1. Introdução
O art. 30, § 1º, inc. I, da Lei 8.666/93 estabelece que as exigências de comprovação de capacitação técnico-profissional (acervo técnico dos profissionais – indivíduos – que integram a empresa licitante) devem ser limitadas “às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto da licitação, vedadas as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos”. Apesar da literalidade do dispositivo, o tema ainda gera controvérsias na jurisprudência – tanto em razão da impossibilidade de se minudenciar, no texto da lei, limites precisos para as exigências que a Administração deverá adotar, quanto em razão dos vetos presidenciais que desnaturaram a sistemática que havia sido originalmente estabelecida na Lei.1
2. A capacitação técnico-profissional segundo a nova Lei de Licitações
Em razão dessas dificuldades, essa vedação foi suprimida no texto da nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21).
Os §§ 1º e 2º do art. 67 da nova Lei, que tratam da documentação relativa à qualificação técnico-profissional e à qualificação técnico-operacional (inerente à empresa, como unidade jurídica e econômica), passaram a admitir a “exigência de atestados com quantidades mínimas de até 50% (cinquenta por cento) das parcelas” de “maior relevância ou valor significativo do objeto da licitação, assim consideradas as que tenham valor individual igual ou superior a 4% (quatro por cento) do valor total estimado da contratação”.
3. O entendimento da jurisprudência
A nova Lei confere uma possível solução à divergência da jurisprudência. Afinal, até então, havia decisões favoráveis e desfavoráveis à estipulação de quantitativos mínimos para atestados de capacidade técnica profissional.
3.1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, consignou que “a melhor inteligência da norma ínsita no art. 30, § 1º, inc. I (parte final) da Lei de Licitações orienta-se no sentido de permitir a inserção no edital de exigências de quantidades mínimas ou de prazos máximos quando, vinculadas ao objeto do contrato, estiverem assentadas em critérios razoáveis”.2
3.2. A jurisprudência do Tribunal de Contas da União favorável à exigência de quantitativos mínimos
No Tribunal de Contas da União, o Acórdão 3.070/2013-Plenário indicou que “[e]specialmente em serviços de maior complexidade técnica (…) seria imprescindível a apresentação de atestado de capacidade técnico-profissional com exigência de quantitativos mínimos, sob pena de a Administração atribuir responsabilidade pela prestação dos serviços a profissionais que não detêm capacidade técnica demonstrada na execução de serviços de porte compatível com os que serão efetivamente contratados”.3
Da mesma forma, no Acórdão 1.214/2013-Plenário, o TCU determinou que a “interpretação literal do dispositivo em tela nos levaria a concluir que não seria permitido fazer exigências de quantidades mínimas ou prazos mínimos em relação aos serviços que estão sendo contratados, no que se refere à capacidade técnico-profissional”. No entanto, “sabe-se que apesar de a interpretação literal ser aquela que mais facilmente se extrai da lei, ela nem sempre é a que se revela mais adequada ao atendimento do interesse público”.4
No mesmo sentido, em 2016, ao avaliar as peculiaridades do caso concreto, o TCU afirmou ser razoável a exigência de comprovação de “experiência em torno de 25 a 30% do que será necessário para execução da obra”, para habilitação técnico-profissional. Contudo, considerou desarrazoada a exigência de capacidade técnico-profissional que atingiu 59% do objeto a ser executado.
Na mesma oportunidade, indicou que a “experiência da empresa na execução de obra é importante, mas não determinante”, afinal, “[s]em profissional qualificado, a contratada não tem o mesmo desempenho, mesmo que tenha capacidade gerencial e equipamentos”.5
Mais recentemente, em 2020, o TCU consignou que “esta Corte possui precedentes no sentido de que, ao se exigir quantitativos mínimos para fins de comprovação da capacidade técnico-profissional das licitantes, a Administração deve apresentar a devida motivação dessa decisão administrativa, evidenciando que a exigência é indispensável à garantia do cumprimento da obrigação (Acórdãos 492/2006, 1.124/2013, 3.070/2013, 534/2016, todos do Plenário)”.6
3.3. A jurisprudência do Tribunal de Contas da União desfavorável à exigência de quantitativos mínimos
Por outro lado, sempre existiram julgados em sentido contrário.
No Acórdão 2521/2019, por exemplo, o TCU afirmou que “[a]lém de contar com previsão expressa na lei de referência, o magistério jurisprudencial desta Casa de Contas tem entendido que a imposição de quantidades mínimas, no quesito de capacitação técnico-profissional, divorcia-se do disposto no art. 30, §1º, inciso I, da Lei 8.666/1993”.7
Citou, nesse sentido, o Acórdão 165/2012-Plenário: “A exigência de quantitativo mínimo, para fins de comprovação da capacidade técnico profissional, contraria o estabelecido no art. 30, § 1º, inciso I, da Lei 8.666/1993”.8
Ainda mais recentemente, em 2021, o Acórdão 634/2021 reiterou que “a jurisprudência do TCU acolhe a literalidade do referido dispositivo legal [art. 30, §1º, inc. I, da Lei 8.666], ou seja, veda a exigência de quantitativo mínimo para a comprovação de qualificação técnico-profissional (v.g. Acórdãos 2.521/2019 e 165/2012, ambos do Plenário, da relatoria respectiva dos Ministros Marcos Bemquerer e Aroldo Cedraz)”.9
4. Considerações finais
Em suma, como se vê, o tema não possui um entendimento pacificado no que se refere à Lei 8.666/93.
Caso se entenda possível a exigência de quantitativos mínimos para capacidade técnico-profissional (o que pode nem sempre ocorrer), exige-se ao menos razoabilidade e motivação adequada por parte da Administração.
Com a nova Lei o cenário se altera. Estima-se que a possibilidade de tal exigência será pacificada, desde que limitada a 50% do quantitativo do objeto a ser contratado.10
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1 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/1993, 18. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 713 e ss.
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2 STJ, 2ª Turma, REsp 466.286/SP, Rel. Min. João Otávio Noronha, DJ 20.10.2003
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3 TCU, Plenário, Acórdão 3.070/2013, Rel. Min. José Jorge, sessão de 13.11.2013.
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4 TCU, Plenário, Acórdão 1.214/2013, Rel. Min. Aroldo Cedraz, sessão de 22.05.2013.
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5 TCU, Plenário, Acórdão 534/2016, Rel. Min. Ana Arraes, sessão de 09.03.2016.
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6 TCU, Plenário, Acórdão 2032/2020, Rel. Min. Marcos Bemquerer, sessão de 05.08.2020.
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7 TCU, Plenário, Acórdão 2.521/2019, Rel. Min. Marcos Bemquerer.
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8 TCU, Plenário, Acórdão 165/2012, Rel. Min. Aroldo Cedraz.
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9 TCU, Plenário, Acórdão 634/2021, Rel. Min. Marcos Bemquerer, sessão de 24.03.2021.
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10 De todo modo, até então, não houve novas decisões a respeito, com exceção da seguinte passagem no Acórdão 1621/2021 do TCU: “Acerca do aspecto da exigência de execução anterior de quantidade mínima de serviços, não há um percentual máximo estabelecido nem na Lei 8.666/1993 (o dispositivo que tratava do assunto, estabelecendo 50%, foi vetado pelo Presidente da República), nem na Lei 13.303/2016. No entanto, em prestígio à jurisprudência consolidada do TCU sobre a matéria, a nova Lei de Licitações e Contratos, Lei 14.133/2021, apresentou a seguinte disposição: ‘Art. 67. A documentação relativa à qualificação técnico profissional e técnico-operacional será restrita a: […] § 2º Observado o disposto no caput e no §