1. Introdução
Em 12.12.2022, foi publicado o acórdão do ARE 843.989, que firmou a tese sobre a aplicação de disposições da Lei 14.230/21 (que alterou a Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/92).
Dentre outros aspectos 1, o acórdão trata de temas relacionados à natureza do ato de improbidade administrativa e ao regime jurídico aplicável ao caso concreto. O enfoque dado a tais temas tem como elemento central a relação (ou o afastamento) entre o direito administrativo sancionador e o direito penal.
Sobre a natureza do ato de improbidade, alguns dos ministros afirmaram que o regime da improbidade administrativa se aproxima do direito penal – e, por essa razão, seriam aplicáveis os princípios deste ramo por simetria –, enquanto outros atribuíram natureza civil a esses atos.
A extensão dos votos e os posicionamentos divergentes revelam a complexidade da discussão e a necessidade de definição acerca da abrangência e dos efeitos do enquadramento legal do sistema de improbidade no âmbito do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º, Lei 8.429).
Como se extrai dos votos dos Ministros, que serão aqui resumidos, a definição do direito administrativo sancionador se constitui em uma questão controversa e anterior à natureza do ato de improbidade.
2. A relação intrínseca entre a interpretação dada ao direito administrativo sancionador e a natureza do ato ímprobo
Quando se trata de improbidade administrativa, é essencial ter em mente uma definição precisa sobre o direito administrativo sancionador.
Essa conexão foi positivada pelo art. 1º, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa (incluído pela Lei 14.230/21), que determina a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema de improbidade.
Isso garante que, por se tratar de um tema pertencente ao direito administrativo sancionador, a interpretação sobre a natureza do ato ímprobo é uma consequência daquilo que se pensa sobre o direito administrativo sancionador, em uma relação indissociável.
3. A controvérsia sobre o direito administrativo sancionador
O direito administrativo sancionador é usualmente interpretado de duas maneiras distintas.
Uma das correntes se posiciona pela sua proximidade intensa com o direito penal, o que permitiria a utilização de interpretação por analogia das regras de direito administrativo sancionador.
Assim, deveriam ser aplicados ao direito administrativo sancionador, por simetria, os princípios do direito penal e processual penal.2 Essa correlação se daria porque se trata da aplicação de sanções severas como consequências de ilícitos praticados, sendo ambos caracterizados como exercícios do ius puniendi estatal.
A outra corrente afirma a independência e autonomia de ambas as áreas, o que não permitiria uma transposição automática dos princípios.
Segundo essa vertente, as garantias constitucionais do direito penal não devem ser aplicadas aos ilícitos administrativos porque não há previsão expressa.3 A título demonstrativo, para essa corrente não se aplicaria a regra da retroatividade às regras de direito administrativo sancionador, porque a Constituição especifica que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5º, inc. XL).
3.1. O julgamento do ARE 843.989
Os votos dos Ministros no julgamento do ARE 843.989 abordaram essas controvérsias. Em razão da relação intrínseca dos temas (vide item 2), a maioria dos Ministros fundamentou o seu posicionamento a respeito da natureza do ato ímprobo a partir do seu entendimento sobre o direito administrativo sancionador.
3.1.1. Adoção da analogia entre direito administrativo sancionador e direito penal
Os Ministros Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes adotaram a primeira corrente para fundamentar seus votos.
O Min. Nunes Marques afirmou que “[e]m face de uma pretensão punitiva, quer no âmbito penal, quer no campo administrativo, o regime jurídico aplicável é o de direito sancionador” – o que garantiria que o particular sujeito à pretensão acusatória do Estado devesse ser tutelado “pelos mesmos direitos e garantias fundamentais e constitucionalmente previstos contra a pretensão punitiva”.
Os Ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, na mesma linha, afirmaram que as referidas áreas do direito estão correlacionadas por exteriorizarem a manifestação penalizadora do Estado – o que evidenciaria a considerável similitude ontológica e principiológica das duas áreas.
O Min. Gilmar Mendes, se referindo a uma “profunda conexão” entre os ramos, advertiu que a interpretação no sentido da independência absoluta seria um equívoco metodológico.4
3.1.2. Adoção da distinção entre direito administrativo sancionador e direito penal
Por outro lado, os Ministros Alexandre de Moraes (então Relator), Rosa Weber e Cármen Lúcia adotaram a segunda corrente como fundamento de seus votos.
Para o Min. Alexandre de Moraes, o direito administrativo sancionador se difere do direito penal porque este “materializa o ius puniendi na seara judicial”, enquanto aquele tem aplicação no exercício do ius puniendi administrativo. Segundo ele, a despeito dos ramos se constituírem em expressões do poder punitivo estatal, representam sistemas sancionatórios que não apresentam similitude na lógica da operação. Durante a sessão de julgamento, garantiu que o direito administrativo sancionador é voltado para a proteção da Administração Pública, enquanto o direito penal tutela a liberdade do criminoso, o que impossibilitaria qualquer analogia.
As Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia rejeitaram o entendimento de que haveria transposição automática e linear dos princípios de direito penal para o administrativo sancionador. Segundo a Min. Cármen Lúcia, isso se daria pela distinção da finalidade protetiva de ambos e pela “diversidade da gravidade das sanções por eles instituída”.
O Min. Edson Fachin não chegou a explanar suas concepções sobre o direito administrativo sancionador especificamente, mas decidiu pela natureza cível da improbidade sob a justificativa de que a própria Constituição, por meio do art. 37, § 4º, a distingue dos princípios aplicados ao direito penal. 5
Considerando a relação intrínseca entre o direito administrativo sancionador e a natureza do ato de improbidade, isso também o enquadraria na segunda corrente.
3.1.3. Reconhecimento da analogia com ressalvas
Já os Ministros André Mendonça, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux chegaram a reconhecer a existência de certa identificação entre as áreas, mas sem corroborar com a irrestrita aplicação da simetria.
Para o Min. André Mendonça, haveria uma “inegável zona de interseção” entre as duas áreas do direito, mas que “gozam de inafastável autonomia e independência entre si”. Assim, a aplicação dos princípios do direito penal ao direito administrativo sancionador não deveria ocorrer de forma absoluta e sem cogitar a necessidade de adaptações. Na análise do caso concreto, entendeu pela retroatividade das disposições sobre a modalidade culposa do ato ímprobo.
O Min. Luís Roberto Barroso reconheceu analogias legítimas entre direito penal e direito administrativo sancionador, mas julgou que a retroatividade benéfica só seria imposta pela Constituição em matéria penal.
O Min. Luiz Fux afirmou que os dois ramos do direito compartilham um núcleo constitucional comum, mas que não visualiza os dois ramos como “figuras exatamente idênticas”. Nesse sentido, pontuou que seria necessário ter cautela para transpor princípios penais ao direito administrativo sancionador, “sob pena de desnaturar a característica inerente ao ordenamento criminal de agir como ultima ratio, último recurso, de controle jurídico dos fatos sociais”. E acompanhou o Relator integralmente no dispositivo, pela retroatividade da Lei somente nos casos ainda não transitados em julgado.
3.1.4. A interpretação da Corte Interamericana trazida por Nunes Marques
Ao invocar o art. 9º do Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe sobre a retroação da lei mais benéfica ao delinquente6, o voto do Min. Nunes Marques apresentou precedentes importantes da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema de direito sancionador.
Segundo esses julgados, já houve definição das diretrizes de incidência dos princípios penais em processos/procedimentos não criminais, indicando que a aplicação das garantias se refere a contextos nos quais há “desequilíbrio de poder na relação jurídica entre Estado e particular”.
Um desses precedentes, em especial, aplica a retroação benéfica prevista no referido art. 9º em matéria de sanção administrativa – isto é, aproxima o sistema sancionatório administrativo do sistema criminal.
4. Considerações finais
Como visto, além de tratar da natureza do ato de improbidade administrativa e o seu respectivo regime jurídico, o julgamento do ARE 843.989 também foi pautado pela discussão sobre as balizas do direito administrativo sancionador.
Apesar de firmarem tese a respeito das disposições da Lei 14.230 (Tema 1.199), os posicionamentos divergentes sobre o direito administrativo sancionador evidenciam que o núcleo da questão tende a ser muito mais problemático do que se presenciou no julgamento. A falta de precisão a respeito das premissas do direito administrativo sancionador gera complicações que transcendem o caso concreto, já que este é o sistema aplicável a todos os outros regimes de sancionamento administrativo.
A recente positivação da necessidade da aplicação dos “princípios do direito administrativo sancionador” (art. 1º, § 4º, da Lei 8.429) deve aquecer ainda mais o debate. Afinal, sem delineamentos precisos a respeito das fontes e simetrias do direito sancionatório administrativo, será impossível mensurar com clareza quais seriam esses princípios exigidos pela Lei.
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1 Sobre o julgamento, confira-se GUIMARÃES, Júlia Venzi G.; VASCONCELLOS, João Pedro Lima de. O julgamento do ARE 843.989 e o regime jurídico aplicável aos atos de improbidade administrativa. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 186, agosto de 2022, disponível em http://www.justen.com.br, acesso em 15.12.2022.
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2 Nesse sentido, confira-se OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 87.
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3 A propósito da questão, Marçal Justen Filho explica que essas garantias são, em verdade, próprias do direito público sancionatório e que, apesar de formalmente consagradas no âmbito do direito penal, também devem se aplicar para sancionamentos administrativos, como no caso da improbidade (Reforma da Lei de Improbidade Administrativa: comparada e comentada (Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021). Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 19-20).
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4 O Min. Gilmar Mendes já havia se posicionado nesse sentido em julgamento recente da Segunda Turma, ocasião na qual foi acompanhado pela maioria (com divergência do Min. Edson Fachin): “(…) o subsistema do direito penal comina, de modo geral, sanções mais graves do que o direito administrativo sancionador. Isso significa que mesmo que se venha a aplicar princípios penais no âmbito do direito administrativo sancionador – premissa com a qual estamos totalmente de acordo, o escrutínio do processo penal será sempre mais rigoroso” (Rcl. 41.557, 2ª T., rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 9.3.2021 – original sem negrito).
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5 Confira-se o trecho: “Diferente é o tratamento dado pela Constituição às violações à improbidade administrativa, quando estabelece de forma peremptória no art. 37, § 4º, em verdadeiro mandado de sanção cível e administrativa, que os atos de improbidade
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6 O dispositivo tem a seguinte redação: “Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado” (original sem negrito).