1. Apresentação
O Tribunal de Contas da União (TCU) finalizou o julgamento do processo que envolve a licitação para construção da ponte internacional Rio Mamoré, que ligará o Brasil (Guajará-Mirim) e a Bolívia (Guayaramerim) – confira a notícia.
A construção dessa ponte representa um avanço significativo na jurisprudência do TCU sobre licitações públicas. Mais que isso: consiste em marco relevante na integração entre os dois países, cujo compromisso remonta ao Tratado de Petrópolis de 1.903, que colocou fim à disputa pelo estado do Acre.
O julgamento confirmou o entendimento do Tribunal favorável à ideia do somatório de atestados para fins de comprovação de capacidade técnica, equilibrando exigências legais e viabilidade prática.
Os acórdãos proferidos no processo – tanto no bojo da representação, quanto no pedido de reexame – reforçam a jurisprudência do TCU no sentido de admitir o somatório, mais precisamente aqueles relacionados à qualificação técnica (Acórdãos 1775/2024-PL e 1466/2025-PL).
2. A questão jurídica subjacente à discussão: admissibilidade da soma de atestados para aferir experiências qualitativas distintas
A empresa que pretende contratar com a Administração Pública deve, dentre outros requisitos, demonstrar que possui aptidão técnica para executar os serviços licitados (art. 37, inc. XXI, da CF/88 e art. 67 da Lei 14.133).
A Lei determina que a qualificação técnica deve ser demonstrada pela via documental (art. 67, incs. I a VI). Dentre os documentos previstos, admite-se a exigência de atestados que demonstrem a capacidade operacional na execução de serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior (inc. II).
2.1. O compartilhamento de experiências entre consorciadas
O ponto nodal da discussão se relaciona à viabilidade de admitir a contabilização de experiências de duas empresas de forma compartilhada, uma vez que a sua participação no certame se deu em regime de consórcio.
2.2. O caso concreto: as especificações da ponte Brasil-Bolívia
No caso, a ponte a ser construída terá dimensão total de 1.220 metros. O anteprojeto que acompanhou ato convocatório estabeleceu uma divisão objetiva da ponte em 9 trechos: 8 deles (“trechos de acesso”), representativos de 960m, serão construídos com tecnologia convencional (vigas pré-moldadas ou balanços sucessivos); o remanescente (central) possuirá 260m, e deverá ser executado com tecnologia em extradorso.
O ato convocatório admitiu, de forma genérica, a demonstração de expertise pela soma de atestados em caso de consórcios. Previu, no entanto, exigências variadas e relativas a tecnologias distintas. De um lado, formulou exigência sobre extensão mínima total da ponte (600m, considerando a limitação de 50% estabelecida pelo TCU). De outro lado, estabeleceu a obrigação de demonstrar expertise na execução de obra em tecnologia extradorso ou estaiada, com vão livre mínimo de 60m.
2.3. A indevida inabilitação do Consórcio Mamoré
O consórcio detentor da melhor proposta foi inabilitado no certame e iniciou a discussão perante o TCU para reverter esse resultado.
A empresa-líder demonstrou experiência na execução de ponte estaiada, executada com vão bem superior a 60m, e tamanho total (do trecho estaiado) superior inclusive ao da ponte que será executada (268m). No entanto, em razão de tal trecho ter sido executado em circunstâncias excepcionais, no bojo de uma ponte que teve seu segmento central derrubado por uma embarcação, a obra não atendia isoladamente ao requisito de extensão total mínimo exigido para a ponte (de 600m).
Todavia, em vista (1) do atendimento integral à exigência em torno da tecnologia extradorso (ou estaiada) por aquele atestado, (2) da admissibilidade do somatório, e (3) da delimitação objetiva do anteprojeto, prevendo que 8 dos 9 trechos da ponte serão convencionais, num total de 960m, utilizou-se de um atestado da outra consorciada em obra de ponte em vigas pré-moldadas e balanços sucessivos, com extensão total de 1.517,03m.
2.4. O somatório executado em relação a serviços distintos e não no tocante a quantidades
Sob uma perspectiva objetiva, não se efetuou o somatório de quantitativos para atingir a extensão total mínima buscada – o que, em tese, seria vedado. Tomou-se de forma isolada a comprovação de ambas as experiências qualitativas de forma dissociada e independente (trecho extradorso/estaiado e trecho convencional), inclusive porque o próprio anteprojeto delimitava a ponte em variadas seções.
Isso foi apanhado de forma perfeita pelo Acórdão 1775/2024-PL: “Para comprovação da qualificação técnico-operacional do licitante na execução de objeto que integre tecnologias distintas, a exemplo da construção de ponte com trecho realizado em estais e outro em vigas pré-moldadas, é possível aceitar atestados que comprovem, individualmente, a capacidade técnica em cada uma das tecnologias envolvidas”.
Em sede recursal, o Plenário confirmou as conclusões do acórdão acima indicado e reafirmou a sua jurisprudência anterior no sentido de excepcionar a vedação ao somatório de atestados. Ficou consignado que o somatório não representa prejuízos à segurança e qualidade do empreendimento a ser realizado.
O entendimento segue a linha da jurisprudência consolidada da Corte. Ainda sob a vigência da Lei 8.666, que também jamais vedou o somatório, o TCU se posicionou por diversas vezes no sentido de coibir cláusulas editalícias que vedavam o somatório (Acórdãos 1.182/2018, Rel. Ministro Benjamin Zymler, 2.387/2014, Rel. Ministro Benjamin Zymler, Acórdão 1.095/2018, Plenário, rel. Ministro Augusto Nardes, todos do Plenário).
2.5. Exceções à admissibilidade do somatório
Somente se poderá cogitar da restrição, nos termos da jurisprudência do TCU, quando a experiência exigida para a execução do objeto não puder ser comprovada pela soma de vários pequenos serviços ou obras executados em espaço e tempo distintos. Como exemplo, citam-se os Acórdãos 2.032/2020, rel. Ministro Marcos Bemquerer e 1.101/2020, rel. Ministro Vital do Rêgo, ambos do Plenário, e que se revelam inaplicáveis ao caso.
Em linhas gerais, eventual restrição ao somatório de atestados deve ser justificada técnica e detalhadamente por meio de processo administrativo.
3. Conclusão
O julgamento do TCU restabeleceu a legalidade e a higidez do processo licitatório inerente às obras para construção da ponte Rio Mamoré, implicando prestígio à norma, ao julgamento objetivo e ao resultado da licitação.
O precedente é especialmente relevante em razão da importância do caso concreto – tanto do ponto de vista comercial e social, eis que incrementará em muito a capacidade de escoamento de cargas da região, quanto do ponto de vista diplomático, nas relações entre Brasil e Bolívia.

