1. Introdução
Há cerca de um ano, o Governo Federal regulamentou a cessão de uso de áreas para a geração de energia elétrica em empreendimentos offshore no Brasil, cujo potencial de exploração é de cerca de 700GW (dez vezes mais do que a produção atual do país)¹. Desde então, foram apresentados quase 50 projetos de licenciamento ambiental de complexos eólicos offshore.² No total, há 70 processos em aberto.
O Decreto 10.946, publicado em 25.01.2022, e as Portarias Ministeriais subsequentes contemplam não só regras sobre a cessão de uso das áreas marinhas, mas também procedimentos de manifestação de interesse, documentos e estudos técnicos necessários, implantação de empreendimentos e gestão unificada dos dados e processos.
Não consistem em marco regulatório sobre o tema, mas representam um grande avanço para a regulamentação da matéria.³
2. Cessão de uso de áreas para geração de energia offshore
O Decreto 10.946 trata da “cessão de uso de espaços físicos e o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore” (art. 1º).
O normativo regulamenta a cessão de áreas de titularidade da União Federal para a geração de energia elétrica por meio de empreendimentos instalados em águas marítimas. Ou seja, não se aplica aos potenciais hidráulicos fluviais nem a atividades relacionadas com exploração e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos (art. 1º, § 3º).
Para não deixar dúvidas, o próprio Decreto define offshore como “o ambiente marinho localizado em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental” (art. 2º, I); e o prisma como “a área vertical de profundidade coincidente com o leito submarino, com superfície poligonal definida pelas coordenadas geográficas de seus vértices, onde poderão ser desenvolvidas atividades de geração de energia elétrica” (art. 2º, II).
Diferentemente da implantação de empreendimentos onshore, que dependem do uso de propriedades terrestres em sua maioria privadas, a geração de energia elétrica offshore depende de área de titularidade da União Federal: o mar. Daí a necessidade de celebração de contrato de cessão de uso entre a União Federal e o interessado na área (art. 1º, VII), que compreenderá tanto a área marítima destinada à instalação dos equipamentos como as áreas terrestres necessárias ao apoio logístico para a manutenção e a operação do empreendimento e para a conexão com o sistema (art. 4º, § 1º, I e II).
Segundo o Decreto, a área a ser cedida poderá ser usada para produção independente ou autoprodução de energia elétrica (art. 5º, I), ou ainda para atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico relacionados à geração de energia elétrica offshore (art. 5º, II). A distinção é relevante porque a cessão de uso será onerosa no primeiro caso e gratuita no segundo (art. 5º, §§ 1º e 2º).
Além disso, o Decreto estabelece que a cessão de uso pode ser
planejada ou independente. Na cessão planejada, os prismas são previamente delimitados e ofertados pela União Federal mediante processo de licitação (art.9º, § 1º). A cessão independente ocorre quando os prismas são requeridos por iniciativa dos interessados (art. 9º, § 2º).
Qualquer das formas de cessão depende da emissão de Declarações de Interferência Prévia de diversos órgãos e entidades (art. 10 do Decreto), que identificarão a eventual existência de interferências do prisma em outras instalações ou atividades (art. 2º, VI, do Decreto).
O caminho a ser percorrido até a liberação da área não é simples:
- O Comando da Marinha deverá avaliar a salvaguarda da vida humana, a segurança da navegação, a prevenção da poluição hídrica e a ausência de prejuízo ao ordenamento do tráfego aquaviário e à defesa nacional.
- O Comando da Aeronáutica deverá avaliar eventual interferência no cone de aproximação de aeródromo e a ausência de prejuízo à segurança ou à regularidade das operações aéreas.
- O IBAMA deverá informar a existência de outros processos de licenciamento ambiental em curso para a exploração da área.
- O Instituto Chico Mendes deverá informar se a área estiver localizada em unidade de conservação ou se houver unidade de conservação próxima e quanto aos possíveis usos futuros da área.
- A ANP deverá avaliar a possibilidade de interferência da implantação do projeto sobre áreas de operação de exploração de gás natural e petróleo e quanto aos possíveis usos futuros da área.
- O Ministério da Infraestrutura deverá avaliar a compatibilidade com o planejamento setorial portuário e de transportes aquaviários e possíveis interferências com investimentos previstos e contratos vigentes de outorgas portuárias.
- O MAPA deverá avaliar a possibilidade de interferência em áreas cedidas para a prática de aquicultura ou em rotas de pesca na região do prisma e quanto a possíveis usos futuros da área.
- O Ministério do Turismo deverá avaliar a possibilidade de conflitos com áreas turísticas ou o impacto paisagístico com região turística contemplativa que demande maior distanciamento da costa e quanto a possíveis usos futuros da área.
- A ANATEL deverá avaliar potenciais conflitos com áreas de redes e sistemas de comunicações.
Ademais, a cessão para geração de energia elétrica (prevista no art. 5º, I, do Decreto) depende de estudos de identificação do potencial energético offshore do prisma, que poderão ser elaborados pela EPE ou obtidos por outros meios, desde que prévios à celebração do contrato (art. 18, § 1º). Esses estudos também deverão ser aprovados pela ANEEL, sendo condição da outorga para exploração do serviço (art. 24).
Por fim, o Decreto dispõe que o contrato de cessão, por si só, não gera o direito à exploração do serviço pelo cessionário, que dependerá de autorização da ANEEL (art. 5º, § 3º). Por sua vez, a comercialização da energia gerada pelo empreendimento offshore observará as regras de comercialização existentes (art. 6º), ficando a critério do Ministério de Minas e Energia a realização de leilões específicos para a contratação de energia elétrica offshore (art. 23).
3. Cessão onerosa de uso de áreas offshore
A cessão para geração de energia elétrica offshore, ou seja, a cessão onerosa, foi regulamentada com mais detalhes pelo Ministério de Minas e Energia (Portaria Normativa 52/2022). A pesquisa e o desenvolvimento, objeto de cessão gratuita, não são objeto da mesma norma (art. 1º, § 2º).
Segundo a Portaria, caberá à ANEEL celebrar o contrato de cessão de uso de áreas offshore (art. 3º), além da promoção da licitação, definição da forma de apuração de valores e pagamentos, bem como as sanções aplicáveis (art. 3º, § 1º). O contrato de cessão onerosa terá vigência máxima de dez anos (art. 8º), sendo condição necessária para o licenciamento ambiental no IBAMA (art. 10).
Ainda, o limite máximo de área a ser cedida em um mesmo contrato dependerá: do histórico de atuação do interessado, incluindo a experiência internacional; do uso da área avaliado em referências nacionais e internacionais; e da proximidade com outros empreendimentos para manutenção sobretudo da segurança do tráfego aquaviário (art. 11).
A Portaria também trata das cessões planejadas e independentes.
Na cessão planejada, a identificação dos prismas poderá ser feita pela EPE, pelo interessado ou pelo Ministério de Minas e Energia, devendo levar em conta: a disponibilidade da área; o uso dos recursos naturais disponíveis para geração de energia elétrica; a disponibilidade de conexão e capacidade de escoamento da rede futura; a competitividade do potencial de geração em relação às demais fontes; a distância da costa; a existência ou o planejamento da estrutura portuária para atender às necessidades do atendimento; e a manutenção das atividades humanas no meio marítimo e a preservação da natureza (art. 13).
A cessão independente pressupõe a indicação, pelo interessado: da finalidade da cessão de uso; dos dados relativos aos limites e coordenadas georreferenciadas do prisma; dos estudos que determinaram a escolha da área e o potencial de produção de energia estimado preliminar; da disponibilidade de conexão e a capacidade de escoamento da rede futura; e das credenciais técnicas, econômicas e financeiras para comprovação da capacidade de desenvolvimento do projeto.
Por fim, a Portaria prevê expressamente que a cessão de uso não impõe ao Poder Público a obrigação de realizar leilões para a compra específica nem leilões de transmissão para escoamento da energia produzida nos empreendimentos offshore (art. 4º, §§ 5º e 6º).
4. Portal único para gestão do uso das áreas offshore
Também foi criado o Portal Único para Gestão do Uso de Áreas Offshore para Geração de Energia: o PUG-offshore (art. 1º da Portaria Interministerial 03/2022 do Ministério de Minas e Energia e do Ministério do Meio Ambiente).
Por meio do Portal, o interessado poderá apresentar requerimento de cessão de uso independente, realizar consulta externa do andamento dos pedidos de cessão independente, visualizar as áreas requeridas ou ofertadas em procedimento de cessão planejada e independente, solicitar as Declarações de Interferência Prévia (DIP) e acessar os demais serviços de acompanhamento processual (art. 1º, § 1º).).
O PUG-offshore ainda não está em funcionamento, mas a sua gestão será de responsabilidade da ANEEL (art. 2º) e o seu uso será obrigatório a todos os órgãos envolvidos no procedimento de cessão de áreas offshore (art. 2º).
Em suma, o Portal será o meio oficial de tramitação do processo de cessão de uso (art. 5º), sendo inclusive a plataforma de recebimento de notificações dos atos processuais (art. 6º).
5. Considerações finais
A regulamentação da geração de energia elétrica offshore fornece segurança jurídica aos investidores e fomenta o desenvolvimento do setor. Permite, de imediato, a tomada de providências por parte do Poder Público em relação à cessão de áreas marítimas e à realização de estudos de viabilidade – sobretudo relacionados a empreendimentos eólicos, mas não necessariamente limitados a eles (pode-se pensar em energia solar flutuante ou no movimento das marés como fonte energética).
Segundo estudo recente do setor eólico,⁴ os benefícios socioambientais e econômicos da construção dos complexos eólicos offshore são diversos. Além de serem uma alternativa energética renovável, contribuindo para o alcance das metas carbono zero, têm grande potencial de geração de empregos e renda para a população.
Há também grandes desafios a serem superados, especialmente relacionados ao desenvolvimento da infraestrutura portuária e logística para implementação dos parques, bem como da infraestrutura de transmissão para o escoamento da energia – sem falar nas questões ambientais inerentes a qualquer intromissão dessa magnitude na natureza terrestre e marítima.
De todo modo, o Decreto 10.946 e as Portarias Ministeriais parecem ser os primeiros passos de uma caminhada promissora não só no sentido da expansão da capacidade instalada como do aumento da matriz energética renovável do Brasil.
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¹Dados do IBAMA: https://www.gov.br/pt-br/noticias/meio-ambiente-e-clima/2022/11/eolica-offshore-e-a-aposta-do-brasil-para-consolidar-a-transicao-energetica (acesso em 12.01.2013).
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²Dados do IBAMA: http://www.ibama.gov.br/laf/consultas/mapas-de-projetos-em-licenciamento-complexos-eolicos-offshore (acesso em 16.01.2013).
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³Há dois projetos de lei em trâmite no Congresso. O PL 11247/2018 “dispõe sobre a ampliação das atribuições institucionais relacionadas à Política Energética Nacional com o objetivo de promover o desenvolvimento da geração de energia elétrica a partir de fonte eólica localizada nas águas interiores, no mar territorial e na zona econômica exclusiva e da geração de energia elétrica a partir de fonte solar fotovoltaica”. O PL 576/2021 “disciplina a outorga de autorizações para aproveitamento de potencial energético offshore”. Ambos são de iniciativa do Senado Federal e estão atualmente na Câmara dos Deputados.
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⁴Estudo Cadeia de Valor: Energia Eólica Offshore, dezembro de 2022. Desenvolvido pela Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (ABEEólica), em parceria com a Coppe/UFRJ e Essenz Soluções, sob a coordenação de Maurício Tolmasquim. Disponível em: https://abeeolica.org.br/energia-eolica/dados-abeeolica/ (acesso em 24.01.2023).