios de seleção de preferência dos requerentes nos casos de requerimentos que envolvem a sobreposição de faixas de domínio (art. 7º). Os arts. 4º e 5º da Lei 14.273/2021 estabelecem apenas diretrizes gerais sobre essa questão e a proposta de resolução não define critérios objetivos de seleção.
Também aqui se está diante de aspecto essencial para a atratividade dos empreendimentos e para a realização de novos investimentos, os quais pressupõem a definição de condições claras e precisas, inclusive no tocante à definição de preferência. Verifica-se, ainda, a apresentação de diversas contribuições voltadas ao estabelecimento de prazos e procedimento relacionados às análises a serem conduzidas pela ANTT (como, por exemplo, aquela prevista no item 2.3 da minuta do contrato de adesão, exigida para fins de eventual transferência da titularidade da autorização).
É inegável que o novo marco legal das ferrovias tem por objetivo simplificar e conferir maior segurança jurídica aos investimentos privados no setor.
Daí porque se observa a preocupação dos diferentes agentes com a necessidade de se prever um regramento que confira celeridade e transparência aos procedimentos a serem observados, tanto no que diz respeito aos requerimentos de autorização como no que se refere à própria exploração do serviço de transporte ferroviário e seus diversos aspectos operacionais.
4.2. Destaque à autonomia privada do autorizatário
As audiências retrataram, ainda, a discussão de aspectos relacionados à autonomia privada do autorizatário e sua liberdade negocial.
Questionou-se, por exemplo, a conveniência de se estabelecer como direito do usuário a transferência de capacidade originalmente adquirida do operador/autorizatário. O item 8.1, VI, da minuta do contrato de adesão estabelece esse direito.
No entanto, algumas das contribuições solicitam uma maior reflexão acerca da inclusão de tal previsão contratual, sob a ótica de que o assunto poderia ser mais bem disciplinado pelos contratos privados celebrados entre operadora e usuário. Isto porque a referida disposição contratual, nos termos em que prevista no contrato, poderia vir a criar um mercado secundário de venda da capacidade de transporte.
Por outro lado, não se pode desconsiderar a hipótese de a referida disposição vir a atender eventuais necessidades já identificadas pelo setor, permitindo que a capacidade excedente seja realocada pelos usuários com maior facilidade e contribuindo, assim, para o incremento de investimentos em razão de uma maior disposição em celebrar contratos de transporte.
Também foram apresentadas contribuições sobre: (i) a necessidade de comunicação prévia à ANTT quanto ao aumento de capacidade de transporte e/ou de armazenagem da ferrovia autorizada (item 1.4 da minuta dos contratos); (ii) a possibilidade de flexibilização para ajustes no cronograma de investimentos relacionado aos contratos (item 4.1.1 da minuta); e (iii) o dever de compartilhamento de infraestrutura essencial com possibilidade de livre negociação, dentre outros assuntos.
Significativa parcela das contribuições parte do pressuposto de que a outorga de autorizações deve ser tida como regra, apenas podendo ser negada nas hipóteses em que verificado o descumprimento dos requisitos legalmente estabelecidos ou identificada eventual incompatibilidade com a política nacional de transportes ou com circunstâncias técnico-operacionais relevantes (nos termos do § 6º do art. 25). Diante disso, caberia aos contratos estabelecerem um regramento compatível com tal premissa, sem que estabeleçam exigências ou formalidades excessivas no que diz respeito a aspectos relativos à expansão ou operacionalização dos serviços outorgados por meio das autorizações.
4.3. Compartilhamento de infraestrutura
Ainda sob a ótica da segurança jurídica, várias contribuições foram apresentadas no sentido de demandar a definição dos conceitos de “direito de passagem” e de “tráfego mútuo” e de requerer maiores esclarecimentos a respeito a operacionalização do compartilhamento da infraestrutura ferroviária.
O assunto é complexo e certamente merece atenção por parte da ANTT.
Mesmo que se esteja diante de ferrovias exploradas sob regime jurídico de direito privado, não se pode destacar a possibilidade/necessidade de a infraestrutura outorgada ao autorizatário precisar ser compartilhada com outros operadores. Embora a Lei 14.273/2021 estabeleça algumas das regras a serem observadas para tanto (art. 41 e ss.), é recomendável que os direitos e obrigações do autorizatário também restem adequadamente definidos no bojo dos contratos de adesão a serem firmados, considerando-se inclusive as peculiaridades de cada malha.
4.4. Questões relacionadas à desapropriação para implantação de ferrovia
Uma característica interessante das autorizações ferroviárias diz respeito à possibilidade de o autorizatário realizar desapropriações de áreas para implantação da ferrovia a ser explorada em regime privado. É o que se extrai o art. 29, § 2º, da Lei 14.273/2021, que indica que a “autorizatária arcará com os custos e riscos da fase executória do procedimento de desapropriação”10.
Nesse contexto, o item 10.4 da minuta do contrato de adesão define “a título de penalidade, 30% do valor de mercado do imóvel desapropriado na hipótese de não ter sido dada a destinação do imóvel à prestação do serviço de transporte ferroviário, ou quando houver desativação de trecho/área obtidos mediante desapropriação”.
A esse respeito, algumas das contribuições apresentadas nas audiências públicas questionam a validade da referida penalidade, especialmente diante da ausência de previsão legal expressa e do critério estabelecido para o cálculo da referida multa (qual seja, o valor de mercado do imóvel na data em que verificada a eventual inexecução do trecho, nos termos do item 10.4.2).
Ainda que as autorizações necessariamente impliquem na realização de investimentos por conta e risco dos particulares, é essencial que os ônus assumidos sejam razoáveis e efetivamente considerem as condições passíveis de serem geridas no curso da exploração ferroviária. Considerando que se está diante de contratos de longa duração, que podem chegar a 99 anos, a flutuação dos valores imobiliários tem impactos significativos sobre a matriz de riscos pactuada, de modo que é pouco provável que os particulares estejam dispostos a assumir obrigações que possam resultar em multas exorbitantes e/ou desproporcionais.
4.5. Forma de resolução de conflitos (judicial ou arbitragem)
Apesar de a minuta dos contratos de adesão conter previsão de resolução de conflitos por meio de mediação ou pela via judicial (itens 16 e 17 da minuta dos contratos), algumas das contribuições apresentadas tratam da possibilidade de se inserir eventual previsão contratual que admita a a instauração de arbitragem. Trata-se de hipótese que já havia sido considerada pela própria ANTT nos estudos relacionados à regulamentação que está em discussão e que, em tese, teria o potencial de permitir soluções mais técnicas e céleres para os possíveis conflitos decorrentes da exploração das autorizações ferroviárias.
Conforme a Nota Técnica 2179/2022/GEREF/SUFER/DIR da ANTT, “fica a Agência facultada a celebrar compromisso arbitral, caso entenda que, diante determinada situação, seja essa a melhor forma de resolução de conflitos. […] Neste sentido, afigura-se mais adequado que a referida decisão seja tomada pelas partes, caso a caso” (item 5.14.2).
5. Considerações finais
Diante do exposto, é essencial que os institutos estabelecidos pela Lei 14.273/2021 sejam bem interpretados e regulamentados pela Agência Reguladora, a fim de que o referido diploma normativo consiga contribuir para o alcance das finalidades a que se propõe. As audiências públicas ainda em curso são uma etapa importante nesse processo, colaborando para a reflexão e definição de temas tidos como relevantes para o setor.
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1 Veja-se que o Decreto 11.081/2022, recentemente promulgado pelo governo federal, autorizou a incorporação da Empresa de Planejamento e Logística S.A. (EPL) pela Valec, de modo a permitir a criação da Infra S/A. Tendo em vista as competências legalmente atribuídas à Valec no que diz respeito à administração e exploração do sistema de transporte ferroviário (nos termos do art. 9º da Lei 11.772/2008), embora o referido processo de incorporação ainda esteja em curso, a nova estatal criada tende a assumir relevante papel no setor.
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2 A propósito das autorizações ferroviárias, do procedimento de outorga e da Medida Provisória (n.º 1.065/2021) que antecedeu a Lei das Ferrovias, confira-se o artigo de Rafael Wallbach Schwind, publicado na edição de setembro/2021 deste periódico (Informativo n.º 175): https://justen.com.br/pdfs/IE175/Rafael-Autoriz-ferroviarias.pdf.
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3 Note-se que a Lei 10.233/2001 admitia a outorga da operação mediante permissão quando se tratasse da prestação de serviço de transporte ferroviário de passageiros, não associado à exploração da infraestrutura (art. 13, inc. IV, “b”). Não obstante, tal disposição foi revogada pela Lei 14.237/2021.
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4 Daí porque a proposta de norma da ANTT tendente a regulamentar os requerimentos de autorização é bastante simplificada (como se verifica no bojo do Processo 50500.018372/2022- 43 da Agência).
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5 Como esclarece Rafael Wallbach Schwind, alguns estados (Mato Grosso, Pará e Minas Gerais) já instituíram as autorizações ferroviárias estaduais, sendo que existem outros projetos no mesmo sentido em curso. A tendência é que, com o passar do tempo, tal possibilidade venha a ser utilizada também pelos demais entes da federação e não apenas pela União (cf. artigo publicado no Informativo n.º 175).
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6 Embora a Lei aluda a ente regulador, a análise atinente à convergência do pleito e a publicação do extrato do requerimento vinham sendo conduzidas até então pelo Ministério da Infraestrutura, enquanto a verificação da compatibilidade locacional do empreendimento é realizada pela ANTT (como consta do site do governo federal: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre_antigo/programa-de autorizacoes-ferroviarias/faca-seu-requerimento – Acesso em 25.07.22).
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7 A limitação estabelecida pela regra em comento aparenta ter tido a intenção de resguardar as condições estabelecidas nos contratos que foram objeto de prorrogação antecipada, com base na Lei 13.448/2017. Assim, impede-se que um concessionário que teve o prazo de vigência do seu contrato estendido pretenda, após a prorrogação, promover a desativação ou devolução de determinados trechos, contrariando as premissas que haviam sido consideradas
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8 Minuta dos contratos de adesão disponível em: https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx?Cod igoAudiencia=499.
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9 Ressalve-se que, na hipótese de a lei vedar a atividade, o decaimento apenas será decretado se for impossível a manutenção das autorizações já expedidas (§ 1º do art. 33). Além disso, a operadora poderá manter suas atividades até a amortização de seu investimento ou deverá ser indenizada pelos ativos não amortizados (conforme o § 2º do referido dispositivo).
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10 As desapropriações, aliás, não ocasionarão a reversibilidade dos bens desapropriados ao Poder Público ao final da autorização. Conforme dispõe a Nota Técnica 2179/2022/GEREF/SUFER/DIR da ANTT, em que se discute a minuta padrão do contrato de adesão para autorizações ferroviárias, considerou-se justamente que a reversão desses bens “configuraria uma espécie de confisco, sem previsão legal” (item 5.10.2).