Informativo Eletrônico - Edição 220 - Junho / 2025

A CONTRATAÇÃO DE EMPRESAS ESTRANGEIRAS SEM FUNCIONAMENTO NO BRASIL À LUZ DA LEI 14.133/2021

Cesar Pereira
Karlin Olbertz Niebuhr
Isabella Rossito

1. Introdução

A Lei 14.133/2021 disciplina a contratação de empresas estrangeiras pela Administração Pública brasileira, inclusive por meio de contratação direta. Uma questão de grande relevância prática diz respeito aos requisitos de habilitação aplicáveis a empresas estrangeiras que não possuem operação estabelecida no Brasil, especialmente quando a execução do contrato ocorre integralmente no exterior.

O regime jurídico atual admite a participação dessas empresas, desde que observadas condições específicas que conciliam a segurança jurídica para a Administração e a necessidade de não criar barreiras desnecessárias à competição e ao acesso a fornecedores internacionais. Este artigo analisa as principais regras para essa modalidade de contratação.

2. A exigência de autorização para funcionamento no Brasil

A exigência de autorização formal para funcionamento no Brasil, mediante decreto do Poder Executivo e registro na Junta Comercial competente, aplica-se apenas às hipóteses em que se configure o “funcionamento” da empresa no território nacional, conforme previsto pelo Código Civil:

Art. 1.134. A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por meio de filial, agência ou estabelecimento, sujeitando-se às leis e aos tribunais brasileiros.

De acordo com o entendimento consolidado na doutrina, o funcionamento se caracteriza pela continuidade e permanência da atividade empresarial no Brasil. Em contrapartida, atos isolados, eventuais ou precários não configuram funcionamento, sendo dispensada, nesses casos, a exigência de autorização formal para instalação no país:

Segundo entendimento pacífico, não constitui “funcionamento” no Brasil a atividade eventual, precária e isolada. Uma empresa estrangeira, mesmo sem autorização governamental, pode praticar atos isolados. O “funcionamento” no Brasil se configura quando exista continuidade e permanência na atividade desenvolvida. Se, por exemplo, uma empresa estrangeira necessitar efetivar pactos com brasileiros para executar o contrato com a Administração Pública, estará configurado o “funcionamento” no Brasil.¹

Em síntese, à luz das previsões da Lei nº 14.133: (i) nas licitações internacionais tais como definidas na Lei nº 14.133, não será exigido dos licitantes estrangeiros que eles detenham autorização para funcionamento no Brasil apenas para participar da licitação, mas tal autorização será necessária posteriormente, para a execução do contrato, caso o seu objeto configure funcionamento no Brasil […].²

Assim, se a empresa estrangeira atuará exclusivamente no exterior ou praticará no Brasil ato isolado ou eventual, ainda que relacionado à execução de contrato administrativo, não há obrigação legal de obtenção de autorização de funcionamento. 

3. A comprovação da habilitação por documentos equivalentes

O parágrafo único do art. 70 da Lei nº 14.133/2021 prevê que empresas estrangeiras que não funcionem no país deverão apresentar documentos equivalentes de habilitação, conforme regulamento específico (que ainda não foi editado). 

Não existe, na legislação brasileira, uma lista de documentos equivalentes que deva ser apresentada por empresas estrangeiras em substituição aos documentos exigidos de fornecedores nacionais nas contratações públicas. A verificação de equivalência deve levar em conta as peculiaridades do sistema jurídico do país de origem da empresa, sendo necessário avaliar caso a caso a natureza e a função dos documentos disponíveis.

A doutrina defende que os documentos equivalentes são aceitáveis para atender a qualquer critério de habilitação, exceto no que diz respeito a informações detidas exclusivamente pelo Estado brasileiro:

Documento equivalente significa documento análogo, que desempenha a mesma função ainda que expedido em outro país. Por cumprir a mesma função, ele serve a viabilizar o cumprimento de um critério de habilitação na falta de documentos brasileiros, por exemplo. Como a lei não faz qualquer diferenciação, documentos equivalentes são aceitáveis a princípio para qualquer critério de habilitação, salvo no tocante a informações detidas exclusivamente pelo Estado brasileiro, as quais, por natural, não podem ser objeto de atestados de entidades estrangeiras, nem de entes privados.³

Conforme aponta a doutrina especializada, em respeito à posição de isonomia entre as empresas concorrentes, a classificação do licitante não poderá ser prejudicada pela hipótese de inexistência de documentação estrangeira equivalente à exigida. É recomendável que, nesse caso, sejam juntadas comprovações de qualificação técnica da empresa em sua respectiva área de atuação e das tentativas de obtenção dos documentos perante as autoridades estrangeiras.⁴

De modo complementar, o §4º do art. 67 da Lei 14.133 estabelece que serão aceitos atestados ou documentos emitidos por entidades estrangeiras, desde que acompanhados de tradução para o português, salvo comprovação de inidoneidade da entidade emissora.

Além disso, o §7º do art. 67 da Lei 14.133 admite que o registro da sociedade empresária estrangeira em entidade profissional competente no Brasil, quando exigido, seja atendido por meio da simples apresentação do pedido de registro no momento da assinatura do contrato. No entanto, essa exigência só se justifica quando a atividade contratada exigir fiscalização profissional no território nacional. No caso de empresas estrangeiras que não funcionarão no Brasil e cuja execução contratual ocorrerá exclusivamente no exterior, não há fundamento lógico ou jurídico para exigir registro em entidade profissional brasileira. A doutrina destaca a letra da lei ao reforçar que tal registro somente será exigido nas situações em que for efetivamente necessário:

Os licitantes estrangeiros não necessitam de inscrição em entidade profissional competente como requisito para participar da licitação. A comprovação do atendimento à exigência deverá ocorrer, se necessário, como requisito para formalização da contratação. A regra é aplicável não apenas a licitações internacionais, mas inclusive àquelas que assim não se configurem.⁵

4. O registro no SICAF

A questão do registro no SICAF (Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores) merece atenção específica. O sistema é utilizado como ferramenta de habilitação por diversos órgãos e entidades da Administração Pública Federal. 

A situação está devidamente regulamentada no art. 20-A da Instrução Normativa SEGES nº 3/2018, com redação conferida pela IN SEGES nº 10/2020. Esse dispositivo dispõe que as empresas estrangeiras que não funcionem no País podem se cadastrar no SICAF mediante código identificador específico, sem necessidade de CNPJ ou autorização formal de funcionamento. Os documentos exigidos para os diferentes níveis cadastrais do sistema podem ser apresentados como documentos equivalentes, com tradução livre, sendo exigida a tradução juramentada e apostilamento ou consularização apenas para a fase de assinatura do contrato.

Essa possibilidade se contrapõe diretamente à hipótese tratada no art. 20-B da mesma Instrução Normativa, que trata das empresas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil. Apenas nesses casos é exigido o registro no SICAF com base no CNPJ e no decreto autorizativo de funcionamento. A distinção entre os dois dispositivos deixa claro que não se exige autorização formal para funcionamento quando a empresa estrangeira não desenvolverá atividades permanentes no país, sendo suficiente, nesse caso, o cadastro especial no SICAF com apresentação de documentos equivalentes.

A leitura sistemática desses dispositivos reforça a interpretação de que a exigência de autorização para funcionamento no Brasil deve ser dispensada quando não caracterizado o funcionamento no território nacional.

Além disso, a Instrução Normativa prevê que:

  • O fornecedor estrangeiro deve designar representante legal no Brasil com poderes para receber citação e responder administrativa ou judicialmente (art.20-A, inc. III); e
  • Caso algum documento não possua equivalente no país de origem, a empresa poderá declarar essa circunstância no sistema (art. 20-A, §1º).

5. Considerações finais

A legislação brasileira de contratações públicas prevê um caminho claro e seguro para a contratação de empresas estrangeiras que não operam no Brasil. A dispensa da autorização de funcionamento para atividades não permanentes, aliada à possibilidade de apresentação de documentos equivalentes e a um procedimento de cadastramento simplificado no SICAF, demonstra a flexibilidade do sistema. Essa estrutura permite que a Administração Pública acesse serviços e bens de fornecedores internacionais sem impor barreiras burocráticas excessivas, focando na comprovação da real capacidade da empresa de cumprir o objeto contratado.

_____________________________
¹ JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 2ª ed. São Paulo, RT, 2023. p. 948.

____________________________
² SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais. 4ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2025. p.88.

_____________________________
³ MARRARA, Thiago; CAMPOS, Carolina Silva. Licitações internacionais: regime jurídico e óbices à abertura do mercado público brasileiro a empresas estrangeiras. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 275, p. 155-187, maio/ago. 2017, p. 173.

_____________________________
SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais. 4ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2025. p.98-99.

_____________________________
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 2ª ed. São Paulo, RT, 2023. p. 892 [sem grifo no original].

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Cesar Pereira
Cesar Pereira
Doutor em Direito Administrativo pela PUC. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Karlin Olbertz Niebuhr
Karlin Olbertz Niebuhr
Mestra e Doutora em Direito do Estado pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Isabella Rossito
Isabella Rossito
Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FDRP-USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Cesar Pereira
Cesar Pereira
Doutor em Direito Administrativo pela PUC. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Karlin Olbertz Niebuhr
Karlin Olbertz Niebuhr
Mestra e Doutora em Direito do Estado pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
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Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FDRP-USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
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