1. Introdução
É conhecida a situação do transporte ferroviário no Brasil. A extensão total das ferrovias no país está nos patamares de praticamente cem anos atrás. Ao mesmo tempo, é inegável que a ampliação da malha ferroviária geraria efeitos altamente benéficos para a economia do país.
Para facilitar a realização de investimentos em ferrovias, foi editada no dia 30.8.2021 a Medida Provisória 1.065. Dentre outras medidas, a MP prevê a possibilidade de exploração de ferrovias por meio de autorizações e ainda estabelece o Programa de Autorizações Ferroviárias.
Em poucos dias, cerca de quinze pedidos de autorização para a implantação de ferrovias foram preliminarmente aceitos – o que demonstra, ao mesmo tempo, a existência de uma demanda reprimida e o apetite da iniciativa privada de investir no setor ferroviário. Tudo indica que a previsão da Exposição de Motivos da MP, de que a medida viabilizaria investimentos de 30 bilhões de reais, vai inclusive ser superada.
Neste breve artigo, apresentamos um panorama de como funcionarão os procedimentos de outorga de autorizações ferroviárias.
2. Noção geral acerca das autorizações para exploração de serviços e infraestruturas
O processo licitatório será preferencialmente conduzido sob a forma eletrônica (art. 17, § 2º da Lei 14.133/2021). Isso se aplica para todas as modalidades de licitação. Ou seja, também a concorrência será preferencialmente eletrônica. A licitação presencial é excepcional e somente admitida mediante decisão motivada.
2.1. Licitação eletrônica
Em comparação com as concessões e permissões, as autorizações são mecanismos mais maleáveis para a exploração de certos serviços ou infraestruturas.
Normalmente, a exploração de infraestruturas por meio de autorizações se dá de acordo com algumas premissas básicas, tais como: (1) desnecessidade de licitação para que ocorra a autorização, ainda que possa haver um chamamento público em certos casos; (2) ausência de reversão de
bens ao poder público ao final da autorização; (3) possibilidade de prorrogações sucessivas do prazo da autorização; e (4) inexistência de certas garantias típicas de concessões, como a da observância da equação econômico-financeira.
A ideia da autorização – já amplamente empregada em outros setores, como o de portos – é que, não havendo inviabilidade locacional nem incompatibilidade com o planejamento setorial, deve-se autorizar que o interessado faça os investimentos que desejar na implantação de uma infraestrutura, por sua conta e risco.
3. O que estabelece a MP 1.065?
3.1. Competência para a autorização
Os requerimentos de autorização para a exploração de ferrovias são feitos à União, por meio do Ministério da Infraestrutura.
É importante observar que três estados da Federação – Mato Grosso, Pará e Minas Gerais – já haviam instituído recentemente o instituto da autorização ferroviária estadual com o objetivo de incentivar o aumento dos investimentos privados no setor. Outros estados – Paraná, Mato Grosso do Sul e Pernambuco – já tinham projetos no mesmo sentido. Nesse contexto, a previsão em norma federal tem as virtudes de abrir a mesma possibilidade para todos os estados e de padronizar o instituto da autorização ferroviária no território nacional.
3.2. Contratos de adesão
A autorização ferroviária será formalizada por meio de contrato de adesão. Utiliza-se, portanto, um instrumento já tradicional às autorizações – tal como ocorre no setor de portos, em que os terminais privados autorizados celebram contratos de adesão com o poder público.
As cláusulas essenciais do contrato de adesão são previstas no art. 12 da MP. Já há inclusive uma minuta padrão de contrato de adesão disponível no site do Ministério da Infraestrutura.1
3.3. Prazo do contrato de adesão
O prazo de vigência do contrato de adesão de uma autorização ferroviária será de até 99 (noventa e nove) anos. A previsão de prazo alongado, bem maior do que os prazos máximos de outros setores2, é um importante incentivo aos investidores.
Caberá, aliás, aos requerentes estabelecer no seu requerimento de autorização qual o prazo pretendido.
3.4. Possibilidade de prorrogação do prazo e seus requisitos
O prazo da autorização ferroviária pode ser prorrogado por períodos iguais e sucessivos. Não há nenhuma limitação máxima global de prazo.
Para obter a prorrogação da autorização ferroviária, o autorizatário, a cada pedido de prorrogação, deverá atender a dois requisitos.
O primeiro deles consiste em manifestar prévia e expressamente o interesse na prorrogação. Portanto, com alguma antecedência em relação ao término do prazo, o autorizatário deve manifestar sua intenção em obter a prorrogação do prazo da autorização.
O segundo requisito é que o autorizatário esteja com a infraestrutura ferroviária em operação, ou seja, em efetivo funcionamento.
Em relação ao segundo requisito, no entanto, deve haver um juízo de razoabilidade. Pode-se cogitar de situação em que haverá apenas uma aparência de não operação – em decorrência da sazonalidade da carga transportada, por exemplo. Mas essa aparência nem sempre poderá ser caracterizada como ausência de operação. Será necessário examinar as peculiaridades de cada caso concreto.
3.5. A apresentação do requerimento de autorização
O interessado na obtenção de uma autorização ferroviária em novas ferrovias ou em novos pátios ferroviários pode requerê-la ao Ministério da Infraestrutura. Esse requerimento pode ocorrer a qualquer tempo. Não há um prazo máximo.
3.6. Informações mínimas do requerimento de autorização
O requerimento de autorização deve ser acompanhado de algumas informações mínimas: (1) minuta do contrato de adesão preenchido com os dados propostos pelo requerente, (2) estudo técnico da ferrovia e (3) certidões de regularidade fiscal do requerente.
3.6.1. A minuta de contrato de adesão
A minuta de contrato de adesão está disponível no site do Ministério da Infraestrutura.3 Note-se que o requerente não precisa desde logo assinar o contrato, mesmo porque a minuta é apresentada com o requerimento que ainda será analisado. A exigência de apresentação da minuta destina-se apenas a agilizar o procedimento de autorização.
A existência desde logo de uma minuta de contrato de adesão, aliás, é muito salutar. Já permite que os interessados vejam na prática quais serão as condições concretas da avença, ainda que possa haver adaptações pontuais em cada caso concreto.
3.6.2. O estudo técnico da ferrovia
Com relação ao estudo técnico da ferrovia, ele deve conter, no mínimo, as seguintes informações: (1) indicação do traçado total da infraestrutura ferroviária pretendida, (2) configuração logística e aspectos urbanísticos e ambientais relevantes, (3) características básicas da ferrovia, com as especificações técnicas da operação compatíveis com o restante da malha ferroviária, e (4) cronograma estimado para implantação ou recapacitação da infraestrutura ferroviária.
Trata-se, na realidade, de informações básicas, que devem dar ao Ministério da Infraestrutura o suporte fático necessário para o exame do pedido, inclusive quanto à compatibilidade com as políticas públicas do setor. Não há a necessidade de se exigir mais informações – nem faria sentido neste momento.
3.6.3. As certidões de regularidade fiscal
Com relação às certidões de regularidade fiscal, não há maiores dúvidas. Regularidade não é o mesmo que quitação. Logo, deverão ser admitidas certidões positivas com efeitos de negativa, por exemplo.
3.7. O procedimento para a autorização
Conhecido o requerimento, o Ministério da Infraestrutura deverá examinar a compatibilidade do pleito com a política nacional de transporte ferroviário. Trata-se de um exame de natureza técnica, mas que possui inegavelmente também um conteúdo político.
Depois desse exame de compatibilidade, o Ministério da Infraestrutura publicará o extrato do requerimento, inclusive em seu sítio eletrônico na internet, de modo que as informações principais possam ser acessadas por todos.
Em seguida, a ANTT será ouvida sobre o requerimento. Nesse momento, a análise precisará tratar do pedido de forma mais minuciosa, uma vez que caberá à agência a avaliação acerca da “compatibilidade locacional” da ferrovia requerida com as demais infraestruturas implantadas ou outorgadas. O exame da compatibilidade locacional será de evidente relevância para subsidiar o Ministério da Infraestrutura em sua decisão final.
Pode-se imaginar que, perante a ANTT, o interessado deva ter oportunidades para manifestações adicionais, notadamente se a agência colocar em dúvida a compatibilidade locacional do empreendimento pretendido.
Será importante que a decisão da ANTT acerca da compatibilidade locacional seja bem informada e ponderada. O interessado deverá ter a oportunidade de se manifestar e de trazer informações adicionais que eventualmente sejam relevantes à agência. A ANTT deverá também examinar eventuais alternativas que viabilizem o empreendimento pretendido. Tanto é que a MP prevê expressamente que, se for verificada a incompatibilidade locacional, o requerente terá a oportunidade de apresentar solução técnica adequada para o conflito identificado (art. 7º, §4º).
Após a manifestação da ANTT, o Ministério deliberará acerca do requerimento.
Por fim, o resultado da deliberação será publicado e, caso o requerimento seja deferido, haverá a publicação também do extrato do contrato de adesão.
3.8. Decisão de caráter vinculante
A MP deixa muito claro que nenhuma autorização será rejeitada pelo Ministério da Infraestrutura, a não ser diante de três situações: (1) inobservância ao disposto na MP e em seu regulamento, (2) incompatibilidade com a política nacional de transporte ferroviário e (3) motivo técnico operacional relevante devidamente justificado.
É claro que sempre haverá uma margem de interpretação na identificação dessas três situações. Mas a ideia da MP é que a decisão tenha caráter vinculante. Outorgar ou não uma autorização ferroviária não será uma opção discricionária. Ausente qualquer situação de impossibilidade, a autorização deverá ser concedida.
3.9. O chamamento público
A qualquer tempo, o Ministério da Infraestrutura poderá determinar que a ANTT abra um processo de chamamento público para identificar e selecionar interessados na obtenção de autorização em ferrovias.
3.9.1. As situações em que o chamamento público é cabível
O chamamento público será cabível diante de situações que envolvam ferrovias (1) não implantadas, (2) sem operação, (3) em processo de desativação ou devolução, (4) outorgadas a empresas estatais, exceto as subconcedidas, ou (5) ociosas, nos termos do regulamento.
Não há maiores detalhes sobre quando poderá haver um chamamento público. O fato é que mesmo nas hipóteses em que for cabível, o chamamento público não será obrigatório.
O §2º do art. 9º da MP estabelece que o procedimento de chamamento público deve ser realizado em consonância com as diretrizes do planejamento e da política nacional de transporte ferroviário. A partir desse dispositivo, uma conclusão possível é a de que, se o Ministério entender que o chamamento público é necessário para atender as diretrizes do planejamento setorial, poderá fazê-lo.
Deverá haver cautela na definição pela realização ou não de um chamamento público.
De um lado, trata-se de importante instrumento para ampliação do rol de interessados. Certos aspectos inclusive concorrenciais poderão estar envolvidos, uma vez que a execução de um empreendimento pode, em tese, inviabilizar outros investimentos futuros por terceiros.
De outro lado, o chamamento público traz uma complexidade ao procedimento que muitas vezes será desnecessária e impertinente. O fato é que o procedimento de autorização foi criado para agilizar a execução de investimentos. Em certas situações, a realização de um chamamento público acaba sendo negativa.
3.9.2. Possibilidade de cisão de trechos rodoviários
A MP admite a possibilidade de haver a cisão de trechos ferroviários que estejam em regime de concessão ou permissão, de modo que possa haver uma autorização apenas desses trechos. Nesse contexto, deverão ser levados em conta inclusive eventuais direitos da administradora ferroviária atual. A cisão de trechos certamente envolverá algumas complexidades marcantes.
3.9.3. O edital do chamamento público
O edital do chamamento público deverá indicar, no mínimo, as seguintes informações: (1) a ferrovia a ser autorizada, (2) o perfil de cargas ou de passageiros transportados e (3) a contrapartida mínima devida pela autorização, incluída a possibilidade de pagamento de outorga.
3.9.4. A possibilidade de pagamento pela outorga
Portanto, há a possibilidade de se prever o pagamento pela outorga de uma autorização ferroviária.
3.9.5. Necessidade ou não de processo seletivo
Encerrado o processo de chamamento público, haverá a expedição de autorização ao interessado caso haja apenas uma proposta habilitada.
Se houver mais propostas habilitadas, a ANTT disciplinará os procedimentos e os prazos para a realização de processo seletivo público – que não se trata propriamente de uma licitação, ainda que seja um processo competitivo. Nesse caso, o critério de julgamento será o maior lance, incluída a possibilidade de pagamento pela outorga. Deverão ser observados os princípios que regem a Administração Pública, tais como os da moralidade, publicidade e impessoalidade.
3.9.6. O prazo da autorização nos casos de consulta pública
Nos casos de consulta pública, o prazo da autorização estará definido nos instrumentos da consulta. Não caberá ao autorizatário estabelecer o prazo por meio de requerimento.
3.10. As desapropriações necessárias à instalação da infraestrutura
Caso sejam necessárias desapropriações para a instalação da linha a ser operada pela autorização ferroviária, a fase declaratória do procedimento de desapropriação será realizada pela ANTT com base em estudo apresentado pela autorizatária. Os custos e os riscos da fase executória do procedimento de desapropriação serão de responsabilidade integral da autorizatária.
3.11. Ausência de reequilíbrio econômico-financeiro
Nas autorizações ferroviárias, o autorizatário assume o risco integral do empreendimento, sem direito a reequilíbrio econômico-financeiro.
3.12. Os bens da autorização ferroviária
Os bens móveis e imóveis constituintes da ferrovia autorizada não serão reversíveis ao Poder Público quando a autorização for extinta, a não ser que se trate de bens públicos transferidos à autorizatária.
Evidentemente, bens públicos que tiverem sido alienados à autorizatária não serão reversíveis porque, na prática, terão se convertido em bens privados. Sua reversão equivaleria a uma desapropriação ou retomada desses bens.
A MP prevê ainda que a autorizatária não fará jus a qualquer indenização junto ao poder público em caso de execução de melhorias nos bens reversíveis, ainda que não tenham sido amortizadas.
3.13. Renúncia à autorização
O autorizatário poderá renunciar à autorização, hipótese em que ela se extinguirá.
A renúncia é um ato formal, unilateral, irrevogável e irretratável pelo qual a autorizatária manifesta o seu desinteresse pela autorização.
É importante esclarecer, no entanto, que a renúncia não será causa isolada para punição da autorizatária e não a desonerará de multas contratuais ou obrigações assumidas perante terceiros.
3.14. Adaptação de concessões ferroviárias em autorizações
A MP ainda estabelece a possibilidade de que as concessionárias ferroviárias federais requeiram a adaptação dos seus contratos de concessão em autorizações.
A renúncia é um ato formal, unilateral, irrevogável e irretratável pelo qual a autorizatária manifesta o seu desinteresse pela autorização.
As adaptações poderão ocorrer quando um anova ferrovia construída a partir de autorização ferroviária federal entrar em operação, caso a autorização tenha sido outorgada (1) a pessoa jurídica concorrente em trecho no qual haja efetiva contestabilidade (ouvida a Secretaria de Acompanhamento Econômico), ou (2) a integrante do mesmo grupo econômico da atual administradora ferroviária de forma a expandir a extensão ou a capacidade ferroviária, no mesmo mercado relevante, em percentual não inferior a 50%.
As adaptações a autorizações ferroviárias devem ainda observar algumas exigências: (1) inexistência de multas ou encargos setoriais não pagos, (2) manutenção no contrato da autorização das obrigações financeiras perante a União e das obrigações de eventuais investimentos estabelecidos em contrato, bem como das obrigações de transporte celebradas com os demais usuários do sistema, (3) prestação de serviço adequado, nos termos do contrato, e (4) manutenção de serviços de transporte de passageiros no novo contrato de autorização, na hipótese de a concessionária requerente já operar linha regular de transporte de passageiros.
4. Conclusões
Uma crítica que se faz às autorizações ferroviárias é que elas podem comprometer a unidade e a coerência dos investimentos no setor. Confiar nas autorizações ferroviárias como um modo de “virar a chave” dos investimentos no setor seria demasiado, segundo essas críticas.
No entanto, a autorização é apenas mais uma forma de investimentos no setor. Continuarão existindo concessões e permissões. As autorizações são, na prática, uma forma adicional de incentivos no setor ferroviário, e já tem demonstrado na prática que contará com uma significativa adesão dos investidores. Apenas com o tempo será possível avaliar os resultados. O fato é que o setor ferroviário precisa de investimentos e as mudanças introduzidas pela MP 1.065 são uma tentativa válida e necessária de destravar esses investimentos. Caso aprovada, a lei de conversão da MP terá inclusive a oportunidade de aprimorar as previsões atualmente em vigor.
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1https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre/programa-de-autorizacoes-ferroviarias/modelo-contrato-de-adesao-31-08-2021.docx/+&cd=1&hl=ptBR&ct=clnk&gl=br (acesso em 29.9.2021).
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2 No setor portuário, por exemplo, as autorizações têm prazo de até 25 (vinte e cinco) anos, prorrogáveis sucessivamente, desde que atendidos os requisitos legais. Na prática, tal como nas autorizações ferroviárias, as autorizações portuárias também podem ser prorrogadas sucessivamente, sem nenhuma limitação máxima de tempo. A diferença é que o prazo máximo de cada período, no setor portuário, é bem menor.
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3https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre/programa-de-autorizacoes-ferroviarias/modelo-contrato-de-adesao-31-08-2021.docx/+&cd=1&hl=ptBR&ct=clnk&gl=br (acesso em 29.9.2021).