O CASO FTX: SMART CONTRACTS, CRIPTOATIVOS E TENDÊNCIAS DA REGULAÇÃO

1.  O caso FTX

Nos últimos dias, uma das maiores corretoras de criptoativos do mundo,  a FTX, enfrentou graves problemas de liquidez e deu início a processo de  falência (Chapter 11).

Ao acompanhar a evolução desse processo de restrição de liquidez que culminou no requerimento de falência verificou-se uma situação de descontrole  absoluto de contas. 

Informações constantes do processo de falência e divulgadas pela  imprensa especializada demonstram que a FTX promoveu operações com  partes relacionadas usando fundos e ativos de clientes da corretora, sem a  autorização destes e em benefício de empresa vinculada aos sócios e  administradores da FTX (a Alameda Research).1

2. A repercussão do caso e efeitos sobre a regulação de criptoativos e  prestadores de serviço de ativos virtuais (VASPs – Virtual Assets  Service Providers)

Evidentemente, o caso disparou sinais de alerta para reguladores e  legisladores em todo o mundo.2 Lembre-se que a regulação das atividades  envolvendo ativos virtuais ainda se encontra muito incipiente e embrionária.

Há vários países discutindo a regulação dessas atividades. Na Europa, o  MiCa (Markets in Cryptoassets regulation) está passando pela definição final de  seus termos e forma de implantação. Nos Estados Unidos, a regulação é objeto  de ampla discussão no Congresso americano. No Brasil, o projeto de lei  4.401/2021 aguarda exame pela Câmara após ter sido aprovado pelo Senado  Federal. 

Não há dúvida de que os eventos envolvendo a FTX desencadearão  efeitos sobre o panorama regulatório no mundo todo.

3. Ressalva inicial: ausência de afetação da tecnologia em si

 De qualquer modo, os eventos envolvendo a FTX não se relacionam a  falhas ou problemas com a tecnologia blockchain, que constitui a base e  infraestrutura na qual são criados e emitidos os criptoativos. Pelo contrário, pelo que se depreende dos fatos que têm sido divulgados, os problemas  envolvendo a FTX relacionam-se à má gestão de fundos e ativos de terceiros e  falta de controles internos adequados das operações da corretora (compliance).3 Não há qualquer questionamento relacionado à tecnologia  blockchain em si. 

A questão é relevante na medida em que é necessário definir de modo adequado o objeto da regulação. Não se deve regular propriamente a  tecnologia – que está em constante evolução e desenvolvimento – mas as  condutas e diversos usos que são dadas à tecnologia. Em outras palavras: a  regulação deve ser neutra com relação à tecnologia e ter por objeto as  condutas e o uso dado a ela. É o que se denomina de regulação  tecnologicamente neutra

 A regulação deve mirar a utilização, a função atribuída à tecnologia. As  condutas, operações e atividades que são executadas com base em  determinada tecnologia é que são reguladas. Assim, por exemplo, a utilização  da tecnologia blockchain para operações financeiras submeter-se-á a uma  determinada regulação, que não será a mesma que incidirá sobre a utilização  da mesma tecnologia para a medicina, por exemplo. Aos diversos usos da  tecnologia corresponderão diferentes exigências regulatórias e legais. 

4. Possíveis desdobramentos e efeitos dos eventos envolvendo a FTX  para a regulação e o mercado de criptoativos 

 A despeito de não derivar de falhas ou problemas na tecnologia  blockchain, é evidente que os eventos derivados do episódio FTX – que ainda  deverão gerar repercussão, inclusive com efeitos sobre outros operadores,  players e corretoras que mantinham relacionamento ou se utilizavam da FTX – terão grande impacto no âmbito do mercado e das discussões envolvendo a regulação desse tipo de operação com criptoativos.4

4.1. A migração para corretoras descentralizadas (DEx – Decentralized  Exchanges)

Uma possível tendência poderá ser a migração das operações com  criptoativos para as chamadas corretoras descentralizadas (Decentralized  Exchanges – DEx). 

Por meio de tais corretoras, não há centralização em determinada  entidade. Pelo contrário, as DEx nada mais são do que complexos de smart  contracts criados em determinada rede de blockchain. Esses smart contracts constituem códigos computacionais que estabelecem as diversas formas de  custódia e operações com criptoativos nas DEx.

Com isso os clientes detentores de criptoativos podem vincular/depositar  esses criptoativos aos smart contracts de determinada DEx e realizar várias  operações financeiras que são, a rigor, automatizadas e não vinculadas a  nenhuma autoridade ou entidade central.

4.2. A confirmação da utilidade dos smart contracts

Isso confirma a importância e utilidade dos smart contracts para as  atividades e setores baseados na tecnologia blockchain. Ao mesmo tempo,  reafirma a importância desses instrumentos tecnológicos que podem ser  utilizados para estruturar operações econômicas e mesmo estabelecer  obrigações e relações jurídicas.5

O possível aumento da utilização das DEx em razão dos eventos  verificados com a FTX tem o potencial de ser o grande fator de incentivo para a  utilização dos smart contracts, não apenas no setor financeiro, como também  em outros setores e atividades. 

Evidentemente, os smart contracts não são adequados para toda e  qualquer situação. Como qualquer instrumento ou ferramenta tecnológica, sua  utilidade está relacionada à pertinência de sua utilização para determinadas  funções. E essa pertinência se verifica considerando as características  essenciais dos smart contracts (como a descentralização, automatização de  determinadas funções e arranjos obrigacionais, transparência e imutabilidade) e as utilidades e funções que essas características podem atender.

4.3. A regulação e os smart contracts – a questão da regulação embutida  (embedded regulation)

A utilização de smart contracts por si só, pode não ser suficiente para  resolver as questões e problemas que levaram aos eventos que culminaram na quebra da FTX. Os smart contracts como indicado acima, são códigos  computacionais criados em determinada rede de blockchain que permitem a automatização da execução de determinadas tarefas e atividades. 

Os smart contracts permitem a automatização de operações financeiras  (em criptoativos e nas finanças tradicionais), mas também de outros arranjos  obrigacionais. Por isso, uma grande discussão existente na doutrina nacional e  estrangeira envolve a tentativa de definição dos smart contracts como contratos  jurídicos ou não.6

De qualquer modo, os smart contracts podem ser considerados  instrumentos tecnológicos que permitem algo que jamais foi possível – de  modo eficiente – até agora: a automatização do direito, das obrigações. Eles  podem ser considerados a verdadeira ponte entre o direito e a tecnologia.

Mas essas características não afastam ou suprimem a necessidade de  regulação de certas condutas, de modo que não haja desvios tais como os  verificados no episódio FTX. Mesmo com o uso de smart contracts, a regulação  de determinadas condutas e atividades será necessária.

E qual o papel dos smart contracts no âmbito dessa regulação? Por um  lado, eles (as condutas, obrigações e operações neles previstas) podem ser  objeto de regulação específica. Por outro lado, eles podem se tornar  instrumentos da própria regulação. A regulação estatal, nos diversos países,  pode estabelecer que a utilização de smart contracts, na condição de códigos  computacionais destinados a estabelecer arranjos obrigacionais ou  operacionais em determinados setores e atividades deverão considerar  parâmetros mínimos e específicos estabelecidos pela Lei ou por normas  regulatórias.

De certo modo, isso já acontece atualmente. A utilização de smart  contracts em determinadas atividades que envolvem o processamento de  dados pessoais deverá estar em conformidade com a LGPD ou com o GPDR  europeu. E ambas as normas estabelecem que essa proteção deve se dar by  design, ou seja, ser definida desde a concepção do produto ou serviço (art. 46,  §2º, da LGPD). 

No âmbito europeu, discute-se atualmente o estabelecimento do que se  denomina de regulação embutida (embedded regulation) em determinadas  atividades, como aquelas enquadradas nas denominadas Finanças  Descentralizadas (DeFi). 

A regulação embutida consiste em estabelecer a necessidade de que a  própria tecnologia, o código computacional ou os smart contracts reflitam no  código computacional os comandos e previsões estabelecidos pelas normas  regulatórias. A questão não é livre de controvérsias e ainda gerará muita  discussão, mas essa é uma possibilidade. Trata-se de noção que consiste no chamado direito computacional ou computational law, em que normas jurídicas são embutidos e representados em código e sistemas computacionais.

4.4. A impossibilidade de eliminação completa dos riscos

O fato é que, mesmo que haja a tendência de migração de atividades  financeiras relacionadas a criptoativos de operações centralizadas para  operações descentralizadas viabilizadas pelo uso de smart contracts, não  haverá a completa eliminação de fatores de risco.

Uma das justificativas invocadas para a utilização dos smart contracts e  das corretoras descentralizadas (DEx) consiste na eliminação do fator humano  e dos riscos a ele associados. Na medida em que as operações financeiras e  suas regras encontram-se definidas em código computacional transparente e  imutável, não haveria mais riscos relacionados a desvios de condutas  humanas.

A justificativa até parece razoável, mas desconsidera que o fator  humano sempre estará presente. Se não estiver relacionado à atuação  concreta no dia a dia de tais operações com criptoativos, estará no momento  da concepção e programação dos smart contracts e plataformas que dão  fundamento às operações financeiras e corretoras descentralizadas.

Além disso, não podem ser desconsiderados os riscos cibernéticos  inerentes a toda e qualquer tecnologia e também bugs e defeitos na própria  programação das plataformas e dos smart contracts.

É possível que haja uma migração dos riscos, que passarão a envolver  outros fatores que não sejam relacionados diretamente à atuação humana nas  operações financeiras em criptoativos.

5. Considerações finais

Portanto, os eventos que levaram ao colapso da FTX, uma das maiores  corretoras de criptoativos do mundo, certamente terão uma repercussão  relevante na definição da regulação das operações com tais ativos e nas  operações envolvendo a tecnologia blockchain.

Além disso, pode-se antever uma tendência à maior utilização de  corretoras e operações descentralizadas baseadas em smart contracts, o que  também envolverá uma discussão a respeito da regulação da forma de  utilização desses instrumentos. Os smart contracts, por sua vez, poderão ser  utilizados como instrumentos para a regulação propriamente dita, ampliando a eficácia da regulação estatal por meio da utilização de meios tecnológicos e  consagrando a noção de computational law

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1 Confiram-se, a respeito do episódio: https://www.economist.com/briefing/2022/11/17/thefailure-of-ftx-and-sam-bankman-fried-will-leave-deep-scars e https://fortune com.cdn.ampproject.org/c/s/fortune.com/2022/11/17/raise-2-billion-sloppy-excel-spreadsheet ftx/amp/

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2 Confiram-se: https://www.coindesk.com/policy/2022/11/10/ftx-collapse-sparks-alarm-from-uslawmakers/utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=Node%20-%20Nov%2011&utm_term=The%20Node e https://www.wsj.com/articles/ftx-collapse-sets-back crypto-agenda-in-washington-11668434402

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3 https://www.theguardian.com/technology/2022/nov/17/ftx-enron-crypto-collapse-john-rayunprecedented?utm_source=nextdraft&utm_medium=email

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4 https://www.wired.com/story/the-fallout-of-the-ftx collapse/?bxid=5cec219efc942d3adaf2a4d2&cndid=57125742&esrc=profile page&mbid=CRMWIR092120&source=EDT_WIR_NEWSLETTER_0DAILYZZ&utm_brand=wired&utm_campaign=auddev&utm_content=wir_daily_111122&utm_mailing=
wir_daily_111122&utm_medium=email&utm _source=nl&utm_term=P5

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5 Sobre smart contracts, confira-se TALAMINI, Eduardo; CARDOSO, André Guskow. Smart  contracts, autotutela e tutela jurisdicional. In. Execução civil. Coord. Min. Marco Aurélio Belizze,  Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Teresa Arruda Alvim e Trícia Navarro Xavier Cabral.  Indaiatuba, SP, Ed. Foco, 2022, p. 163-213. Acessível em  https://www.academia.edu/73747524/Smart_contracts_autotutela_e_tutela_jurisdicional_2022

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6 Nesse sentido, vide TALAMINI, Eduardo; CARDOSO, André Guskow. Smart contracts, autotutela e tutela jurisdicional. In. Execução civil. Coord. Min. Marco Aurélio Belizze, Aluisio  Gonçalves de Castro Mendes, Teresa Arruda Alvim e Trícia Navarro Xavier Cabral. Indaiatuba,  SP, Ed. Foco, 2022, p. 163-213. Acessível em  https://www.academia.edu/73747524/Smart_contracts_autotutela_e_tutela_jurisdicional_2022