Informativo Eletrônico - Edição 224 - Outubro / 2025

A AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO ORDENADOR DE DESPESAS PELOS ATESTES REALIZADOS PELO FISCAL: COMENTÁRIOS AO ACÓRDÃO-TCU 6.138/2025-1C

João Pedro Lima de Vasconcellos
Ana Beatriz N. Coelho Queiroz

1. Introdução

Em 26.8.2025, a Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União (TCU) proferiu o Acórdão-TCU 6.138/2025-1C (link), que decidiu a Tomada de Contas Especial (TCE) instaurada pelo então Ministério da Integração Nacional (MI) em desfavor de gestor, em razão do pagamento de serviços não executados no âmbito de convênio.

O objeto do convênio era a construção de um canal e a execução de obras complementares para a drenagem de águas pluviais de um Município. 

O gestor, na qualidade de ordenador de despesas, era o responsável pelos pagamentos à empresa contratada para a execução das obras. Tais pagamentos estavam condicionados à prévia aprovação das medições pelo fiscal do contrato. 

O julgamento do caso envolveu discussões relevantes sobre a eventual responsabilidade do gestor, que detinha cargo de maior hierarquia no âmbito de seu ente administrativo, pelas irregularidades constantes dos atestados de fiscalização elaborados pelo fiscal do contrato a ele subordinado. 

As discussões versaram sobre o princípio da hierarquia e a possível configuração de culpa in vigilando ou de culpa in eligendo na conduta do gestor.

2. O controle da atividade administrativa: o princípio da hierarquia e a responsabilização de gestores hierarquicamente superiores

O controle da atividade administrativa do Estado compreende a aplicação dos parâmetros normativos que estabelecem padrões de regularidade para a atuação dos administradores públicos, no exercício de suas atribuições. Trata-se de expressão inerente aos regimes democráticos.

2.1 As linhas de defesa do controle da atividade administrativa

No Brasil, de acordo com o art. 169, caput, da Lei 14.133/2021, as contratações administrativas estão submetidas a três linhas de controle. 

A primeira é composta pelos agentes públicos que atuam na estrutura de governança do órgão ou da entidade que integram. A segunda, pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do órgão ou da entidade. A terceira, por fim, pelo órgão central de controle interno da Administração Pública e pelos tribunais de contas, mediante controle externo.

2.2 A observância do princípio da hierarquia

As duas primeiras linhas de controle têm natureza administrativa e se vinculam não apenas à observância do princípio da legalidade, mas também do princípio da hierarquia. 

Nesse sentido, anota Marçal Justen Filho:

Detectada a prática de irregularidade, a autoridade superior tem o dever de eliminar o vício, sob pena de ser responsabilizada solidariamente com o responsável direto.

Se a autoridade superior tiver conhecimento do vício e não dispuser de competência para pronunciá-lo em nome próprio, determinará que a autoridade inferior o faça. Se houver recusa, a solução será destituir a autoridade inferior e substituí-la por outrem, que cumpra a lei e obedeça ao princípio da hierarquia. (Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025, p. 1817)

Em última análise, mesmo que o gestor de maior hierarquia não tenha competência para desfazer o ato ou para determinar que seu subordinado o faça, cumpre-lhe representar à autoridade competente, caso tome conhecimento de alguma irregularidade na atividade administrativa estatal.

2.3 Os pressupostos subjetivos para a responsabilização da autoridade hierarquicamente superior

De todo modo, a responsabilização (ressarcitória e sancionatória) de gestores públicos perpassa a configuração de determinados pressupostos subjetivos relativos à culpa em sua atuação.

Independentemente da noção que se dê ao termo culpabilidade, a responsabilização financeira exige a presença de culpa em sentido estrito, seja como elemento integrante do tipo, seja como integrante da culpabilidade. Dito de outra forma, a autoridade julgadora tem que perquirir se o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, atuando com dolo, ou se ele deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Ademais, o julgador deve avaliar se o agente infrator tinha consciência potencial de ilicitude, bem como a possibilidade e a exigibilidade de atuar de outro modo, seguindo as regras impostas pelo Direito. Para tanto, é importante analisar as circunstâncias do cometimento da infração, na linha exposta pela doutrina de Emerson Gomes. A avaliação das circunstâncias subjetivas, da intenção do agente e das circunstâncias do cometimento do ilícito tem como fundamento o princípio da individualização da pena, previsto no art. 5º, inciso XLVI, da CF/1988 e de incidência plena no âmbito do Direito Administrativo Sancionador. (Benjamin Zymler e Francisco Sérgio Maia Alves. Processo do Tribunal de Contas da União. Ed. Fórum: Belo Horizonte, 2023, p. 217-220)

A culpa do gestor pelas condutas de seus subordinados pode se manifestar de duas maneiras: a culpa in vigilando e a culpa in eligendo

Alude-se à culpa in vigilando quando há falha do gestor no dever de fiscalizar seus subordinados e à culpa in eligendo quando a irregularidade cometida pelo gestor consiste na má escolha de seus subordinados para a execução de uma determinada atividade.

3. O julgamento do Acórdão-TCU 6.138/2025-Primeira Câmara

Ao analisar os pressupostos subjetivos para a responsabilização do gestor, na qualidade de ordenador de despesas, a Primeira Câmara do TCU decidiu afastar sua responsabilidade pelos pagamentos a maior, em vista da impossibilidade de se imputar a ele a irregularidade cometida pelo seu subordinado, o fiscal do contrato, que atestou a execução de serviços não realizados.

No voto condutor do acórdão, entendeu-se que a complexidade técnica da atividade relativa à medição da execução do convênio impedia que fosse imputável ao gestor o exame detalhado das informações contidas nos atestados técnicos. Sob outra perspectiva, tal exigência representaria violação ao princípio da eficiência administrativa e à regra da segregação de funções. 

Reconheceu-se que o gestor não incorreu em culpa in vigilando ou em culpa in eligendo em sua conduta, o que afasta sua responsabilidade solidária pelo ateste irregular das medições realizado pelo fiscal do contrato.

“Não há nenhuma menção a qualquer descuido do então prefeito no processo de escolha do fiscal da obra ou na fiscalização do cumprimento das funções do técnico responsável; logo, não há evidências de que teria agido com alguma dessas modalidades de culpa, o que enseja o afastamento da sua responsabilidade pelo débito.”

Enfim, o Acórdão-TCU 6.138/2025-1C julgou regulares com ressalvas as contas do gestor e condenou, em débito e multa, o fiscal do contrato (pelo ateste na medição dos serviços) e a empresa contratada (pelo recebimento de quantias indevidas).

4. Conclusão

O Acórdão-TCU 6.138/2025-1C firmou precedente relevante sobre a ausência de responsabilidade de gestor, na qualidade de ordenador de despesas, pelo ateste nas medições dos serviços realizado pelo fiscal do contrato. 

Entendeu-se que a hipótese não configura culpa in vigilando ou culpa in eligendo na conduta do gestor e que não se pode exigir dele conduta diversa, em razão da complexidade técnica inerente aos atestes realizados pelo fiscal, bem como do princípio da eficiência administrativa e da segregação de funções.

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João Pedro Vasconcellos
João Pedro Lima de Vasconcellos
Graduado em Direito pela UnB. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Ana Beatriz N. Coelho Queiroz
Acadêmica de Direito da UnB. Estagiária da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
João Pedro Vasconcellos
João Pedro Lima de Vasconcellos
Graduado em Direito pela UnB. Advogado da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Ana Beatriz N. Coelho Queiroz
Acadêmica de Direito da UnB. Estagiária da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
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