Informativo Eletrônico - Edição 185 - Julho / 2022

AUTORIZAÇÕES FERROVIÁRIAS E REGULAMENTAÇÃO

Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Victor Hugo Pavoni Vanelli

1. Introdução

 O novo marco legal das ferrovias, instituído pela Lei 14.273, de 21 de  dezembro de 2021, trouxe modificações relevantes no que diz respeito à  organização e exploração do serviço de transporte ferroviário. A chamada Lei  das Ferrovias busca atender a reconhecida necessidade de ampliação de  investimentos privados no setor, na tentativa de facilitar a entrada de novos  operadores e estimular a criação de um ambiente mais competitivo, que  permita a otimização e expansão da capacidade ferroviária nacional. 

Ressalte-se que uma das principais inovações consiste na possibilidade  de exploração de ferrovias por meio da outorga de autorizações. 

Não obstante, é inegável que alguns aspectos das autorizações  ferroviárias demandam regulamentação (como já previam, por exemplo, os arts. 21, 25 e 28 da Lei 14.273/2021). Nesse contexto, as audiências públicas  recentemente convocadas pela ANTT (de n.os 4/2022 e 5/2022) destinam-se  precisamente a colher contribuições voltadas ao aprimoramento do processo  de outorga das autorizações e dos respectivos contratos. 

2. A exploração das ferrovias

As ferrovias podem ser exploradas diretamente (pela União, Distrito  Federal, Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências)  ou indiretamente, mediante a outorga de concessão ou autorização a agentes  privados.

A exploração direta somente pode ser admitida nas hipóteses previstas  no art. 173 da Constituição, quando revelar-se necessária aos imperativos de  segurança nacional ou estiver vinculada à consecução de relevante interesse  coletivo. Nesse caso, deve ser exercida por entidades estatais especializadas1.

A exploração indireta das ferrovias poderá ser exercida pelos  operadores ferroviários a partir de dois regimes distintos. 

O regime de direito público (previsto no art. 10 da Lei 14.273/2021)  contempla as tradicionais concessões de serviço público, outorgadas aos  particulares mediante licitação, na forma da Lei 8.987/1995. Por sua vez, o  regime privado (instituído pelo art. 19 da Lei 14.273/2021) é operacionalizado  por meio das autorizações ferroviárias, que se constituem como instrumentos  mais maleáveis, destituídos de algumas das obrigações e garantias típicas dos contratos de concessão (como, por exemplo, o dever de reversão dos bens ao  patrimônio público e a garantia de intangibilidade da equação econômico financeira originalmente estabelecida).

Cumpre ressalvar que a coexistência de diferentes regimes, dotados de  características e especificidades que lhes são próprias, pressupõe a existência  de intensa fiscalização e regulamentação das atividades. Disso decorre a  previsão expressa no sentido de que cabe “aos órgãos de defesa da  concorrência, concorrentemente com o regulador ferroviário, a repressão a  práticas anticompetitivas e ao abuso do poder econômico na exploração  indireta de ferrovias” (nos termos do § 3º do art. 7º da Lei 14.273/2021). 

É evidente que não seria possível admitir que a expansão da malha  ferroviária e o incremento de investimentos privados no setor se dessem às custas dos contratos de concessão já celebrados. E é precisamente por isso  que a Lei 14.273/2021 demonstra preocupação em garantir a harmônica convivência entre os diferentes modelos de exploração legalmente previstos. 

3. As autorizações ferroviárias2 

As autorizações constituem, em tese, instrumentos mais flexíveis, se  comparados às concessões e permissões3 de serviço público. O risco da  operação e dos investimentos é essencialmente privado, sem que se assegure  o equilíbrio econômico-financeiro do contrato ou que se admita a imposição  unilateral de eventuais obrigações ou modificações contratuais – o que, por  consequência, tende a resultar na incidência de uma regulação estatal menos  intensa. 

Caberá ao ente regulador examinar e processar os requerimentos,  realizar eventual chamamento público (quando cabível), celebrar os respectivos  contratos e fiscalizar as atividades dos autorizatários, especialmente sob a  perspectiva da sua adequação e da defesa da concorrência. Porém, a margem  de atuação administrativa é significativamente mais reduzida do que aquela  que se verifica no âmbito das ferrovias exploradas sob o regime público (no bojo das quais se admite a modificação dos encargos dos concessionários,  desde que mantido o equilíbrio contratual)4

3.1. O procedimento legalmente estabelecido para a outorga das  autorizações5 

A outorga de autorização para exploração de novas ferrovias, pátios e  demais instalações acessórias pressupõe a apresentação de requerimento  dirigido ao ente regulador (ANTT) ou a participação do particular interessado  em processo de chamamento público conduzido pelo Poder Executivo. 

3.1.1. Os requerimentos de autorização ferroviária 

Nos termos do § 1º do art. 25 da Lei 14.273/2021, o interessado em obter a autorização deverá apresentar requerimento instruído com (i) a minuta  do contrato de adesão e o memorial com a descrição do empreendimento e  das fontes de financiamento pretendidas, (ii) o relatório técnico descritivo  (contendo, no mínimo, as informações relevantes sobre o georreferenciamento,  a configuração logística e os aspectos urbanísticos, as características e  especificações operacionais e o cronograma de implantação ou recapacitação  da infraestrutura ferroviária) e (iii) as certidões de regularidade fiscal do  requerente.

O ente regulador6 analisará a convergência do pleito com as políticas  públicas do setor ferroviário e dará publicidade ao extrato do referido  requerimento. Em seguida, incumbe-lhe a análise dos estudos e projetos apresentados, considerando inclusive a viabilidade do empreendimento  proposto frente às demais ferrovias já implantadas ou outorgadas, com a  consequente prolação e publicação de decisão fundamentada sobre a outorga  da autorização (§§ 3º e 4º). 

Conforme expressa previsão legal, “nenhuma autorização deve ser  negada, exceto por incompatibilidade com a política nacional de transporte  ferroviário ou por motivo técnico-operacional relevante, devidamente  justificado” (§ 6º).

Trata-se, portanto, de decisão administrativa vinculada. Uma vez  cumpridas as exigências legalmente estabelecidas, as autorizações ferroviárias  devem ser outorgadas ao requerente. 

3.1.2. O chamamento público 

O processo de chamamento público pode ser realizado, a qualquer  tempo, pelo Poder Executivo com vistas a identificar a existência de potenciais  interessados na obtenção de autorização para a exploração de ferrovias (i) não  implantadas, (ii) ociosas (em malhas com contratos de concessão em vigor) ou  (iii) em processo de devolução ou desativação (art. 26 da Lei 14.273/2021).

Ao que se infere, a realização de tal processo não configura uma  imposição legal. O legislador não previu a sua obrigatoriedade, pelo que nada  impede que os trechos em questão sejam outorgados aos particulares  mediante a análise e deferimento de requerimentos de autorização formulados  nos termos do art. 25 (v. tópico anterior). 

As ferrovias não implantadas abrangem eventuais trechos cuja operação  é relevante aos interesses coletivos e às políticas públicas do setor, mas que  ainda não são objeto de exploração.

Já os trechos ociosos são caracterizados pela existência, em ferrovias  outorgadas em regime público, de bens reversíveis não explorados pela então  concessionária, abarcando também os trechos que não contam com tráfego  comercial há mais de 2 (dois) anos ou aqueles retomados pelo regulador em  decorrência do descumprimento das metas de desempenho contratualmente  definidas, também por mais de 2 (dois) anos (§ 2º do art. 26). 

A desativação e devolução, por sua vez, são disciplinadas pelo art. 15  do referido diploma normativo, podendo ser requerida pelas concessionárias no  que diz respeito aos trechos outorgados previamente à edição da Lei  13.448/20177, desde que não apresentem tráfego comercial nos 4 (quatro)  anos que antecedem o pedido ou sejam de operação comprovadamente  antieconômica no âmbito do respectivo contrato de concessão, em razão da  extinção ou do exaurimento das fontes de carga. Preenchidos os requisitos  necessários para o deferimento do pedido, que incluem o pagamento de  indenização pela concessionária e a apresentação de estudo técnico que  indique as alternativas de destinação dos bens vinculados ao referido trecho (nos termos dos §§ 2º e 3º do art. 15), o traçado em questão poderá ser  outorgado a um novo particular no bojo do processo de chamamento público.

Cumpre ressalvar que, se houver interessado na exploração dos trechos  ociosos ou em processo de devolução/desativação, será promovida a cisão da  malha da atual concessionária em favor da nova autorização a ser outorgada, sem prejuízo de eventuais ressarcimentos por ela devidos (os quais devem ser pagos no momento da cisão ou por ocasião da extinção do contrato de  concessão) e da necessidade de celebração de aditivo contratual.

O chamamento público deve obrigatoriamente indicar (i) o trecho  ferroviário a ser outorgado; (ii) o perfil de cargas e passageiros transportados,  quando aplicável, (iii) o rol de bens que constituem a infraestrutura ferroviária,  quando for o caso e (iv) o valor mínimo exigido pela outorga, o qual deve ser  pago no ato de assinatura do referido contrato. Além disso, o correspondente  edital pode ou não ser instruído com eventuais estudos, projetos e licenças já  obtidos pelo Poder Executivo (art. 27 e par. único). 

Ao final do processo, o ente regulador deve examinar as propostas e  tomar a sua decisão. Em havendo uma única proposta, a autorização deverá  ser expedida ao particular que a apresentou. Por outro lado, verificando-se a  existência de mais de uma proposta (i.e., mais de um interessado pelo mesmo  trecho), caberá ao regulador “promover processo seletivo público, na forma do  regulamento”, tendo como um dos critérios de julgamento a maior oferta de  pagamento pela outorga (art. 28 e par. único). 

Ressalve-se que a expressa menção à necessidade de regulamentação  adquire especial relevância diante da hipótese legalmente prevista. 

A redação normativa poderia ter aludido aos procedimentos  estabelecidos em outros diplomas normativos (como, por exemplo, os das Leis  8.987/1995 ou Lei 14.133/2021), mas não o fez. A tendência é que se  estabeleça um regime de seleção simplificado, mais compatível com o espírito da Lei 14.273/2021 e com a flexibilidade que caracteriza as autorizações  ferroviárias. Em todo caso, deverão ser observados os princípios que regem a  Administração Pública, tais como a legalidade, impessoalidade, moralidade,  publicidade e eficiência.

3.2. Os contratos de autorização 

3.2.1. A disciplina normativa

O regramento legalmente estabelecido no que se refere aos contratos de  autorização é bastante simples. 

O art. 29 da Lei 14.273/2021 limita-se a prever que tais contratos devem  conter: (i) o objeto da autorização; (ii) o prazo de vigência (que pode ser de 25  a 99 anos); (iii) o cronograma de implantação dos investimentos; (iv) os direitos  e deveres dos usuários; (v) as hipóteses de responsabilização pela inexecução ou pela execução deficiente do contrato; (vi) as hipóteses de extinção  contratual; (vii) a previsão atinente à obrigatoriedade da prestação de  informações de interesse do poder público; (viii) as penalidades cabíveis e sua  forma de aplicação; (ix) o foro e forma de solução extrajudicial de divergências;  e (x) as condições para promoção de desapropriações. 

A disciplina prevista reafirma a responsabilidade do autorizatário pelos investimentos a serem realizados, “por sua conta e risco”, bem como pelos ônus relativos à fase executória dos procedimentos de desapropriação necessários à criação, expansão e modernização das instalações ferroviárias (§§ 1º a 3º).

Por fim, o § 6º veda expressamente a inclusão de eventuais cláusulas  contratuais que atribuam o direito à manutenção do equilíbrio econômico financeiro ou legitimem a imposição unilateral de vontades. 

3.2.2. Os contratos de adesão submetidos à audiência pública 

Como será examinado a seguir, a minuta dos contratos de adesão que  vinham sendo considerados pelo Ministério da Infraestrutura e pela ANTT vai  muito além daquilo que prevê a Lei8

Verifica-se, por exemplo, o estabelecimento de previsões que tratam da  possibilidade de ampliação ou atualização dos traçados das ferrovias  autorizadas, bem como do aumento da capacidade de transporte ou de  armazenagem e da diversificação do uso da infraestrutura (itens 1.2 a 1.4). 

O contrato prevê também o cabimento da transferência de titularidade da  autorização a terceiros e fixa algumas das premissas para tanto, impondo a  obrigatoriedade de preservação do objeto outorgado e das demais condições  originalmente verificadas por ocasião da formulação do requerimento pelo  titular original (item 2.3 e seguintes). 

Além disso, fixa o prazo a ser observado para fins de manifestação do  interesse na prorrogação contratual, indicando que a autorizatária deverá  apresentar o seu pedido com antecedência mínima de 1 (um) ano do término  da vigência do contrato (item 3.3). 

No mais, disciplina questões atinentes ao cronograma de implantação  dos investimentos e ao início da operação da ferrovia, tratando também das  prerrogativas da ANTT e dos direitos e deveres da autorizatária e dos usuários  do serviço (itens 4 a 8), da responsabilização da autorizatária pela inexecução  ou execução deficiente do contrato (itens 9 e 12), das condições a serem  observadas para promoção de desapropriações e para o início da execução  das obras (itens 10 e 11), das hipóteses de extinção da autorização (item 13),  da irreversibilidade dos bens (item 14) e de aspectos relativos à solução de  eventuais controvérsias (itens 16 e 17).

3.3. A extinção da autorização ferroviária

Os arts. 30 e seguintes da Lei 14.273/2021 preveem as seguintes  hipóteses de extinção da outorga: (i) decurso do prazo contratual; (ii) cassação,  pela perda das condições indispensáveis à continuidade da autorização (por negligência, imperícia ou abandono); (iii) caducidade, provocada pela prática de infrações graves; (iv) decaimento, nas hipóteses em que eventual alteração  normativa superveniente vier a vedar o tipo de atividade da autorização ou a suprimir a exploração em regime privado9; (v) renúncia pela autorizatária; (vi)  anulação derivada de irregularidade insanável no ato de outorga; e (vii)  falência. 

Admite-se ainda uma espécie de “extinção parcial” da autorização, nos  termos do art. 36, uma vez que a autorizatária poderá desativar determinados  trechos ferroviários que lhe haviam sido outorgados, mediante prévia  comunicação ao ente regulador, com antecedência mínima de 180 (cento e  oitenta) dias – comunicação esta que deverá ser tornada pública. Tais trechos  poderão ser posteriormente alienados a novo investidor (conforme o § 1º).

3.4. A possibilidade de adaptação dos contratos de concessão

Admite-se que os concessionários com contratos vigentes requeiram a  adaptação para o regime de autorização caso uma nova ferrovia venha a ser  construída por pessoa jurídica concorrente ou integrante do mesmo grupo  econômico do particular contratado, conforme prevê o art. 64 da Lei  14.273/2021.

Em linhas gerais, o concessionário poderá optar pelo regime de  autorização, promovendo os necessários ajustes em seu contrato, caso repute  conveniente competir com o autorizatário no eventual atendimento de  determinado mercado logístico (inc. I) ou ainda caso tenha interesse em  expandir a extensão ou a capacidade ferroviária, desde que abrangendo o  mesmo mercado relevante e em percentual não inferior a 50 % (inc. II). 

A referida adaptação deverá ter como parâmetro a busca pela eficiência  econômica, estando condicionada à (i) oitiva dos órgãos de defesa da  concorrência e de planejamento setorial, (ii) inexistência de multas ou  encargos setoriais não pagos à União, (iii) manutenção das obrigações  financeiras, de investimento e de transporte anteriormente estabelecidas, (iv)  prestação de serviço adequado e (v) manutenção do serviço de transporte de  passageiros caso o concessionário já opere eventual linha regular. 

4. As audiências públicas recentemente realizadas pela ANTT 

Em 19 de julho de 2022, encerrou-se o prazo para apresentação de contribuições voltadas a colher subsídios para o aprimoramento do contrato de  adesão e do procedimento a ser observado para o requerimento de  autorizações (conforme Audiências Públicas n.os 04 e 05/2022,  respectivamente). 

A despeito da inequívoca relevância da iniciativa adotada pela Agência,  que representa mais um importante passo para a efetiva implantação de um  regime mais competitivo e flexível para o transporte ferroviário, as preocupações manifestadas pelo setor demonstram que alguns assuntos ainda  precisam ser mais bem debatidos e (ou) amadurecidos. 

A seguir elencam-se alguns dos principais pontos de discussão levados  à ANTT por contribuições de interessados na regulamentação que está sendo  discutida. 

4.1. Subjetividade de critérios e exigência de celeridade e transparência

Algumas das contribuições apresentadas pretendem discutir a falta de  objetividade de definições constantes da minuta de resolução que tratará dos  requerimentos de autorização a serem submetidos à Agência Reguladora. 

Questões relacionadas à aferição da compatibilidade locacional dos  empreendimentos e dos aspectos técnico-operacionais (arts. 5º e 6º da minuta), por exemplo, não estão bem delineadas e não detalham clara e  precisamente os conceitos abertos colocados pela Lei 14.273/2021. Diante  disso, as contribuições ressalvam a necessidade de aprofundamento desses  conceitos, de modo a garantir uma maior agilidade na apreciação dos  requerimentos e evitar eventuais divergências quanto ao cumprimento das  condições necessárias à outorga de autorizações. 

Outra indefinição, apontada pelos agentes do setor, diz respeito aos  critérios de seleção de preferência dos requerentes nos casos de  requerimentos que envolvem a sobreposição de faixas de domínio (art. 7º). Os  arts. 4º e 5º da Lei 14.273/2021 estabelecem apenas diretrizes gerais sobre  essa questão e a proposta de resolução não define critérios objetivos de  seleção.

Também aqui se está diante de aspecto essencial para a atratividade dos  empreendimentos e para a realização de novos investimentos, os quais pressupõem a definição de condições claras e precisas, inclusive no tocante à  definição de preferência. Verifica-se, ainda, a apresentação de diversas  contribuições voltadas ao estabelecimento de prazos e procedimento relacionados às análises a serem conduzidas pela ANTT (como, por exemplo,  aquela prevista no item 2.3 da minuta do contrato de adesão, exigida para fins  de eventual transferência da titularidade da autorização).

É inegável que o novo marco legal das ferrovias tem por objetivo  simplificar e conferir maior segurança jurídica aos investimentos privados no  setor. 

Daí porque se observa a preocupação dos diferentes agentes com a  necessidade de se prever um regramento que confira celeridade e  transparência aos procedimentos a serem observados, tanto no que diz  respeito aos requerimentos de autorização como no que se refere à própria  exploração do serviço de transporte ferroviário e seus diversos aspectos  operacionais. 

4.2. Destaque à autonomia privada do autorizatário

As audiências retrataram, ainda, a discussão de aspectos relacionados à  autonomia privada do autorizatário e sua liberdade negocial.

Questionou-se, por exemplo, a conveniência de se estabelecer como  direito do usuário a transferência de capacidade originalmente adquirida do  operador/autorizatário. O item 8.1, VI, da minuta do contrato de adesão  estabelece esse direito. 

No entanto, algumas das contribuições solicitam uma maior reflexão  acerca da inclusão de tal previsão contratual, sob a ótica de que o assunto  poderia ser mais bem disciplinado pelos contratos privados celebrados entre  operadora e usuário. Isto porque a referida disposição contratual, nos termos  em que prevista no contrato, poderia vir a criar um mercado secundário de  venda da capacidade de transporte. 

Por outro lado, não se pode desconsiderar a hipótese de a referida  disposição vir a atender eventuais necessidades já identificadas pelo setor,  permitindo que a capacidade excedente seja realocada pelos usuários com  maior facilidade e contribuindo, assim, para o incremento de investimentos em  razão de uma maior disposição em celebrar contratos de transporte. 

Também foram apresentadas contribuições sobre: (i) a necessidade de  comunicação prévia à ANTT quanto ao aumento de capacidade de transporte  e/ou de armazenagem da ferrovia autorizada (item 1.4 da minuta dos  contratos); (ii) a possibilidade de flexibilização para ajustes no cronograma de  investimentos relacionado aos contratos (item 4.1.1 da minuta); e (iii) o dever  de compartilhamento de infraestrutura essencial com possibilidade de livre  negociação, dentre outros assuntos. 

Significativa parcela das contribuições parte do pressuposto de que a  outorga de autorizações deve ser tida como regra, apenas podendo ser negada  nas hipóteses em que verificado o descumprimento dos requisitos legalmente  estabelecidos ou identificada eventual incompatibilidade com a política nacional  de transportes ou com circunstâncias técnico-operacionais relevantes (nos  termos do § 6º do art. 25). Diante disso, caberia aos contratos estabelecerem um regramento compatível com tal premissa, sem que estabeleçam exigências  ou formalidades excessivas no que diz respeito a aspectos relativos à  expansão ou operacionalização dos serviços outorgados por meio das  autorizações.

4.3. Compartilhamento de infraestrutura

Ainda sob a ótica da segurança jurídica, várias contribuições foram  apresentadas no sentido de demandar a definição dos conceitos de “direito de  passagem” e de “tráfego mútuo” e de requerer maiores esclarecimentos a  respeito a operacionalização do compartilhamento da infraestrutura ferroviária.

O assunto é complexo e certamente merece atenção por parte da ANTT.

Mesmo que se esteja diante de ferrovias exploradas sob regime jurídico  de direito privado, não se pode destacar a possibilidade/necessidade de a  infraestrutura outorgada ao autorizatário precisar ser compartilhada com outros operadores. Embora a Lei 14.273/2021 estabeleça algumas das regras a  serem observadas para tanto (art. 41 e ss.), é recomendável que os direitos e obrigações do autorizatário também restem adequadamente definidos no bojo dos contratos de adesão a serem firmados, considerando-se inclusive as  peculiaridades de cada malha.

4.4. Questões relacionadas à desapropriação para implantação de ferrovia

Uma característica interessante das autorizações ferroviárias diz  respeito à possibilidade de o autorizatário realizar desapropriações de áreas  para implantação da ferrovia a ser explorada em regime privado. É o que se  extrai o art. 29, § 2º, da Lei 14.273/2021, que indica que a “autorizatária arcará  com os custos e riscos da fase executória do procedimento de  desapropriação”10

Nesse contexto, o item 10.4 da minuta do contrato de adesão define “a  título de penalidade, 30% do valor de mercado do imóvel desapropriado na  hipótese de não ter sido dada a destinação do imóvel à prestação do serviço de  transporte ferroviário, ou quando houver desativação de trecho/área obtidos  mediante desapropriação”. 

A esse respeito, algumas das contribuições apresentadas nas  audiências públicas questionam a validade da referida penalidade, especialmente diante da ausência de previsão legal expressa e do critério estabelecido para o cálculo da referida multa (qual seja, o valor de mercado do  imóvel na data em que verificada a eventual inexecução do trecho, nos termos  do item 10.4.2). 

Ainda que as autorizações necessariamente impliquem na realização de investimentos por conta e risco dos particulares, é essencial que os ônus  assumidos sejam razoáveis e efetivamente considerem as condições passíveis  de serem geridas no curso da exploração ferroviária. Considerando que se está  diante de contratos de longa duração, que podem chegar a 99 anos, a flutuação dos valores imobiliários tem impactos significativos sobre a matriz de  riscos pactuada, de modo que é pouco provável que os particulares estejam  dispostos a assumir obrigações que possam resultar em multas exorbitantes  e/ou desproporcionais. 

4.5. Forma de resolução de conflitos (judicial ou arbitragem) 

Apesar de a minuta dos contratos de adesão conter previsão de  resolução de conflitos por meio de mediação ou pela via judicial (itens 16 e 17  da minuta dos contratos), algumas das contribuições apresentadas tratam da  possibilidade de se inserir eventual previsão contratual que admita a a  instauração de arbitragem. Trata-se de hipótese que já havia sido considerada  pela própria ANTT nos estudos relacionados à regulamentação que está em  discussão e que, em tese, teria o potencial de permitir soluções mais técnicas e céleres para os possíveis conflitos decorrentes da exploração das autorizações  ferroviárias. 

Conforme a Nota Técnica 2179/2022/GEREF/SUFER/DIR da ANTT,  “fica a Agência facultada a celebrar compromisso arbitral, caso entenda que,  diante determinada situação, seja essa a melhor forma de resolução de  conflitos. […] Neste sentido, afigura-se mais adequado que a referida decisão  seja tomada pelas partes, caso a caso” (item 5.14.2). 

5. Considerações finais

Diante do exposto, é essencial que os institutos estabelecidos pela Lei  14.273/2021 sejam bem interpretados e regulamentados pela Agência  Reguladora, a fim de que o referido diploma normativo consiga contribuir para o  alcance das finalidades a que se propõe. As audiências públicas ainda em curso são uma etapa importante nesse processo, colaborando para a reflexão  e definição de temas tidos como relevantes para o setor. 

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1 Veja-se que o Decreto 11.081/2022, recentemente promulgado pelo governo federal,  autorizou a incorporação da Empresa de Planejamento e Logística S.A. (EPL) pela Valec, de  modo a permitir a criação da Infra S/A. Tendo em vista as competências legalmente atribuídas  à Valec no que diz respeito à administração e exploração do sistema de transporte ferroviário  (nos termos do art. 9º da Lei 11.772/2008), embora o referido processo de incorporação ainda  esteja em curso, a nova estatal criada tende a assumir relevante papel no setor.

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2 A propósito das autorizações ferroviárias, do procedimento de outorga e da Medida Provisória  (n.º 1.065/2021) que antecedeu a Lei das Ferrovias, confira-se o artigo de Rafael Wallbach  Schwind, publicado na edição de setembro/2021 deste periódico (Informativo n.º 175):  https://justen.com.br/pdfs/IE175/Rafael-Autoriz-ferroviarias.pdf

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3 Note-se que a Lei 10.233/2001 admitia a outorga da operação mediante permissão quando se  tratasse da prestação de serviço de transporte ferroviário de passageiros, não associado à  exploração da infraestrutura (art. 13, inc. IV, “b”). Não obstante, tal disposição foi revogada pela  Lei 14.237/2021. 

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4 Daí porque a proposta de norma da ANTT tendente a regulamentar os requerimentos de  autorização é bastante simplificada (como se verifica no bojo do Processo 50500.018372/2022- 43 da Agência).

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5 Como esclarece Rafael Wallbach Schwind, alguns estados (Mato Grosso, Pará e Minas  Gerais) já instituíram as autorizações ferroviárias estaduais, sendo que existem outros projetos  no mesmo sentido em curso. A tendência é que, com o passar do tempo, tal possibilidade  venha a ser utilizada também pelos demais entes da federação e não apenas pela União (cf.  artigo publicado no Informativo n.º 175). 

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6 Embora a Lei aluda a ente regulador, a análise atinente à convergência do pleito e a  publicação do extrato do requerimento vinham sendo conduzidas até então pelo Ministério da  Infraestrutura, enquanto a verificação da compatibilidade locacional do empreendimento é  realizada pela ANTT (como consta do site do governo federal:  https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre_antigo/programa-de autorizacoes-ferroviarias/faca-seu-requerimento – Acesso em 25.07.22).

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7 A limitação estabelecida pela regra em comento aparenta ter tido a intenção de resguardar as  condições estabelecidas nos contratos que foram objeto de prorrogação antecipada, com base  na Lei 13.448/2017. Assim, impede-se que um concessionário que teve o prazo de vigência do  seu contrato estendido pretenda, após a prorrogação, promover a desativação ou devolução de  determinados trechos, contrariando as premissas que haviam sido consideradas

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8 Minuta dos contratos de adesão disponível em:  https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx?Cod igoAudiencia=499.

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9 Ressalve-se que, na hipótese de a lei vedar a atividade, o decaimento apenas será decretado  se for impossível a manutenção das autorizações já expedidas (§ 1º do art. 33). Além disso, a  operadora poderá manter suas atividades até a amortização de seu investimento ou deverá ser  indenizada pelos ativos não amortizados (conforme o § 2º do referido dispositivo).

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10 As desapropriações, aliás, não ocasionarão a reversibilidade dos bens desapropriados ao  Poder Público ao final da autorização. Conforme dispõe a Nota Técnica  2179/2022/GEREF/SUFER/DIR da ANTT, em que se discute a minuta padrão do contrato de  adesão para autorizações ferroviárias, considerou-se justamente que a reversão desses bens  “configuraria uma espécie de confisco, sem previsão legal” (item 5.10.2).

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Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Victor Hugo Pavoni Vanelli
Victor Hugo Pavoni Vanelli
Pós-graduado em Direito pelo Instituto Bacellar. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Victor Hugo Pavoni Vanelli
Victor Hugo Pavoni Vanelli
Pós-graduado em Direito pelo Instituto Bacellar. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.